Amazônia fica sem originária progressista no Congresso
Amazônia Legal concentra a maior parte dos indígenas e das candidaturas de mulheres originárias do país, mas este grupo elegeu na região apenas uma representante, que é bolsonarista. Candidatas apontam desigualdade de verba, compra de votos e violência como motivos da derrota
Vanda Witoto (Rede-AM) percorreu cerca de 3 mil quilômetros durante sua campanha para deputada federal. O trajeto, que incluiu nove municípios e doze terras indígenas (TIs) no Amazonas, foi feito por transporte fluvial, terrestre e avião comercial. Aparentemente alta, a verba de R$ 1,1 milhão foi insuficiente para divulgar a candidatura indígena em um estado com uma área de 1,57 milhão de km² (equivalente a seis estados de São Paulo) e 164 TIs, avaliou Vanda após derrota nas urnas.
A média de recurso recebida por cada um dos oito eleitos à Câmara Federal no estado foi praticamente o dobro: R$ 1,96 milhão. Todos os vitoriosos são homens, autodeclarados brancos ou pardos, de partidos conservadores, e já ocuparam cargos políticos antes. Saullo Vianna (União-AM), o terceiro mais votado, rodou cinco vezes mais do que Vanda. Com um recurso R$ 1,5 milhão superior ao da candidata indígena, o deputado estadual chegou a visitar quinze municípios em uma mesma semana na reta final da campanha. Para cumprir a maratona eleitoral, Saullo alugou três táxis aéreos por R$ 171 mil, oito vezes o valor total gasto por Vanda em transporte.
Enfermeira e pedagoga, Vanda foi a primeira amazonense a ser vacinada e se tornou símbolo no combate à Covid-19 durante a crise de oxigênio em Manaus após construir uma unidade de atendimento no Parque das Tribos, onde vivem mais de trinta etnias indígenas. Em sua primeira disputa eleitoral, ela obteve 25 mil votos, a maior votação da Rede-Psol no Amazonas. Mas a votação da federação de que Vanda faz parte foi seis vezes menor do que os 200 mil votos do quociente eleitoral necessários para eleger um deputado federal no estado.
Outra dificuldade na região é a compra de votos. Candidatos com mais recursos se aproveitam da dificuldade de deslocamento de indígenas e ribeirinhos até as urnas, oferecendo combustível em troca de votos, aponta Vanda. Maial Kaiapó (Rede-PA) testemunha a mesma dinâmica no Pará, onde percorreu cerca de 4,5 mil km durante a campanha para deputada federal.
No estado, trinta TIs são contempladas por urnas eleitorais, o que representa menos da metade dos territórios indígenas do Pará. O Tribunal Regional Eleitoral do Pará (TRE-PA) pondera que existe um número mínimo de eleitores para que uma seção possa ser instalada. Segundo o órgão, o Código Eleitoral prevê o transporte de eleitores aos locais de votação quando necessário, mas isso não acontece na prática nas TIs.
Além de se inteirar da realidade local e pedir votos, Vanda e Maial aproveitaram as viagens para levar informação sobre legislação eleitoral aos povos originários. “Muitos parentes não sabiam que compra de votos é crime”, diz Maial. Advogada, ela já passou por órgãos públicos como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e tem uma forte herança no movimento indígena.
É neta do cacique Raoni e seu pai, Paulinho Paiakan, foi um dos principais articuladores pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988. A candidatura de Maial é também um dos sinais do aumento de lideranças femininas no povo kaiapó, que escolheu O-é Kaiapó, irmã dela, como primeira cacica do subgrupo Mẽbêngôkre, localizado no sul do Pará, em 2021.
A paraense recebeu R$ 451 mil para a campanha, quatro vezes menos do que a média dos recursos dos três deputados federais mais votados no estado. A verba curta, além de restringir a circulação pelo território, também impossibilitou o investimento em segurança. Defensora de uma plataforma contra o garimpo ilegal e pela preservação da Floresta Amazônica em pleno arco do desmatamento, Maial tomou cuidado de não divulgar sua agenda antecipadamente e deixou de espalhar material de divulgação nas regiões sul e sudeste do estado, onde o presidente Jair Bolsonaro chegou a ter 79% dos votos no primeiro turno.
Além de cumprir a promessa de não demarcar terras indígenas, Bolsonaro defendeu publicamente o garimpo e o agronegócio na região amazônica e seu governo incentivou projetos de lei liberando atividades econômicas, como a mineração, em TIs. No atual governo, o desmatamento acumulado na Amazônia atingiu 31 mil km², área superior à do estado de Alagoas, segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Recorde de candidaturas
Maial e Vanda fazem parte do recorde de candidaturas indígenas em 2022, visto como uma das grandes novidades destas eleições. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 164 autodeclarados concorreram às casas legislativas em todo o país. Parte da alta é explicada pela mobilização indígena contra o histórico ataque aos seus direitos, intensificado no atual governo. Outra parte é formada por pessoas autodeclaradas indígenas, mas que integram partidos conservadores e não possuem o reconhecimento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), caso do atual vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS), eleito senador.
As mulheres se destacaram com 73 postulantes, 44,5% do total – maior parcela de candidaturas femininas dentre todas as raças. Houve uma alta de 75% em relação ao pleito de 2018 e de 189% se comparado às das eleições de 2014, quando teve início a autodeclaração de cor e raça na Justiça Eleitoral. O crescimento entre os homens foi bem mais tímido: 89% e 33% na comparação com 2014 e 2018, respectivamente.
Segundo especialistas, o crescente interesse delas na política institucional é fruto de sua maior escolarização e ascensão como lideranças das principais entidades do movimento indígena. As mulheres também são as grandes responsáveis por atividades como cultivo de alimentos e obtenção de água, percebendo os impactos da mudança climática de forma mais direta em seu dia a dia e no das futuras gerações. Assim, têm sido impelidas a ocuparem a linha de frente na defesa de seus territórios.
Dos nove indígenas eleitos este ano, cinco são mulheres. A Amazônia Legal, onde nove estados concentram 55% da população originária do país, reuniu quase metade das candidaturas femininas indígenas. Porém, apenas uma delas foi eleita: a tenente bolsonarista Silvia Waiãpi (PL-AP). Com pouco mais de 5 mil votos, a menor votação dentre as indígenas eleitas, ela foi puxada pelo PL e representará o Amapá na Câmara Federal.
A eleição de Silvia é questionada pelo Ministério Público Eleitoral, que a acusa de pagar uma harmonização facial com R$ 9 mil dos R$ 127 mil dos recursos de sua campanha. Silvia não atendeu aos pedidos de entrevista da reportagem. Em um vídeo divulgado em suas redes sociais, ela diz que vai provar na Justiça que as denúncias foram forjadas.
Falta de prioridade
Além dos desafios de divulgar a candidatura em um território continental, da desigualdade de recursos e da concorrência da compra de votos, Vanda aponta que as mulheres indígenas da Amazônia enfrentam mais uma dificuldade: suas candidaturas não seriam tão priorizadas pelo movimento indígena quanto as de grandes centros urbanos do país.
A Apib conseguiu eleger Sônia Guajajara (SP) e Célia Xakriabá (MG), ambas deputadas federais pelo Psol. A entidade lançou trinta candidaturas aos legislativos estadual e federal em vinte estados com uma pauta comum em defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas. Delas, dezesseis eram de estados da Amazônia Legal e 25, candidaturas femininas, denominadas de “Bancada do Cocar”.
“Nós estivemos em Brasília nesta construção da ‘Bancada do Cocar’’ mas, na prática, não houve nenhum fortalecimento real das candidaturas, sobretudo aqui do Norte”, disse Vanda. Segundo ela, a Apib e as organizações regionais que a compõem, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), fizeram pouca divulgação das candidaturas amazônicas em suas redes sociais, por exemplo.
“Eleger Sônia e Célia é um avanço muito importante, mas faltou ação concreta para as indígenas na Amazônia”, afirmou a amazonense, que cobra das entidades o fortalecimento mais equânime das candidaturas indígenas, especialmente na parcela onde essa população é maior.
Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, diz que a organização fez o possível diante das suas limitações estratégicas, de pessoal e de orçamento. E que a configuração do processo eleitoral envolve fatores que fogem ao controle do movimento indígena, como distribuição do fundo eleitoral, a disputa interna por prioridade nos partidos e o sistema proporcional de votos.
O funcionamento desse sistema é um dos motivos para a não reeleição de Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira indígena eleita deputada federal após um intervalo de 36 anos. Ela obteve 11.221 votos, mais do que os 8.491 do pleito anterior, o que a colocou à frente de três candidatos eleitos em número absoluto de votos. Mas a federação Rede-Psol não atingiu os 36 mil votos do quociente eleitoral, impedindo sua eleição.
Kleber avalia como positivo o saldo do projeto “Aldear a Política”, mas ressalta que a Apib levará as críticas em conta para provocar mudanças nas próximas eleições. Uma das metas para fortalecer as candidaturas na Amazônia a partir de 2023, segundo ele, é ampliar a formação política das lideranças locais, aumentando seu conhecimento sobre o contexto eleitoral, e do eleitorado indígena, acerca da importância de eleger parentes que defendam os interesses socioambientais. Maial e Vanda também veem a formação política como essencial para reverter o resultado das urnas e planejam integrar projetos nesse sentido.
Voto urbano e não indígena
Mesmo desejados e perseguidos por Maial e Vanda, os votos indígenas seriam insuficientes para eleger as duas candidatas. No Amazonas, maior estado indígena do Brasil, Vanda precisaria que os cerca de 200 mil indígenas votassem nela para se aproximar de ocupar uma cadeira na Câmara Federal. No Pará, os 60 mil indígenas correspondem a apenas 25% dos votos necessários para se eleger deputada federal, sendo que o TRE-PA contabiliza como eleitorado indígena no estado apenas 10 mil pessoas.
Maial obteve 6.628 votos no estado. A votação obtida pela Rede-Psol no Pará foi de 100 mil votos a menos do que o quociente eleitoral de 256 mil necessário para eleger um deputado federal por lá. Vanda fez uma campanha urbana extensa em Manaus, mirando o público não indígena, e acabou tendo mais votos do que a paraense, que concentrou sua caminhada pelo interior de seu estado. Maial também foi prejudicada pelo tempo reduzido de campanha após se afastar por uma semana para se recuperar da malária, contraída em meio à corrida eleitoral.
Reconhecida nacional e internacionalmente pela defesa das pautas socioambientais, e de origem amazônica, Sônia Guajajara tomou a decisão estratégica de lançar sua candidatura por São Paulo, onde foi eleita com mais de 156 mil votos. É quase metade do quociente eleitoral necessário para a eleição à Câmara Federal pelo estado. A federação Rede-Psol em São Paulo, encabeçada por Guilherme Boulos, teve mais de 1 milhão de votos, completando o necessário para garantir a cadeira da líder indígena.
Diferente dos estados da região amazônica, a locomoção por São Paulo é mais fácil e rápida. Além disso, as melhores condições econômicas de parte do eleitorado possibilitam um voto desconectado de resultados imediatos, como acesso a vagas em creches. É o que explica a cientista política Débora Thomé, pesquisadora do estudo +Representatividade, do Instituto Update. “A Marielle Franco não foi eleita pela Maré, comunidade de onde vinha, mas pela zona sul. Pessoas de regiões mais ricas precisam menos do Estado, então, elas conseguem votar mais pela ideologia e por grandes causas”, afirma.
“Assim, pode ser mais fácil que São Paulo eleja uma mulher indígena amazônica do que estados da própria região onde a maior parte da população forma uma rede clientelar com seus deputados”, diz Débora, acrescentando que o eleitorado na Amazônia, dominada pelo agronegócio e pela mineração, acaba votando majoritariamente em candidatos defensores dessas pautas. Seis estados da região elegeram governadores bolsonaristas em 2022.
Especialistas apontam que ter sido eleita por São Paulo não deve impedir Sônia de lutar pela Amazônia no Congresso. “A defesa da Amazônia é do Brasil e de todos povos indígenas”, endossa a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, acreana também eleita deputada federal por São Paulo este ano. Ela cita sua intenção de defender, junto da “Bancada do Cocar” e demais progressistas, pautas capazes de beneficiar o bioma amazônico, como uma reforma tributária que incentive a bioeconomia.
Mas emplacar essas pautas não será tarefa fácil, já que Marina, Sônia e Célia enfrentarão um Congresso ainda mais conservador em 2023. Somente a Bancada Amazônica perdeu treze deputados considerados verdes, segundo a plataforma Farol Verde. Na Câmara, deputados alinhados às pautas climáticas e socioambientais são 43% dos eleitos contra 48% da bancada bolsonarista. O pêndulo deve se equilibrar um pouco mais com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, que prometeu lutar contra o garimpo ilegal nas TIs, retomar as demarcações dos territórios, fortalecer os órgão indigenistas e incluir ministros indígenas em seu governo.
“Chico Mendes não conseguiu nem o mandato de deputado estadual no Acre”, diz Marina sobre as dificuldades enfrentadas por candidaturas progressistas em uma Amazônia dominada pelo clientelismo, a mineração e o agronegócio. “Onde o conflito está instaurado é mais difícil, especialmente para quem está na linha de frente. Criar estratégias para superar essa luta desigual é o nosso grande desafio”, arremata.
A Apib pretende diminuir o fosso entre as candidaturas indígenas dos grandes centros econômicos e das demais regiões do país se empenhando em eleger mais representantes nas assembleias legislativas, câmaras municipais e poderes executivos. Nas assembleias dos estados amazônicos, por exemplo, são discutidos projetos para liberação de garimpo em TIs. Com Célia e Sônia no Congresso, a entidade também planeja levar aos parlamentares a proposta de voto indígena unificado. O objetivo é que estados de ampla população originária tenham representação garantida. “Em Roraima, temos oito deputados federais de partidos que historicamente votam contra os direitos indígenas”, explica. “Isso não nos contempla e uma das nossas estratégias será lutar contra isso no Congresso.”
*Martina Medina é jornalista. Esta história foi produzida com o apoio do Fundo para o Jornalismo Voltado a Florestas Tropicais, em parceria com o Pulitzer Center.
Coordenação: Gabriela Portilho e Martina Medina
Jornalismo de dados: Cecília do Lago e Martina Medina
Consultoria indígena: Olinda Muniz
Fotografia: Gabriela Portilho
Texto: Martina Medina
Infografia: Ana Beatriz Pádua
Especialistas consultados: Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami; Gersem Baniwa, antropólogo, filósofo e coordenador geral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação (MEC); Ingrid Farias, coordenadora do programa +Representatividade, do Instituto Update; Márcio Santilli, sócio fundador do Instituto Socioambiental (ISA); Tauá Pires, coordenadora da área de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil; e Teresa Harari, mestre em administração pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).