Alguns aspectos da defesa da Advogado-Geral da União
Na defesa feita Advogado-Geral da União, José Eduardo Cardozo, contra o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff observou-se importantes aspectos da técnica legal e do direito. “Vivemos, hoje, felizmente sob a égide de um autêntico Estado Constitucional, que em muito suplanta a feição estrita e limitada da expressãoLeonardo Isaac Yarochewsky
O Advogado-Geral da União José Eduardo Cardozo protocolizou e apresentou perante a Comissão de impeachment da Câmara a defesa da Presidenta da República Dilma Rousseff contra a denúncia de impeachment recebida pelo Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha.
A defesa do Advogado-Geral da União (AGU), ao contrário do que fez a acusação, agiu dentro da técnica legal e do direito, evitando panfletagem política e arroubos impulsivos.
O ex-ministro da Justiça e agora Advogado-Geral da União José Eduardo Cardozo iniciou sua defesa trazendo a colação os postulados do Estado Democrático de Direito como fundamento da República Federativa do Brasil.
Como bem ressaltou o ministro Cardozo, “vivemos, hoje, felizmente sob a égide de um autêntico Estado Constitucional, que em muito suplanta a feição estrita e limitada da expressão “Estado de Direito”, ao menos nos moldes em que teoricamente foi concebida, a partir do final do século XVIII, em vários países do mundo ocidental (Rechtsstaat, État de Droit, Stato di Diritto, Estado de Derecho, ou a anglo-saxônica “rule of law” que para alguns a ela se equivale). Se nos Estados de Direito, todos – governantes e governados – devem estar submetidos à lei, nos “Estados Constitucionais” ou “Estados Democráticos de Direito”, o elemento democrático foi introduzido, não apenas para travar o poder (to check the power)”, mas também para atender à própria “necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power)”.
Hodiernamente os Estados democráticos estão sob o “Império da Lei” e não mais, como outrora, sob o “Império dos Homens”. E dentro dos limites estritos da lei e em respeito as garantias constitucionais é que deve ser conduzido o processo penal, o processo de impeachment ou qualquer outro que resulte em sanção.
A democracia, por sua vez, que o Estado Democrático de Direito realiza, no dizer do constitucionalista José Afonso da Silva, “há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu exercício”.
O AGU lembrou que o Brasil adotou o sistema de governo presidencialista no qual o Presidente da República, como Chefe do Poder Executivo, exerce as funções de Chefe de Estado e, também, as de Chefe de Governo e, não depende da confiança do Congresso Nacional, para ser investido no cargo ou nele permanecer, como ocorre no sistema de governo parlamentarista.
Após diversas incursões sobre os direitos e garantias institucionais da Presidência da República José Eduardo Cardozo se voltou para a natureza do processo de impeachment e para os seus pressupostos jurídicos.
Como já dissemos alhures, o processo de impeachment tem uma natureza mista: política e jurídico-penal. Natureza política já que compete ao Senado Federal o julgamento do impeachment do Chefe do Poder Executivo. Tem, também, natureza Jurídico-penal posto que no julgamento pelo Congresso Nacional devam ser respeitados os limites impostos pela dogmática penal, bem como o devido processo legal.
O fato da Constituição da República (artigo 86) diferenciar os crimes comuns – cujo julgamento é de competência do Supremo Tribunal Federal – dos chamados crimes de responsabilidade, de competência do Senado Federal. Sendo que os últimos são tratados por boa parte da doutrina como infrações políticas/administrativas, não quer dizer que por isso possa ser desprezado os princípios fundamentais e garantistas do processo penal.
Embora seja inegável o seu viés político, as balizas impostas pelos princípios, notadamente, da legalidade, da taxatividade e da culpabilidade em matéria jurídico-penal, não podem ser postergados. Sendo certo que o processo de impeachment, no que pese, também, sua natureza política, não pode passa a margem do direito e da lei.
Dentre os pressupostos jurídicos para o impeachment o ministro José Eduardo Cardozo destacou a necessidade da comprovação de crime de responsabilidade que atente contra a Constituição da República (art. 85). Como bem disse o eminente advogado, a Constituição faz o arquétipo e a lei especial – no caso a Lei 1.079/50 – faz a especial tipificação.
Não resta dúvida e, também, já falamos sobre o tema, que para que haja impeachment é imprescindível que se comprove cabalmente a pratica de conduta dolosa – crime de responsabilidade – por parte da Presidenta da República e que, necessariamente, atente contra a Constituição da República.
Está assentado na Constituição que os crimes comuns praticados pelo Chefe do Poder Executivo serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Verifica-se assim, que a Constituição da República reservou ao Senado Federal o julgamento dos crimes de responsabilidade que atentam contra a Constituição da República. Somente os crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente da República dolosamente e que atentem contra a Constituição. Isto se deve a gravidade dos crimes de responsabilidade cometidos contra o Estado Democrático de Direito e que tem como sanção o impeachment do Chefe do Poder Executivo. Não se pode, portanto, dá igual tratamento ao Presidente da República que pratica crime de responsabilidade no exercício do seu mandato e aquele que pratica um crime comum.
Dúvida, também, não há que o Presidente da República só poderá ser responsabilizado por crime praticado na vigência do seu mandato, não podendo ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (art. 86, $ 4º da CR).
Ainda, nas considerações iniciais, a defesa buscou acertadamente a limitação do objeto do processo de impeachment.
Assevera a defesa que: “a competência e a atuação do Presidente da Câmara dos Deputados, dentro do juízo de admissibilidade no processo de impeachment da Chefe do Poder Executivo, não tem o único objetivo de impedir o prosseguimento de acusações sem o mínimo de idoneidade e de indícios de autoria e de materialidade do delito, com a determinação de arquivamento da peça acusatória que se apresenta inepta em sua totalidade. O exercício daquelas atribuições, induvidosamente, também tem a finalidade de fixar e delimitar precisamente os fatos supostamente criminosos descritos na notícia formulada pelo cidadão e que serão objeto de análise e deliberação pela Câmara dos Deputados”.
Como é cediço, a acusação, tem natureza de dever jurídico, está limitada pelo princípio da legalidade. Não é sem razão que a acusação está sob o controle externo da Agência Judicial. Como salienta Rubens Casara e Antonio Melchior, “o juízo de admissibilidade da acusação importa no dever da Agência Judicial de rejeitar ou não receber a denúncia sempre que necessário à concretização do devido processo penal”. A lição, também, se aplica ao processo de impeachment.
A imputação é sempre um fato. O fato processual é o único que importa à verificação da conformidade como princípio da correlação (ou congruência) entre a acusação e a sentença, é “um acontecimento histórico, com características próprias, delimitado no tempo e no espaço”.
Sem adentrar nas preliminares e nas demais questões de mérito da defesa apresentada pela Presidenta da República, em análise fria e racional, verificamos uma vez mais que não há razão jurídica e legal para o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Lembrando que, razões e motivação políticas não são suficientes e não bastam para que o Chefe do Poder Executivo seja sacado do cargo.
O professor Pedro Serrano em substancioso parecer ressalta que:
“O fato de o julgamento do crime de responsabilidade decorrer do exercício de uma função política do Estado não é alvará para que se atente contra os direitos fundamentais e ao Estado de Direito. Por essa razão é que a aplicação de sanções no processo do crime de responsabilidade demanda o atendimento de requisitos para sua incidência válida”.
Por tudo, estão certos aqueles que dizem que o impeachment não é golpe porque está previsto na Constituição da República, mas razão, também, assiste, notadamente, aqueles que dizem que impeachment sem que haja comprovação de crime de responsabilidade e que atente contra a Constituição da República é golpe.
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUC-Minas.