Algum Fanon – rastros pelo Brasil no ano do centenário
Biografia recém-traduzida recupera em tom épico a jornada do escritor martinicano, que completaria cem anos em 2025
Em tempos de guerra, as preocupações se voltam para os avanços das forças inimigas: ataques, baixas, perdas territoriais e humanas nas batalhas por parte de aliados. Isso para a sociedade em geral. Para os médicos, a profusão de entradas que exigem pronto atendimento, o funcionamento de hospitais de campanha e o manejo dos suprimentos se tornam o foco das atenções. O crescente número de feridos e a escassez de recursos costumam concentrar os esforços dos profissionais da saúde, mas o psiquiatra revolucionário Frantz Fanon (1925-1961) optou por também acompanhar o que os argelinos escutavam – pelo rádio.

Crédito: Reprodução/ A Clínica Rebelde
Sob a brutalidade dos combates pela independência argelina, o autor decidiu encarar como a cultura circulava no quinto ano desde o início da guerra. Os originais do livro L’An V de la Révolution Algérienne dedicam um trecho à radiodifusão para novamente notar como a liberdade era uma questão ao mesmo tempo social e psíquica. É um traço permanente na obra de Fanon. A diferença, ali, era a possibilidade de identificar esses impasses em período crítico – cuja comunicação alcançava grandes públicos com as transmissões, inicialmente em som, por ondas eletromagnéticas.
As incompreensões a partir desse trabalho surgem nos títulos das traduções. Em língua inglesa, a sensação de urgência proporcionada pelas batalhas é abandonada com o novo nome: A Dying Colonialism. A ênfase na atmosfera revolucionária reaparece para o público lusófono com o batismo de Sociologia de Uma Revolução, mas os significados de um processo relatado no calor do momento são deixados de lado. O deslocamento para outros idiomas é só o princípio de uma série de mal-entendidos que menosprezam os comentários do autor sobre a comunicação.
No centenário do nascimento de Fanon revisitar seu pensamento é procurar os limites para a liberdade – especialmente, buscar as barreiras que ainda se impõem à alienação. O interesse pelo trânsito de valores na cultura popular, em ambiente dominado por plataformas digitais, é um modo de incentivar a retomada. O empenho para entender como a Argélia pré-libertação se familiarizava com a linguagem radiofônica demonstra quão central isso era nas diferentes formas de controle à época. Sem contar as outras serventias para o Brasil, que em 2025 ainda trata o Ministério das Comunicações como uma peça de menor importância em Brasília.
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Cada geração deve, numa opacidade relativa, descobrir sua missão. E cumpri-la ou traí-la – quando o poeta piauiense Torquato Neto morreu, começou a busca por fragmentos perdidos com sua assinatura. Em um dos escritos, estranho, a sentença inicial de Fanon reaparece: era o roteiro para um programa de televisão que teria como anfitriões artistas da Tropicália. Os cantores Caetano Veloso e Gilberto Gil se destacavam, mas o elenco era abrangente. Contava com outros músicos interessados pelas provocações, cristalizadas no disco Panis et Circenses de 1968, e com personalidades tão diferentes quanto Nelson Rodrigues ou Gilberto Freyre.
Especificamente por sua elaboração na iminência do período mais bárbaro, marcado pela caçada contra as oposições, às vésperas da virada para os anos 1970. Os registros do programa, inseridos em coletâneas póstumas, são à primeira vista uma série de anotações despretensiosas. Aos olhares menos atentos, o roteiro é um esboço cru do plano malfadado. Mas a poética violenta de Torquato Neto, que não deixou nenhum livro publicado em vida a despeito das composições para a cultura popular e dos textos em jornais de grande circulação, faz com que cada estilhaço de sua autoria seja revirado.
Ainda mais uma tentativa esteticamente tão brutal. A citação a Fanon não vem acompanhada de outra rubrica e só aparece na parte final do texto. Logo antes, assim, da explosão total planejada para o espetáculo. A menção ao autor, cuja despedida foi igualmente precoce, pode sugerir paralelos – menos sutil, no entanto, é a pressa compartilhada por ambos diante da necessidade de transformações. Nos dois casos, esse caráter urgente é transposto para a linguagem e as consequências imediatas são os gestos bruscos, desenfreados. Agressivos.
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São comuns os anúncios das grandes revelações nos últimos anos de produção de Friedrich Nietzsche. Em cartas e nos seus livros do mesmo período, é constante o vaticínio de uma nova filosofia. Muitos comentadores notam nisso a precipitação da cosmologia nietzscheana de um tempo circular – em outras palavras, do conceito de eterno retorno. A expressão é o álibi de um ineditismo inescapável para o filósofo, que a apresenta apenas com concisão em certas páginas de A Gaia Ciência ou até de Assim Falou Zaratustra. É inclusive o estopim para discussões sem fim sobre a tal circularidade.
É um mérito de Nietzsche colocar em questão a temporalidade unidimensional. Para simplificar, é a ideia de um tempo que caminha em um só sentido, como se andasse sobre uma linha reta – com desdobramentos implacáveis para as sociedades. São implicações disso uma concepção homogênea de História, de validade universal, e até teleologias que decretariam a verdadeira direção do progresso. Não é exagero concluir que todas essas palavras difíceis estabeleceram hierarquias entre países e ajudaram a subalternizar africanos e sul-americanos, por exemplo, na comparação com europeus e estadunidenses.
Na mitologia iorubá, contudo, já havia sido subvertida essa visão. De maneira geral, a linearidade não condiz com as cosmogonias que, desembarcadas no Brasil, ajudaram a conceber religiões de matriz africana como o candomblé e a umbanda. A imagem mitológica mais firme com essa orientação é a do orixá Exu, capaz de atingir um pássaro ontem com uma pedra lançada somente hoje. Entre o exusíaco e o nietzscheano, coincidem as implicações éticas das decisões tomadas no agora. O passado é vivo, reage às atitudes no presente e não está pacificado.
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As impressões sobre Fanon vacilam. Escritor antilhano, fez da luta pela libertação da Argélia uma causa para vida. Soldado durante a Segunda Guerra nas fileiras francesas do antifascismo, amedrontou as elites parisienses como um crítico ácido do estilo de vida esbanjado pelos boulevards. Acolhido por Jean-Paul Sartre e pelos círculos existencialistas, não estaria confortável em nem uma cena fotografada da janela dum café, com cigarro no canto da boca. Médico, adotou a retórica incendiária distante do comedimento professoral que o jaleco pretensamente requeria.
É esse o movimento que faz de A Clínica Rebelde – Uma Biografia de Franz Fanon, recém-publicado no Brasil pela editora Todavia, quase um thriller e facilita a leitura. O escritor Adam Shatz opta por um olhar distanciado dos acontecimentos que tem como resultado uma aventura vibrante, à altura das jornadas dos grandes intelectuais engajados de meados do século XX: muitos dos quais, assim como o martinicano, guardavam tanta familiaridade com as estantes empeiradas com obras clássicas quanto com tropas, baionetas e palavras de ordem a plenos pulmões no front.
As tensões na adesão de Fanon à ideia de História unidirecional, que a reboque de oferecer uma explicação totalizante para a realidade decreta a países como Argélia, Martinica e Brasil um status quase primitivo, são apenas sussurros ao longo dos capítulos. O livro não assume como objetivo localizar a paisagem conceitual do autor – situá-la, afinal, é uma tarefa complicada. Em especial diante dos sentidos que, desde então, muitos de seus intérpretes flagraram em seus textos. A princípio, porque seu pensamento parecia claustrofóbico, avesso às fronteiras.
A geração de estrangeiros que encorajou a revolução a partir de outros países tinha no autor de Os Condenados da Terra um representante. Símbolo maior, da Argentina Che Guevara partiu para Cuba e Bolívia com intenções parecidas; Olga Benário Prestes deixou a Alemanha para precipitar do Brasil uma insurreição ainda inédita para a América do Sul. Com resultados diferentes, os três exemplos rasuram identidades nacionais fixas. O caso de Fanon é ainda mais paradigmático por se tratar de um militante negro caribenho que, entre muçulmanos do norte da África, priorizou transformações sociais em detrimento de qualquer essencialismo.
Helcio Herbert Neto (@exarrobasom) é o autor do livro Palavras em Jogo (Editora Dialética, 2024). Doutor em História Comparada (UFRJ), tem formação em Filosofia (UERJ) e Jornalismo (UFRJ). Atualmente, desenvolve pesquisas sobre cultura popular em âmbito do pós-doutorado na UFF, mesma instituição pela qual concluiu o mestrado em Comunicação.