Alguém disse “identitarismo”?
Confira resenha do livro O que é identitarismo?, do escritor Douglas Barros e publicado pela Boitempo
Sim, alguém disse “identitarismo”. Foi Douglas Barros, em um livro necessário. Se, em 2019, o autor publicou Lugar de Negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019), em seu recém-publicado O que é identitarismo? (Boitempo, 2024), agora a questão é tratada com ainda mais profundidade.

Nessa nova obra, Douglas constrói um diagnóstico de época e explica como e por que a lógica do identitarismo se disseminou como modo de gestão de um capitalismo de crise. Como o próprio escritor desenvolve: “o identitarismo é a eliminação da política real, mediada pela ruptura com a modernidade clássica” (p. 22), e se torna um paradigma de administração das identidades, subtraindo-as do potencial transformador.
Rastreando a constituição do identitarismo, o autor investiga a constituição da identidade como uma ilusão subjetivamente necessária. “É a ilusão de encontrar a identidade no fim do percurso que proporciona significado às dores e aos sofrimentos da subjetividade diante do fracasso da busca pelo saber de si” (p. 24). Essa identidade, contudo, não é ontológica ou apriorística. Pelo contrário, ela é um produto social. Como demonstra Douglas, as identidades subjetivas, culturais, raciais e nacionais são historicamente determinadas – definidas exatamente pela modernidade. O princípio de identificação é, nesse sentido, substancialmente moderno. Vale ressaltar que a ideia de raça, explicada pelo escritor do livro, nem sempre existiu como se compreende hoje. Essa noção é tributária de uma organização colonial das populações, que oferece uma identidade ao outro, coisificando-o. O caso da identidade racial é fundamental, pois ilustra como ela foi produzida violenta e socialmente.
A produção dessas identidades nada teve de idílica. Pelo contrário, foi registrada nos anais da história com grilhões, chumbo e pólvora. Como a colonização foi, antes, a criação e imposição de uma construção objetificante da identidade, já se reconhece que o identitarismo tem em seu DNA a prática colonial.
Entretanto, Douglas busca radiografar em detalhes o cenário contemporâneo. A emergência do identitarismo está conectada à constituição do sujeito neoliberal – uma subjetividade individualista, concorrencial e cujo horizonte de expectativas está intrinsecamente ligado ao funcionamento e às práticas de mercado. Se o sujeito neoliberal é, podemos dizer, a condição de possibilidade subjetiva para o identitarismo, o capitalismo de crise seria a condição de possibilidade objetiva. A crise, resultante do movimento contraditório imanente ao próprio capital, fez dissolver formas sociais historicamente constituídas que amalgamavam a sociedade. Como explica Douglas, “O desenvolvimento tecnológico das forças produtivas fez com que o trabalho vivo deixasse de ser o ator fundamental na produção”, e, dessa maneira, a experiência compartilhada no trabalho se atrofia. O refúgio a essa subjetividade mutilada será, como argumentado no livro, o identitarismo. Há, ainda, um ponto de contato entre as condições de possibilidade subjetiva e objetiva: o autor, de modo bastante perspicaz, reconhece a adoção dos diversos mecanismos de controle e de contrainsurgência que operam pela introjeção da própria dominação. Novas tecnologias de comunicação e de endividamento garantem a satisfação do consumo como meio de controle. E, como é frisado ao longo do livro, a própria identidade pode tornar-se uma satisfatória mercadoria. Deste modo, o capitalismo tardio reconfigurou as bases da reprodução social, cada vez mais individualizada, e, neste sentido, a lógica do identitarismo se espraiou.
Douglas demonstra como a identidade foi instrumentalizada pela gestão social deste capitalismo de crise. Assim se constituiu o que o autor chama de delírio do identitarismo, entendido como ‘o fechamento da identidade que reduz o outro a si através do estereótipo, da racialização e da exclusão da diferença’ (p. 25). Ou seja, a breve história da identidade traçada na obra demonstra como ela se tornou ‘um recurso necessário para legitimar controles’ (p. 144).
Assim, o identitarismo dá o horizonte da “política” — aqui o escritor usa “política” entre aspas, pois o caráter transformador da política foi completamente subtraído. O identitarismo operou um processo de despolitização que reforça a fragmentação individualista – mônadas identitárias autoidentificadas. Espírito do tempo: tudo muito bem alinhado com a lógica da concorrência universal.
“A gestão identitária da diferença” (p. 145) é o diagnóstico preciso da política convertida em polícia. As identidades são ‘policiadas’ e forçadas a se ajustarem a critérios identificáveis pelos aparatos de poder (do fenótipo, do símbolo, do bordão, etc.). Uma forma de gestão que reproduz a ordem social: cada identidade no seu devido lugar. Por isso, Douglas percebe que essa “nova lógica identitária, ao obliterar o comum, traz consigo o germe da violência no espectro político contemporâneo” (p. 152).
Trata-se, no final das contas, do “culto à identidade fechada” que “se converte num álibi ao desarmamento político impedindo que a ruptura social seja postulada” (p.155).
O que é identitarismo? é, portanto, uma grande contribuição que ajudará a compreender com mais precisão o mundo contemporâneo da circulação e choque das identidades em concorrência permanente.
Todo o livro, em sua crítica ao identitarismo, carrega a pretensão de transformar a lógica das identidades fechadas. A obra busca implodir a arquitetura das posições subalternas no interior dos paradigmas de identificação dos sujeitos, produzidos pelas identidades hegemônicas, que organizam a estrutura desigual do poder. Algumas ideias são, de fato, perigosas.
Thiago Canettieri é professor do departamento de urbanismo da UFMG e pesquisador filiado ao Instituto Alameda.