Álibi ou alternativa ao liberalismo?
Vistas como um objeto não identificado na sociedade capitalista, financiadoras de ações militantes mas adaptadas ao sistema, as grandes empresas da economia social estão diante de um impasse. Ou se integram na construção de um projeto alternativo, ou tendem a se diluir na economia de mercadoJean-Loup Motchane
O que há em comum entre o Crédit Agricole, banco que gera cerca de 1 trilhão de francos, via 15,5 milhões de contas, e o Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, com um elenco de 49 pessoas? Nada, a não ser pertencerem a um mesmo campo, o da “economia social”.
A economia social têm raízes profundas, na Idade Média. [1] As guildas, confrarias, jurandes, [2] corporações e compagnonnages [3] constituem seus longínquos ancestrais. Originárias do século XIII, as associações de artesãos permaneceram, sob o Antigo Regime, a principal forma de organização dos operários profissionais franceses e sobrevivem até hoje. No entanto, os filósofos iluministas iriam considerar as corporações um entrave à liberdade individual e a Revolução Francesa rejeitaria qualquer legitimidade a corpos intermediários entre indivíduo e nação. Dessa forma, a lei Le Chapelier, de 1791, proíbe qualquer agrupamento voluntário de base profissional. Somente em 1884, por iniciativa de Waldeck Rousseau, será concedida a liberdade de se constituírem sindicatos profissionais. Em 1898, a lei que funda a mutualidade seria votada, e depois, em 1901, outra autorizando a liberdade de associação.
Primeiras teorias e experiências
Os primeiros teóricos e as experiências iniciais da economia social aparecem no início do século XIX, em reação à brutalidade da revolução industrial. Diante do pensamento liberal, o socialismo utópico de Saint-Simon (1760-1825) esboça a visão de um sistema industrial cujo objetivo seria buscar o melhor bem-estar possível às classes trabalhadoras unidas em associações de cidadãos, e a redistribuição eqüitativa das riquezas seria competência do Estado. À mesma época, Charles Fourier (1772-1837) inventaria o falanstério, [4] onde a repartição dos bens se dá segundo o trabalho entregue, o capital empregado e o talento.
Pierre Proudhon (1809-1865), crítico radical da propriedade privada, será o precursor de um sistema de círculos de ajuda mútua no qual o dinheiro é substituído por “certificados de circulação”, e no qual as sociedades trocam serviços. Como pensador anarquista, no entanto, recusa qualquer intervenção do Estado. Inversamente, Louis Blanc, em sua obra L’Organisation du travail, publicada em 1839, descreve uma sociedade renovada, fundada na criação de cooperativas, o Estado responsável em generalizar esse sistema para o conjunto da produção. [5]
No interesse mútuo dos associados
Uma outra grande fonte de inspiração da economia social foi o cristianismo social, corrente de pensamento reformista representada, na França, por Frédéric Le Play (1806-1882) e Armand de Melun (1807-1877).
Inseparável da história do movimento operário, de suas divisões e da resistência à construção de uma sociedade fundada sobre o lucro, a economia social, ou “terceiro setor”, reúne estruturas muito diferentes quanto ao tamanho e à natureza de suas atividades. Quer tenham a forma de mutualidades, [6] de cooperativas, de associações ou de fundações, na França, na Itália, na Espanha e na Alemanha, ou organizações de auto-ajuda, de instituições de caridade, de organizações voluntárias não lucrativas na Grã-Bretanha, todas essas instituições afirmam compartilhar cinco princípios sagrados, um objetivo fundamental e exigências sociais: a independência em relação ao Estado, a filiação voluntária dos sócios, a estrutura democrática de poder (uma pessoa, um voto), o caráter inalienável e coletivo do capital da empresa e a ausência de remuneração do capital, eis os princípios. [7] O objetivo fundamental define-se pelo fornecimento de bens e serviços, ao melhor custo, de forma a servir ao interesse mútuo dos associados ou, mais amplamente, assegurar um serviço de interesse geral que o Estado não quer ou não pode assumir.
Desenvolvimento, educação e formação
Quanto às exigências sociais, elas impõem que as empresas do terceiro setor não somente respeitem as leis trabalhistas mas também contribuam, através de sua organização eqüitativa, para o desenvolvimento, educação e formação de todos os que ali trabalham, assalariados ou voluntários. Enfim, as empresas da economia social pretendem não ser como as outras. [8] A realidade, no entanto, é outra.
Estima-se que, dos 370 milhões de habitantes da União Européia, uma média de 25 milhões pertençam a uma cooperativa, a uma mutualidade ou a uma associação. Levando em conta o fato de que uma mesma pessoa pode estar ligada a várias delas, mais de 30% da população é membro de uma organização ou empresa de economia social. Segundo um estudo publicado pela Comissão Européia [9] em 1997, o conjunto de seus componentes representava, em 1990, de 6 a 6,5% das empresas, ou seja 5,3 % do emprego privado, e até 6,3%, segundo outras abordagens. [10]
A era da liberalização
No campo bancário e de seguros, seu desempenho administrativo é considerado, freqüentemente, superior ao das empresas capitalistas tradicionais. E isso mesmo sem que elas tenham acesso ao financiamento do mercado de ações e possam ter dificuldade em dispor de fundos próprios suficientes. Ora, com depósitos de mais de um trilhão de euros, aproximadamente 900 milhões de euros de crédito, 36 milhões de associados e 601 milhões de clientes, os bancos cooperativos detêm 17% do mercado. Para as mutualidades e cooperativas de seguros, a porcentagem correspondia, em 1995, a 29,2% na Europa Ocidental, 30,8% no Japão e 31,9% nos Estados Unidos. [11]
As relações entre as instituições da economia social e os poderes públicos modificaram-se profundamente na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Depois do primeiro choque do petróleo, a crise econômica e o aumento do desemprego contribuíram para reforçar, em toda parte, seu papel, assumindo diferentes modalidades, de acordo com os países. Na Grã-Bretanha, certas atividades sociais foram retomadas pelo setor privado devido à política de redução das despesas públicas conduzida por Margaret Thatcher. Na Espanha, as restrições orçamentárias levaram as coletividades a privatizar parte de seus serviços sociais. As empresas de mercado apoderaram-se da parte lucrativa da demanda, deixando às associações o setor insolvente. Na França, e na Itália, por outro lado, não foi constatado o descomprometimento financeiro do Estado. [12]
Nasce a economia solidária
A Comissão Européia enumerava, em 1995, mais de um milhão de associações na Europa, reunindo de 30 a 50 % da população segundo o país. As despesas dessas associações representam, em média, 3,5% do Produto Interno Bruto (PIB). A França, com 3,3% do PIB, está próxima da média da comunidade. Suas 730 mil associações empregam 1.274.000 de assalariados equivalendo a recursos da ordem de 220 bilhões de francos, 60% provenientes dos fundos públicos. [13]
O crescimento do desemprego e da pobreza na Europa na década de 80 provocou o surgimento de novas empresas sociais. Instrumentos de luta contra a exclusão, vetores de inovação, elas representam, quase sempre, uma resposta a novas necessidades diante da incapacidade das administrações e das coletividades locais e regionais para imaginar e por em prática soluções eficazes. Devido à carência parcial dos poderes públicos e aos recuos do Estado-Previdência face à escalada liberal, o terreno ficou livre e nasceu uma nova forma de economia social: a economia solidária. [14]
Cooperativas de solidariedade social
Essa nova economia, no sentido autêntico do termo, retoma algumas características da tradição da luta do movimento operário contra a miséria. É nesse meio que encontramos as organizações mais militantes, porém também as mais frágeis: empreendimentos de inserção, comitês de cidadãos nos bairros, [15] com poder de decisão, que se preocupam com a melhoria da qualidade de vida e do ambiente, associações intermediárias que empregam pessoas em dificuldades para garantir tarefas que o setor privado tradicional não leva em conta, pequenas cooperativas garantindo pequenos serviços à coletividade; reparos, entrega de refeições a domicílio para pessoas dependentes, serviços domésticos, como passar roupa, limpeza, costura. [16]
Na Itália, a lei de 1991 consolidou a existência do que constitui uma das mais interessantes inovações dessa economia solidária, as cooperativas de solidariedade social, bem como seu agrupamento em estruturas de segundo nível: os consórcios. [17] Na França, na perspectiva da descentralização, o Estado e as coletividades delegaram uma parte da ação social e do esforço de inserção a instituições locais de economia solidária, mantendo, entretanto, o auxílio financeiro. [18]
Um dos “carros-chefes” da economia
Se uma parte da economia solidária financiada através de fundos privados representa uma mina impressionante de militância, de iniciativas e de inovação, seu peso econômico é fraco, comparado ao dos mamutes da economia social: mutualidades de seguros, bancos, cooperativas, grandes associações financiadas pelo Estado. E então, economia social e economia solidária pertencem a dois mundos que se ignoram? Não exatamente: a primeira é muitas vezes solidária com a segunda, no que diz respeito ao início, acompanhamento e financiamento de projetos. Além da ação das fundações criadas por grandes bancos cooperativos e pelas mutualidades, que financiam, cada uma, uns vinte projetos por ano, instituições financeiras propõem a particulares investimentos éticos e investimentos de parceria. [19] Tais investimentos, atualmente avaliados em 400 milhões de euros, representam uma gota d’água do oceano, se comparados ao estoque de poupança salarial, avaliada em 38 bilhões de euros. [20] Mais de 4 mil empresas e 20 mil empregos foram gerados por esse tipo de ajuda. [21] Dispositivos análogos existem em outros lugares da Europa. [22]
Longe de ser marginal, o setor da economia social e solidária, que aliás não pára de crescer — ainda que formalmente, como demonstra a recente transformação de Fundos de Poupança em mutualidades —, é pelo menos um dos “carros-chefes da economia” européia, segundo a expressão de Thierry Jeantet, membro do Comitê de Assessoria à Economia Social. Sua visibilidade para os cidadãos e para os poderes públicos não corresponde à sua importância. Entretanto, a nomeação recente de um Secretário de Estado da Economia Solidária, Guy Hascoët, traduz o interesse político que o setor suscita na França, ainda que o orçamento concedido ao novo ministro seja muito limitado. [23]
O conceito de interesse geral
O projeto de Hascoët tem três objetivos: a votação de uma lei sobre a economia social e solidária no início de 2001; a inserção de uma cláusula referente à poupança solidária no futuro Projeto de Lei sobre a poupança salarial; e a reforma, prevista para julho, do Código da mutualidade no marco da difícil unificação da legislação francesa com as diretrizes européias de 1992 sobre seguros. Essas diretrizes, marcadas pelo liberalismo, recusam-se a distinguir as mutualidades — que não produzem lucro, uma vez que seus clientes são considerados como sócios — das companhias de seguros, cuja primeira vocação é realizar lucros.
Uma lei sobre o terceiro setor poderia definir, através de selo de garantia, um “setor da economia social e solidária” e criar um estatuto de “empresa com finalidade social”. Isso permitiria levar em conta missões de interesse geral da economia solidária aprofundando o relatório do deputado europeu pelo Partido Verde, Alain Lipietz. [24] Seria ainda necessário que o conceito de interesse geral fosse introduzido no Direito Comunitário, inteiramente baseado na noção de concorrência…
O dossiê da unificação européia
O explosivo dossiê da poupança salarial, [25] ou seja, da poupança de longo prazo proveniente de um salário depositado pela empresa como reembolso de um empréstimo, utilizado ou não na aposentadoria, não deveria circular apenas no campo balizado pelos partidos de direita e pelo Movimento dos Empresários da França (Medef) A verdadeira pergunta a ser feita é quem — assalariados, empregadores ou uma estrutura técnica — deve gerir o que não passa, efetivamente, de um salário reembolsado, segundo quais modalidades e com qual finalidade. O que traz novamente à tona o problema fundamental da apropriação coletiva dos meios de produção e da troca no seio da sociedade capitalista.
Quanto ao dossiê da unificação européia, ele ilustra um dos aspectos do confronto entre a economia solidária e a lógica liberal impulsionada pela Comissão Européia, de Bruxelas. Conforme esclarece o relatório Mission mutualiste et droit communautaire, feito por Michel Rocard, deputado europeu, ao primeiro-ministro, as grandes federações de mutualidades francesas gostariam que a proibição de coletar informações médicas para fins de estabelecer preços e qualquer tratamento preferencial em relação a um associado fosse imposta ao conjunto das companhias de seguros européias, inclusive àquelas voltadas para o mercado. Elas reivindicam, igualmente, o poder de gerir, dentro da própria estrutura mutualista, estabelecimentos de saúde que fazem parte do serviço público, ou seja, poder utilizar atividades lucrativas para equilibrar os serviços deficitários. [26]
Uma “boa ação” humanitária?
A economia social e solidária constitui, no interior da sociedade capitalista, uma espécie de objeto não identificado. Ela acumula paradoxos. Suas grandes instituições proclamam-se diferentes de suas homólogas capitalistas, porém disso nem sempre há prova explícita ou convincente. Os grandes bancos e as sociedades mutualistas de seguros, bem como as cooperativas, têm estatutos incompatíveis com a lógica do mercado. No entanto, elas moldam-se ao sistema liberal a ponto de não poderem ser facilmente diferenciadas das empresas comuns.
É claro que contribuem com uma sustentação discreta, porém real, a empresas de economia solidária, militantes e inventivas, porém essa ajuda aparece mais como uma “boa ação” humanitária do que como uma vontade de opor um outro modelo à economia de mercado. Elas divulgam seu vínculo a ideais comuns, mas ainda têm muito a fazer para calar seus opositores e melhorar sua compreensão.
Relações complexas com a esquerda
Os desafios postos pela existência desse vasto setor são profundamente políticos, porém os dirigentes dessas grandes instituições evitam defini-los nesses termos. Enquanto guardam suas bandeiras no bolso, reclamam de falta de visibilidade: “Sou apenas um banqueiro, não um pensador”, desculpas-se Jean-Claude Detilleux, presidente do banco Crédit Coopératif, bastante engajado, no entanto, em dar sustentação à economia solidária. Os militantes de base também são modestos. Para eles, o que conta é a luta cotidiana contra a exclusão. Deixam aos políticos a preocupação de inventar um outro modelo de sociedade. “A economia social permite amortecer as crises que surgem nas nossas sociedades. Mas são será ela que questionará a sociedade do mercado”, explica Claude Alphandéry, presidente do Conselho Nacional da Inserção pela Atividade Econômica.
A economia social mantém relações complexas com os partidos de esquerda e as organizações sindicais, e é aí que se encontram muitos de seus executivos ou futuros executivos. Na Europa, a força dos partidos social-democratas, e também democratas-cristãos, teve tradicionalmente por base suas relações com os sindicatos, cooperativas e mutualidades. “Entretanto — observa Jean-Christophe Le Duigou, secretário da CGT —, os sindicatos e os partidos políticos de esquerda não fazem da economia social uma proposta de sociedade.” Na França, apenas os Verdes manifestam até agora um interesse real por esse setor.
As coisas parecem mudar, como atesta a nomeação de Guy Hascouët, ainda que a proximidade das eleições majoritárias possa ter sua influência… O estatuto da economia social e solidária, todavia, permanece ambíguo. Para alguns, é uma prótese social eficaz, que permite a uma sociedade de mercado amortecer os desgastes da globalização, desemprego e exclusão. Para outros, é álibi para um liberalismo que tolera, no momento, que 6 a 11 % de sua economia escape da ditadura dos mercados. Poderia ela constituir um protótipo eficaz de empresas que