Amazônia – laboratório das biocivilizações do futuro
Se os mercados são incapazes de governar as sociedades, é hora de reinventar a política. Está nas mãos do Brasil uma oportunidade para preservar a floresta e oferecer vida digna a seus milhões de habitantes (texto-base para a conferência de 17 de novembro, em São Paulo)Ignacy Sachs
O próximo Fórum Social Mundial se reunirá em Belém, em Janeiro 2009. A escolha
do lugar é altamente simbólica.
1. Somos todos amazônidas
Somos todos amazônidas, já que o futuro da nossa espécie no planeta Terra dependerá, em boa medida, do destino que será dado à floresta – grande dispensadora de climas e
reguladora do regime hídrico, além de deter uma riquíssima biodiversidade. A Amazônia não é o Jardim do Éden nem o inferno verde descrito por seus fãs e detratores. O
desmatamento da Amazônia deve parar, se quisermos realmente evitar mudanças climáticas
irreversíveis e deletérias. Como bem diz Virgílio Viana, “não podemos assistir passivamente à
história florestal da Mata Atlântica repetir-se na Amazônia” [1]. Ao mesmo tempo, devemos rechaçar categoricamente a idéia de transformar a Amazônia numa mega-reserva natural povoada por populações indígenas esparsas. E afastar o viés fortememente malthusiano da assim chamada “ecologia profunda”, para a qual a atual população humana é várias vezes superior à capacidade de carga da biosfera [2]. Faço minhas as palavras que abrem o livro de Mark London
e Brian Kelly:
“Para preservar a Amazônia, é preciso tocá-la. Não se pode erguer uma cerca a seu
redor para impedir a entrada das pessoas, nem expedir ordens de despejo para os vinte
milhões que nela residem. Há que usá-la com cuidado nos locais em que é possível usá-la. E
há que preservá-la nos lugares em que ela deve ser preservada. Ela não é nem um museu nem
um terreno a ser indiscriminadamente devastado e desenvolvido sem critério” [3].
Cerca de 25 milhões de amazônidas vivem hoje na Amazônia brasileira, muitos deles em índices de miséria, que os transforma na espécie mais ameaçada, como diz o poeta Thiago
de Mello. Esse escândalo deve parar e havemos de pensar a Amazônia do futuro, com 30,
40, 50 milhões de habitantes prósperos. Sem nos descuidar da manutenção em pé da floresta existente.
Somos todos amazônidas, sem que isto justifique a internacionalização da Amazônia.
Bem ao contrário, o porvir da Amazônia é responsabilidade e, direi, privilégio da Nação
brasileira. Caberá a ela, no seu próprio interesse e no de toda a humanidade, colocar a
Amazônia na rota de desenvolvimento ambientalmente sustentável e socialmente includente,
transformando-a num laboratório pioneiro das biocivilizações do futuro.
A nossa ambição há de ser construir, a partir desse gigantesco manancial de
biodiversidade, uma biocivilização socialmente includente e ambientalmente sustentável [4], baseada nos conceitos da agroecologia e da revolução duplamente verde [5], promovendo os usos múltiplos da biomassa como alimento para homens e animais, adubo verde, bioenergias, materiais de construção, fibras, plásticos, um leque cada vez mais amplo de bioprodutos da química verde saindo das biorefinarias, fármacos e cosméticos. Para tanto, devemos com urgência aprender a fazer o bom uso da natureza [6]. A melhor maneira de proteger e conservar a natureza, é conciliá-la com a realização de objetivos sociais legítimos numa atitude antropocêntrica assumida e responsável.
Em outras palavras, convém fazer da energia solar captada por meio da fotossíntese, a
pedra angular da biocivilização. Não se trata de uma volta às “grandes civilizações do
vegetal” da Antiguidade, de que falava Pierre Gourou, e sim de um pulo de gato
(leapfrogging) alavancado pelas conquistas da ciência e tecnologia [7]. Os países tropicais, em geral, e a Amazônia, em particular, vão beneficiar-se dessa empreitada de vantagens comparativas naturais permanentes, a serem potencializadas pela pesquisa e pela organização social apropriada.
A Amazônia tem condições de prestar um duplo serviço à humanidade: ambiental e econômico. É legítimo reivindicar a remuneração dos serviços ambientais prestados pela floresta amazônica mantida em pé a todos os passageiros da nave espacial Terra, inclusive aos brasileiros que vivem fora da Amazônia, idealmente por meio de uma parcela de um imposto universal sobre o carbono emitido [8].
2. A grande transição
Convém ressituar o debate numa perspectiva macro-histórica, que vai além da longue
durée dos historiadores da École des Annales, abrangendo toda a co-existência da nossa
espécie com a biosfera. Clive Ponting fala de duas grandes cesuras [9]:
— a domesticação, há doze milênios, das plantas e dos animais, chamada de
revolução neolítica por Gordon Childe [10] (na realidade, um processo que se estendeu por séculos);
— a introdução, a partir do século 17, das energias fósseis, primeiro o carvão,
seguido de petróleo e gás, base das revoluções industriais que se estendem até hoje
e que transformaram radicalmente o mundo nos planos demográfico, econômico,
social e geopolítico e nos levaram à situação que vivenciamos hoje [11].
A boa nova é que estamos no começo de uma terceira grande transição – a saída da era
do petróleo e, se formos inteligentes, do conjunto das energias fósseis. Não porque estas virão a faltar (o carvão é ainda abundante), mas pela necessidade urgente de reduzir as emissões de
gases de efeito-estufa para mitigar as conseqüências do aquecimento global, o que nos força a
buscar novos paradigmas caracterizados por uma maior sobriedade e eficiência energética e
pela substituição de energias fósseis pelas renováveis [12]. Sem entrar no debate sobre o pico do petróleo, se vai acontecer dentro dos próximos anos ou demandará mais um par de decênios, é razoável supor que o seu preço não mais voltará a cair significativamente abaixo de 80 dólares o barril, facilitando assim a promoção das energias alternativas.
No imediato, o petróleo caro, repercutindo nos custos de transporte e nos preços de
insumos agrícolas, se traduz pelo aumento dos preços de alimentos e uma carestia geral,
agravando ainda mais a situação calamitosa das populações pobres, principalmente dos
habitantes do planeta-favela que dependem para o seu sustento diário de gêneros adquiridos
no mercado. Convém assisti-las com a maior urgência, sem perder de vista que preços mais
remunerativos, repercutidos ao nível dos pequenos produtores, contribuiriam para a
consolidação e o fortalecimento da agricultura familiar. À condição de que as multinacionais
operando nos mercados de grãos não sejam as únicas beneficiadas pelo novo patamar de
preços.
3. Quantas Amazônias?
Lembremos alguns dados de base. A Amazônia Legal, instituída em 1953,
compreende 5,2 milhões de km², ou seja, 61% do território nacional, com uma população de
23 milhões de habitantes. O bioma amazônico propriamente dito é de 4,1 milhões de km² e
uma população de 13 milhões.
Segundo um estudo recente do IBGE, a Amazônia Legal é composta de 61% de
floresta (3.016.363 km²), 14% de savana, 10% de savana estépica e 15% (748.698 km²) de
área antrópica. Nessa última, a pecuária responde por 8%, agricultura por 2% e a vegetação
secundária por 5%. As áreas urbanas ocupam 0,05% [13].
De acordo com dados do INPE, a área desmatada acumulada é superior a 660 mil km²,
aproximadamente 13% da Amazônia Legal.
Um estudo do Imazon apresenta um corte diferente [14]:
O estoque de reservas minerais conhecidas foi estimado em 15 trilhões de dólares e o
estoque de madeira em 8,6 trilhões de dólares [15].
De quantas Amazônias se trata para fins operacionais? O Professor Aziz Ab?Saber,
individualizou 23 células espaciais [16] com base em critérios fisiográficos e ecológicos. Essas, por sua vez, se subdividem em áreas com diferentes graus de criticidade ou potencialidade.
Estamos longe das divisões administrativas existentes. Daí a necessidade de elaborar
estratégias e planos (sub)regionais coerentes para subseqüentemente integrá-los a um
macroplano diretor de escala amazônica.
A diretriz é a busca num futuro próximo de desmatamento zero, seguido por
Reflorestamento [17], com metas de redução e plantio estimadas realisticamente e consignadas num compromisso solene entre todos os protagonistas do processo de desenvolvimento: União, Estados, governos municipais, empresas, bancos, entidades da sociedade civil organizada. Para tanto, convém concentrar o máximo das atividades econômicas nas áreas já antropizadas, fazendo do Arco do Desmatamento uma reserva de desenvolvimento
socialmente includente e ambientalmente sustentável e, ao mesmo tempo, valorizando no
plano econômico a floresta em pé pelo manejo racional e a remuneração dos serviços
ambientais.
Em outras palavras, a fronteira agrícola na Amazônia já está fechada. Não se deve
tolerar de maneira alguma a sua expansão, motivada pelo fato de que o desmatamento é mais
barato do que o aproveitamento das áreas alteradas. Fábio Feldmann e Roberto Smeraldi
estimaram que para tornar produtivos os 160 mil km² de áreas subutilizadas, seriam
necessários em 10 anos 16 bilhões de reais, dos quais 75% vindos do governo, um valor
perfeitamente viável [18]. O desenvolvimento da Amazônia deve ser feito essencialmente a partir da floresta [19].
4. Quantos amazônidas amanhã?
Longe de mim a intenção de reabrir os debates de triste memória sobre o ótimo
demográfico e o espaço vital (Lebensraum). Porém, não podemos nos omitir de uma reflexão
sobre a ordem de grandeza da futura população amazônica que vai depender do crescimento
natural e do balanço dos fluxos migratórios com o resto do país e com o exterior. Quantas
oportunidades de trabalho decente serão criadas na Amazônia, compatíveis com o imperativo
de manter, ou até incrementar, os serviços ambientais que a floresta amazônica presta aos
brasileiros e a toda a humanidade? Que rumo tomarão as grandes cidades? Como vai evoluir a
população indígena, que vem conhecendo ultimamente taxas de crescimento altas?
Não tenho, por razões óbvias, respostas a tais indagações. Irei limitar-me a observar,
que as áreas rurais no Arco do Desmatamento comportam dezenas de milhões de hectares de
terras aptas para agro silvicultura. Quanto melhor forem aproveitadas, tanto menor será a
pressão sobre a floresta em pé. Segundo o ministro Mangabeira Unger, é possível dobrar a
área atualmente cultivada na Amazônia e triplicar o produto agrícola sem tocar numa árvore [20].
Em tese, até 20 milhões de hectares de terras seriam aptas para plantar o dendê, sem
cortar uma árvore da floresta nativa. O dendê gera para cada 10 hectares um emprego
permanente para o ano todo para o chefe da família. Um assentamento com 5 mil hectares de dendê, o mínimo necessário para justificar a implantação de uma unidade de processamento, permitiria assentar 500 famílias.
Ao terem acesso a outros 10 hectares de terra, seus membros encontrariam oportunidades adicionais de trabalho em outras atividades agrosilvopastoris para autoconsumo
e mercado, adaptadas aos ecossistemas amazônicos [21]. Isso sem falar dos empregos na unidade de processamento do dendê, nos serviços técnicos e de transporte, em pequenas agroindústrias, no comércio e nos serviços sociais e pessoais [22] da agrovila assim criada com uma população de cerca de 3 mil pessoas.
Esse modelo hipotético pode servir para outros cultivos – de preferência, perenes. Aliás,
é possível que o dendê venha a ser destronado por outras oleaginosas nativas da Amazônia
com rendimentos mais altos; há várias pesquisas em curso. Por outro lado, é desejável que
caminhemos para modelos de agro silvicultura baseados em sistemas mais complexos de
produção conjunta de alimentos, energia e insumos para a produção de um leque cada vez
mais amplo de bioprodutos, com processamento local sempre que possível.
Extrapolando o número de oportunidades de trabalho decente usados no exemplo
acima, a população rural da Amazônia atingiria ou até ultrapassaria nos meados do século a
casa dos 20 milhões de habitantes, com pelo menos outros tantos nas cidades e um
contingente bem menor dos povos da floresta e dos habitantes dos diferentes tipos de reservas
ambientais e extrativistas.
Bertha Becker tem razão em dizer que a floresta amazônica se aparenta a uma “selva
urbanizada” – com 69% da sua população vivendo em núcleos urbanos [23] – embora os dados relativos à urbanização estejam sobre-estimando o grau de urbanização em virtude dos critérios adotados pelo IBGE [24]. Á primeira vista, esse fenômeno próprio à Amazônia,
favorece a manutenção da floresta em pé, já que “a vocação da Amazônia é o manejo
florestal e a industrialização de produtos florestais” [25].
O Estado de Amazonas se orgulha de ter guardado a maior cobertura florestal pela
razão de que mais de três quartos de sua população se concentra na cidade de Manaus, sede de
um grande pólo industrial. A Zona Franca de Manaus, implantada em 1967, responde hoje por
80 mil empregos diretos e 80% do PIB estadual. No entanto, ela se constitui em grande parte
numa porta de entrada no Brasil de produtos eletrônicos, eletrodomésticos, motocicletas,
cujos produtores aproveitaram-se das benesses oferecidas pela lei que a regulamentou,
severamente criticadas no passado por vários economistas. A transformação de Manaus num
centro de agregação de valor aos produtos da região exportados para as demais regiões do
Brasil e o mundo afora está mal começando e vai exigir no futuro grandes investimentos.
5. Novos modelos de ocupação territorial
Em vez de levar ao seu limite lógico o conceito de floresta urbanizada, convém buscar
novos modelos de ocupação territorial: evitar por um lado os extremos de grandes núcleos
urbanos mal articulados com o território circundante e, por outro, a dispersão excessiva das
populações rurais.
As densidades muito baixas de população [26] inviabilizam ou tornam muito difícil o seu acesso aos serviços sociais de base (educação e saúde), por muito que se possa fazer, com equipamentos flutuantes sobre a rede fluvial. A título de exemplo, há cerca de 300 mil comunidades isoladas na Amazônia. Como levar a elas energia elétrica sem a qual não será tampouco possível implantar projetos de educação a distância? O modelo de oferta de energia elétrica para a região amazônica beneficiou as cidades, porém deixou fora cerca de 20 milhões de pessoas. Em contrapartida, incentivou o uso do óleo diesel para gerar energia por conta de um subsídio chamado Conta Consumo de Combustível, enquanto sistemas isolados de geração descentralizada de energia solar, mini-centrais hidrelétricas e pequenas centrais
eólicas têm sido pouco difundidos [27]. Além da dificuldade de levar as amenidades da vida
moderna a essas comunidades isoladas, coloca-se o problema do choque cultural das imagens
transmitidas pela televisão que começa a chegar aos rincões mais afastados.
Não podemos portanto nos omitir de repensar toda a política de criação de reservas
naturais e de territórios indígenas. As intenções são generosas, mas seria melhor limitar a área das reservas ambientais e, ao mesmo tempo, tornar mais efetivo o seu controle, associando a
essa tarefa as populações – a Bolsa Floresta do Estado de Amazonas constitui o primeiro
passo modesto nesta direção. O futuro pertence mais às formas coletivas de gestão dos
recursos naturais do que ao policiamento aperfeiçoado do seu uso por agentes privados [28].
Um estudo recente da Embrapa sobre o alcance territorial da legislação ambiental
chegou a uma conclusão surpreendente. Dos 4,2 milhões de km² do bioma Amazônia, menos
de 289 mil km² estariam legalmente disponíveis para ocupação intensiva, seja agrícola, urbana
ou industrial em virtude da extensão das reservas ambientais e indígenas já existentes, além de
que novas unidades de conservação estão em estudo [29].
Ademais, o Ibama não está em condições de fiscalizar as reservas já delimitadas. As
unidades de conservação federais na Amazônia compreendem 180 milhões de hectares,
porém o Ibama tem um efetivo de 400 homens, ou seja um para 450 mil hectares e um
orçamento de um real para cada 6 hectares [30]. Um diagnóstico elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo Instituto Chico Mendes mostrou que das 299 unidades de conservação do país, 82 não têm gestor responsável, 173 não contam com fiscais e 53 não seguem planos de manejo [31].
Por outro lado, para acabar com o “caldeirão de insegurança jurídica” (R.
Mangabeira Unger) e a ilegalidade reinante, não basta organizar ações repressivas. A
operação “Arco de fogo”, lançada em junho 2008 em Altamira, que causou o fechamento de
mais de 3 mil postos de trabalho no município, foi mal recebida pela população. A prefeita de
Altamira disse que antes de qualquer ação policial, o governo deveria enviar uma equipe de
técnicos para promover a regularização ambiental, orientar o setor produtivo, promover a
capacitação profissional e criar novas oportunidades de trabalho [32].
A multiplicação de reservas naturais não deve servir de biombo a uma apropriação
predatória de recursos naturais alhures [33]. Por outro lado, devemos nos desfazer do mito da natureza intocada que tão fortemente impregnou o pensamento conservacionista [34].
Outro preconceito, freqüente nos meios ambientalistas, se refere à utilização das
espécies exóticas, como se a disseminação de espécies úteis através do mundo não fosse um
fator importante do processo civilizatório. Incriminar as espécies exóticas no Brasil, em vez
de refletir sobre o grau de sua adaptação aos biomas brasileiros, não deixa de ser curioso, já
que o café, o coco, a cana-de-açúcar, o dendê, a laranja, o eucalipto, a soja, carros chefes do
agronegócio brasileiro, são todos oriundos de outros continentes, sem esquecer o tão
importante gado zebu, originário da Índia.
Da mesma maneira, convém reabilitar as “florestas plantadas”, um termo impróprio
para “plantações arbóreas”, porque estas, como já foi dito, não recriam a complexidade dos
ecossistemas florestais. Assim mesmo, elas conjugam objetivos econômicos legítimos com a
cobertura dos solos. Ademais, convém submetê-las a condicionamentos tais como a
restauração das matas ciliares, a preservação dos rios e das nascentes, o estabelecimento de
corredores ecológicos e o respeito das reservas naturais legais [35]. O potencial para uma forte
expansão desse tipo de plantações arbóreas é enorme, conquanto se saiba evitar a criação de
grandes latifúndios monoculturais, indesejáveis pelos seus aspectos tanto ambientais quanto
socais.
Daí a importância de contratos de fomento oferecidos pelas indústrias de derivados de
madeira, de papel e celulose, de biocombustíveis de segunda geração e de química verde aos
pequenos fornecedores de madeira, produzida em mosaicos florestais consorciados com
outras atividades agrosilvopastorís [36].
Devemos voltar à lógica do plano Floram, lançado pelo Instituto de Estudos
Avançados de USP em 1990, [37] que propunha o reflorestamento produtivo de áreas
desmatadas fora da região amazônica para preservar assim a mata nativa na Amazônia. Com o
avanço do desmatamento na Amazônia ocorrido nos últimos vinte anos, as plantações
arbóreas devem também ser contempladas naquela região.
De uma maneira geral, na luta contra a mudança climática o nosso principal aliado são
as árvores. Devemos aprender a plantá-las em todos os espaços disponíveis, rurais e urbanos,
públicos e privados, para fins econômicos e ornamentais, criando uma cultura da árvore,
tomando como exemplos ações sociais tais como o Chipko Movement, na Índia, os empates
conduzidos por Chico Mendes, no Brasil e o Greenbelt Movement, na Kénia, que valeu o
Prémio Nobel da paz a Wangari Maathari. A campanha do PNUMA (Plant for the Planet:
Billion Tree Campaign) merece todo o apoio. Até agora foram plantadas cerca de 2,3 bilhões
de árvores, as operações em curso levarão esse total a 3,9 bilhões e o objetivo para o ano 2009
e de alcançar 7 bilhões [38].
A respeito dos territórios indígenas já demarcados, que totalizam 13% do território
nacional, surgem várias indagações. Que deve ser feito para protegê-los efetivamente? Como
proceder no caso de descoberta de jazidas minerais dentro desses territórios? Como evitar a
propagação do cultivo de cocaína? [39] Que propostas temos para a evolução socioeconômica
das populações indígenas além da mera sobrevivência econômica? Como inserir os índios no
restante da sociedade? Como protegê-los dos demais brasileiros que cobiçam suas terras e
dequeles que têm preconceito contra esses povos? Ao levantar estas questões, Márcio Pereira
Gomes, ex-presidente da FUNAI, insistiu sobre a necessidade de se ter instituições fortes
dentro do Estado brasileiro: uma FUNAI forte, um Ibama forte, um Incra determinado, uma
Embrapa com força para ajudar os povos da floresta a explorar os seus recursos sem
devastação e, por fim, um Exército forte [40] A conta é grande, à altura do perigo de condenar as
gerações sucessivas de índios a viver em museus antropológicos a céu aberto.
Em todo o caso, devemos rejeitar categoricamente a idéia de que a solução
ambientalmente correta para o futuro da Amazônia seja a urbanização desenfreada, como se a
megacidade fosse o melhor meio de proteger a floresta, como sugere Oliver Hillel, coordenador de biodiversidade da ONU. Para ele, uma São Paulo faria bem à Amazônia do
ponto de vista do uso dos recursos naturais. Se o planejamento for bem feito, uma grande
pegada ecológica metropolitana vale mais do que várias pegadas menores espalhadas pela
floresta [41]. Como vários outros especialistas da ONU, ele acredita na inevitabilidade e nas
virtudes da urbanização contínua, assimilada ao desenvolvimento, prevendo que em 2030,
70% das pessoas morarão nas cidades. Aparentemente, o conceito de cidade empregado por
Hillel incluí as favelas povoadas pelos refugiados do campo [42]. Proteger a biodiversidade dessa
maneira implica custos sociais exorbitantes.
Na criação de novos contínuos rurais-urbanos, não se pode evitar a construção de
estradas. A experiência mostra que elas têm um impacto devastador sobre as florestas que
atravessam, incentivando a colonização selvagem dos seus contornos. Para Virgílio Viana, “a
saída para mitigar o impacto ambiental é a criação de zonas de descompressão em torno de
novos projetos, limitando o trânsito e a fixação humana” [43]. Levar à letra essa proposta
significaria adotar um padrão de desenvolvimento por enclaves perenes ou temporários no
caso da mineração (até o esgotamento da jazida) [44]. Uma solução menos drástica consistiria na
adoção de um planejamento detalhado do entorno das estradas, privilegiando ao longo delas
projetos agrosilvopastoris com forte participação de mosaicos de plantações arbóreas de uso
econômico.
6. As pedras no caminho
Pierre Gourou chamou o mundo tropical de “terras de boa esperança” [45]. Para que a
Amazônia faça jus a essa denominação, é preciso começar por remover muitas pedras do
caminho. Já falamos da complexidade da política de criação de reservas naturais e áreas
indígenas, e do sinal equivocado do pólo industrial de Manaus, porta de entrada para produtos
vindos do Exterior e não de saída para produtos amazônicos com alto valor agregado. Segue
uma relação incompleta das demais pedras no caminho.
Ausência de regularização fundiária
O ministro Mangabeira Unger vem insistindo com razão sobre a necessidade urgente
de promover a regularização fundiária e, dessa maneira, tirar a Amazônia do caldeirão de
insegurança jurídica em que se encontra, reduzir o reino da ilegalidade e da violência que ali
imperam. A União e os Estados ignoram quais são as terras que lhes pertencem, os grileiros se
apoderaram de vastas extensões. Na maioria das vezes, o prejudicado é o pequeno posseiro.
Os conflitos de uso do território constituem um desafio difícil às políticas públicas.
Segundo a Exame, 1,8 milhões de km² da Amazônia ainda não foram devidamente
Mapeados [46]. O Incra reconheceu num estudo recente que não tem dados sobre 710 mil km² da
floresta pertencentes à União, não sabe se estão na mão de posseiros ou de grileiros, muito
menos o que está sendo ali produzido. O Pará lidera o ranking dos Estados com a maior
quantidade de terrenos desconhecidos do ponto de visto da situação fundiária, com 288
mil km² (23% da área total do Estado) [47]. Apenas 4% das terras privadas têm títulos de
propriedade válidos [48].
As técnicas modernas de georreferenciamento deveriam permitir um rápido avanço da
regularização fundiária. Ao mesmo tempo convém atentar ao perigo de validar as operações
de grilagem mediante distribuição de títulos legais de propriedade aos grileiros [49].
Pari passou com a regularização fundiária, deve-se reabrir o debate sobre o imposto
territorial progressivo que nunca funcionou bem no Brasil e ultimamente foi relegado à esfera
municipal.
Em tese, a imposição às terras improdutivas de alíquotas fortemente progressivas, em
função do tamanho da propriedade e dos anos de não uso, poderia se constituir em uma
ferramenta importante na condução de reforma agrária, sempre que se tome o cuidado de não
aceitar o desmatamento como critério de produtividade, como ocorreu no passado. O
proprietário é colocado ante a alternativa: ou bem usar produtivamente a sua terra, sujeito a
critérios ambientais e sociais explícitos e gerar dessa maneira empregos e renda, ou então vendê-la, sendo que um banco público poderia exercer o direito de preempção para constituir
um fundo de terras para a reforma agrária.
A regularização fundiária deverá dar um novo impulso à reforma agrária e ao
fortalecimento da agricultura familiar, pondo um freio à concentração da propriedade rural na
mão de latifundiários ou de fundos de investimento, figura central do hipercapitalismo rural
do século 21. Em boa hora, o governo brasileiro cogita instituir barreiras legais à compra de
terras por pessoas físicas ou empresas estrangeiras; fica para ver como serão tratadas as
empresas brasileiras com acionistas estrangeiros majoritários.
Ao promover novos assentamentos de reforma agrária, convém tirar todas as lições do
passado, tanto positivas quanto negativas. Há razões para propor logo no início a instalação de
lotes familiares de produção alimentar para autoconsumo e mercado nos moldes dos projetos
agroecológicos integrados e sustentáveis, advogados pela Rede de Tecnologias Sociais da
Fundação Banco do Brasil e requerendo aproximadamente meio hectare por família. Ao
mesmo tempo, deve-se incentivar o mutirão assistido para a construção das moradias e a
busca de novos modelos de escola rural.
O “garimpo florestal”
O termo é de Virgílio Viana e denota as várias formas de apropriação predatória dos
recursos florestais, que continuam a tradição secular da extração das drogas do sertão.
Obviamente, deve-se por um fim a essas práticas devastadoras da floresta. Para tanto, “o
manejo florestal precisa ser descomplicado e desburocratizado. Precisa combinar a sabedoria
milenar de nossas populações tradicionais e indígenas com o mais avançado conhecimento
científico e técnico em ecologia e manejo de ecossistemas naturais. Precisa ser apoiado por
polílicas sérias, participativas, consistentes e eficazes.” [50].
Além da regularização fundiária, segundo o mesmo autor, o manejo florestal vai exigir
assistência técnica, treinamento e profissionalização dos trabalhadores florestais, linhas de
crédito para pequenos e médios empreendedores, apoio à agricultura famliar com sistemas
agroflorestais (sem esquecer a piscicultura) energia elétrica limpa a partir de residúos
florestais, promoção dos produtos não-madeireiros oriundos da floresta com especial destaque
para os mercados institucionais (compra por prefeituras, Estados e União), por fim,
desenvolvimento da base científica e tecnológica.
Colonização pelas patas dos bois
Com muita razão, João Meirelles Filho aponta a pecuária bovina extensiva como uma
das onze bestas da apocalipse responsáveis pelo atraso da Amazônia [51], fruto combinado de
políticas equivocadas de ocupação do território por parte dos governos militares, da vantagem
para o pequeno posseiro de transformar em pasto sujo a roça que deixa de produzir e da
cobiça dos grandes fazendeiros. Como bem diz o ministro Carlos Minc, “o pirata não é o boi,
é o dono do boi, a pessoa que usa uma área preservada, uma reserva, não paga pela terra, não
paga imposto, não paga nada. Ganha dinheiro criando boi em área devastada ou em área
protegida.” [52].
Entre 1993 e 2005, o rebanho bovino passou de 26,6 para 63 milhões de cabeças e nos
últimos três anos deu mais um salto com conseqüências devastadoras, dado o caráter
extremamente extensivo dessa pecuária e a necessidade constante de seguir derrubando a
floresta para criar novos pastos. Isso com resultados extremamente modestos no que diz
respeito ao emprego: quando muito um por mil hectares de pecuária tradicional, que Meirelles
Filho contrapõe aos 100 empregos que poderia gerar na mesma área a agricultura familiar ou
os 500 postos de trabalho ao se adotar as práticas de agroecologia e permacultura.
As pastagens ocupam cerca de 700 mil km² ou 13,5% da Amazônia Legal. Nessa área,
foram produzidas, em 2006, 2,7 milhões de toneladas de carne, o equivalente a 36% da
produção nacional, sendo que 73% dos 74 milhões de cabeças de gado estão na mata [53]
Com a maior urgência, deve-se proclamar a moratória sobre a criação de novos pastos,
obrigando ainda os frigoríficos a certificar a origem das carnes postas no mercado. Ao mesmo
tempo, os pecuaristas devem ser forçados por instrumentos fiscais e creditícios a colocar um
número maior de rezes por hectare e a converter os pastos assim liberados em operações de
reflorestamento produtivo.
O garimpo e os enclaves mineiros
A Amazônia é uma gigantesca província mineral, cuja exploração até hoje tem trazido
poucos resultados para a sua população, como tem apontado Lúcio Flávio Pinto. Um bom exemplo é o município de Parauapebas, com 7.000 km², 20 mil habitantes e um Índice de
Desenvolvimento Humano de 0,741, o mais alto do Estado do Pará. Ali se encontra a melhor
jazida de minério de ferro no mundo, de propriedade da Companhia Vale do Rio Doce. Em
2005, o município produziu 80 milhões de toneladas de minério de ferro e registrou uma
exportação no valor de 1,3 bilhão de dólares.
No entanto, a descrição das condições de vida na cidade não condiz com esses dados
econômicos. Parauapebas padece de um dos maiores índices de lepra e de leishmaniose do
mundo. A taxa de desocupação é de 15%. Obviamente, a riqueza produzida no município
passa por um filtro estreito e a população só recebe uma parcela mínima da renda gerada pelas
exportações. “Se isso acontece no mais antigo município mineiro da região, de cujas
entranhas a Vale do Rio Doce, a segunda empresa do mundo no setor e a maior empresa
privada da América Latina, extrai ferro há vinte anos, qual será o destino dos novos
municípios mineiros que se multiplicam no Sul do Pará?” [54].
A situação é ainda pior no município de Curionópolis onde, no fim dos anos oitenta,
80 mil pessoas acorreram para explorar o garimpo de ouro da Serra Pelada. O desemprego é
de 16,35%, dois terços da população do município têm uma renda inferior a 2 salários
mínimos. O maior empregador local é a Prefeitura, que emprega 650 funcionários, gastando
com a folha de salários quase toda a sua renda.
No momento em que a Vale do Rio Doce anuncia novos e gigantescos investimentos
na mineração e na indústria siderúrgica, que poderão exaurir em um século e meio jazidas que
deviam durar 400 anos, as perguntas que se deve fazer são: “O Estado recebe uma
compensação compatível com a exaustão do mais rico depósito de minério de ferro na crosta
terrestre? A sua forma de exploração é o que de melhor os paraenses podem conseguir no que
respeita a transformação da matéria prima?” [55].
O enquadramento dos enclaves mineiros, o aproveitamento dos royalties e do
excedente tributário, a maximização do valor agregado in loco aos minérios mediante a
instalação das indústrias processadoras constituem temas de maior urgência para a Amazônia,
dado o balanço negativo das experiências do passado [56]. Essas, no Pará, se assemelham às de vários países africanos e asiáticos: enclaves mineiros exportando a matéria-prima para o Exterior, isentos de impostos como maneira de atrair o investimento estrangeiro, criadores de pouquíssimos empregos diretos e ainda por cima abastecidos com energia elétrica vendida abaixo do custo, como no caso do processamento de bauxita. Isso sem falar no endividamento do país para construir as hidrelétricas.
O aproveitamento das jazidas minerais coloca ainda problemas de difícil solução
quando estas ocorrem nas reservas naturais ou nos territórios indígenas. Estes devem ser
solucionados caso por caso com a participação das mais altas instâncias do poder e em plena
transparência. O mesmo diz respeito ao aproveitamento do imenso potencial hidrelétrico da
região do qual o Brasil não pode prescindir.
Cooperação internacional deficiente
O futuro da Amazônia passa pela cooperação estreita entre todos os países da bacia
amazônica. O Tratado da Cooperação Amazônica não está cumprindo a tarefa para a qual foi
constituído, em particular na área de cooperação científica e técnica. Esse impasse deve ser
solucionado rapidamente. Existem enormes perspectivas para as cooperações Sul-
Sul entre os países do trópico úmido.
7. Reinventar o Estado desenvolvimentista
A remoção das pedras no caminho e a elaboração de uma estratégia de
desenvolvimento includente e sustentável para a Amazônia não se farão sem o concurso de
um Estado desenvolvimentista, enxuto porém atuante, voltado à compatibilização dos
objetivos sociais de desenvolvimento com a preservação da floresta nativa e da sua
biodiversidade, o maior trunfo da Amazônia para promover um crescimento econômico
includente, sustentável e sustentado.
Para tanto, o Brasil precisa com urgência reaprender a planejar e a se dotar de
instituições apropriadas, tanto em nível federal quanto regional.
A contra-reforma neoliberal, baseada na teologia do mercado, se esforçou durante os
últimos trinta anos para solapar o conceito de planejamento na sua ambição legítima de
organizar o debate socioambiental sobre o projeto nacional a longo prazo e as estratégias necessárias para realizá-lo. Os órgãos de planejamento passaram a elaborar e administrar o orçamento, função indispensável, porém que não se substitui o planejamento propriamente dito. Com a implosão de Wall Street, que, como disse Joseph Stiglitz, representa para a teologia do
mercado o que a queda do muro de Berlim significou para o socialismo real [57], o debate sobre a reinstitucionalização do planejamento a longo prazo no Brasil em geral, e para a Amazônia em particular, deveria encontrar um clima mais propício.
Devemos sair do “curto prazismo” [58], tão ao gosto dos políticos que sempre estão se
preparando para a próxima eleição, evitando ao mesmo tempo a armadilha de um
planejamento burocrático e autoritário, sem espaço para o diálogo entre os protagonistas do
processo de desenvolvimento com vista a soluções negociadas.
Bem ao contrário, convém estimular esse diálogo e para tanto instaurar fóruns de
desenvolvimento local com a participação de todas as forças vivas – órgãos públicos,
entidades da sociedade civil organizada, universidades. Depois de algum tempo e de
experiência ganha, esses fóruns irão se transformar em conselhos consultivos e, numa etapa
ulterior, em conselhos deliberativos. O recente programa Territórios da Cidadania poderá dar
ensejo a esse tipo de evolução institucional. Ao mesmo tempo, devemos nos proteger da
ilusão, inspirada pelo pensamento anarquista, de que a soma de projetos locais pode substituir
um plano de desenvolvimento nacional. A realidade é mais complexa e requer uma interação
repetida entre os três níveis de desenvolvimento e de planejamento: o local, o regional e o
nacional. Precisamos com urgência reintroduzir o planejamento nos currículos universitários.
No que segue, serão examinados alguns instrumentos indispensáveis aos planejadores
da Amazônia.
Zoneamento econômico ecológico
Essa é a principal ferramenta para inscrever no espaço as estratégias de
desenvolvimento, fazendo com que o crescimento econômico que as deve sustentar não entre
em contradição com os postulados de prudência ambiental, da maior importância no caso da
Amazônia por razões que já foram expostas. O zoneamento deve se concentrar na proscrição
de atividades que atentam contra o meio ambiente ou estimulam o desmatamento, sem cair na
armadilha que consistiria em determinar vocações econômicas. O geógrafo francês Jean Tricart [59], que muito andou pela Amazônia, observava com razão que as vocações mudam à
medida que avançam os conhecimentos científicos e técnicos. Considerado durante muito
tempo como imprestável para a agricultura, o cerrado brasileiro passou a ser a principal
fronteira agrícola do Brasil quando os técnicos da Embrapa identificaram os meios para
corrigir os seus solos. Mapas que indicam a vocação de uma região passam a ser um freio ao
progresso técnico.
Vários Estados estão elaborando o zoneamento econômico ecológico. Seria importante
estabelecer prazos definitivos para a conclusão dessa tarefa em todo o território amazônico, já
que se trata de uma ferramenta essencial para o planejamento. Ao mesmo tempo, convém
clarificar os procedimentos nos quais o zoneamento será utilizado. Unicamente por meio de
licença ambiental? Como ficam então os critérios sociais? Na concessão de créditos públicos?
E também privados? A partir de que tamanho da propriedade rural? O limite de 80% de
reserva legal será mantido a despeito das críticas que lhe vêm sendo feitas? De que maneira
serão incluídos os assentamentos de reforma agrária? [60]
Certificação socioambiental
A certificação socioambiental poderá vir a ser tão importante quanto o zoneamento
econômico ecológico, se for devidamente implantada.
A certificação da madeira pelo Forest Stewardship Council vem tendo um impacto
positivo apesar do seu alcance por enquanto limitado. Apenas uma parcela da produção
florestal brasileira recorre aos seus serviços. Daí a importância do protocolo de intenções,
assinado recentemente entre o MMA e a FIESP, pelo qual a indústria madeireira assumiu o
compromisso de se certificar da legalidade de todos os produtos florestais de origem
amazônica processados em suas unidades [61]. Esse compromisso vem completar os que foram
assinados pelo MMA com os exportadores de soja e madeira, com a Vale do Rio Doce, que
passou a exigir certificados de origem do carvão vegetal para vender minério de ferro, e com
o bancos oficiais que se comprometeram a dar um tratamento preferencial aos investimentos
baseados em processos de produção limpa e ambientalmente sustentável.
Uma iniciativa tripartite mais ambiciosa visa criar o primeiro sistema mundial de
verificação voluntária e certificação independente da atividade agropecuária, reunindo o setor
produtivo, representado pelo ARES (Instituto para o Agronegócio Responsável), os
consumidores, representados pelo Observatório Social da CUT, e os ambientalistas,
agrupados ao redor do Instituto de Pesquisas Ecológicas. O projeto pretende aplicar 5
princípios e 15 critérios socioambientais, usando a propriedade rural como unidade de
monitoramento [62].
A nível internacional, uma mesa-redonda, presidida por Claude Martin, antigo diretor-
geral da WWF, e sediada no Instituto de Tecnologia de Lausanne, está empenhada em definir
os padrões e os esquemas de certificação dos biocombustíveis sustentáveis. Por outro lado,
duas empresas suecas propuseram critérios ambientais, climáticos e sociais a serem usados
para a emissão de um certificado de garantia de qualidade do etanol [63]. O Banco Interamericano de Desenvolvimento deve também iniciar um projeto piloto de certificação do etanol da cana. Por sua vez, o grupo de biocombustíveis dos parlamentares do G8 + 5,
liderado pelo deputado Antônio Palocci, propõe a criação de uma certificação única [64].
Esses exemplos mostram o interesse pela certificação socioambiental. No entanto, esta
tem se baseado até agora essencialmente na participação voluntária das empresas, motivadas
por sua responsabilidade social. Para ser efetiva, a certificação deverá adquirir com o tempo
um caráter compulsório, por significativos que sejam os compromissos voluntários assumidos
nos diferentes níveis da cadeia de suprimento: produtores primários, processadores,
exportadores, financiadores e, por último, os consumidores esclarecidos. Estes podem
funcionar como uma força de pressão significativa para moralizar as cadeias de produção ao
exigirem selos de qualidade socioambiental nos produtos consumidos.
O bom funcionamento da certificação socioambiental vai depender de vários fatores:
— a pertinência dos critérios escolhidos para a avaliação dos produtos e dos
processos de produção;
— a idoneidade dos órgãos certificadores e o grau de controle exercido sobre eles por
órgãos públicos e entidades da sociedade civil organizada;
— a abrangência do processo de certificação – toda a produção para o mercado ou
unicamente os produtos exportados?
— a passagem da certificação voluntária à certificação compulsória;
— o financiamento da certificação – a cargo exclusivo dos produtores ou com a
participação dos orgão públicos, sobretudo quando se trata de pequenos
produtores?
— a educação dos consumidores para que passem a exigir os selos de certificação nos
produtos adquiridos.
Pelo visto, temos ainda muito trabalho à frente.
Discriminação positiva dos agricultores familiares
A geração de oportunidades de trabalho decente para os pequenos agricultores e seus
familiares só acontecerá mediante um feixe de políticas públicas coordenadas, que juntas
funcionarão como uma discriminação positiva dos protagonistas mais vulneráveis do processo
de desenvolvimento. Estas compreendem:
— antes de mais nada o acesso à terra, que pode se dar pela reforma agrária, pela
regularização das parcelas dos pequenos posseiros (até que limite de área?) e pela
colonização, esta com financiamentos públicos especiais reservados à aquisição de
pequenas propriedades submetidas a regras rigorosas de manejo ambiental;
— acesso aos conhecimentos – capacitação e assistência técnica permanente na
implantação de sistemas agroflorestais, adaptados aos biomas amazônicos, de
produção de alimentos, bioenergia e demais bioprodutos e implantação de escolas
rurais profissionalizantes;
— acesso às tecnologias apropriadas [65], para a implantação de sistemas integrados de produção de alimentos e bioenergia, incluindo equipamentos para a produção de energia para uso local e para pequenas agroindústrias, lançando inclusive mão de equipamentos móveis instalados sobre barcos de maneira a facilitar o seu deslocamento por via fluvial;
— acesso a créditos preferenciais do PRONAF, cujo funcionamento está sendo
reexaminado para torná-lo mais flexível e melhor ajustado às necessidades dos
distintos grupos de agricultores familiares;
— acesso aos mercados, com especial destaque para os institucionais – merenda
escolar, abastecimento de hospitais e quarteis etc.
Ao mesmo tempo, convém incentivar o cooperativismo e todas as formas de
empreendedorismo coletivo suscetíveis de fortalecer a posição dos agricultores familiares no
mercado e nas suas relações com os poderes públicos.
O fortalecimento da agricultura familiar passa, antes de mais nada, pelo respeito dos
conceitos de segurança e soberania alimentar e a necessidade de compatibilizar com esse
objetivo as demais produções, a começar pelos biocombustíveis. Esse não é o lugar para
examinar em detalhe a polêmica que se instaurou a esse respeito. Irei me limitar em dizer que a
compatibilização da segurança alimentar com uma forte expansão da produção dos
biocombustíveis é perfeitamente viável no Brasil, inclusive na Amazônia, conquanto sejam
respeitadas as condições seguintes:
— ênfase sobre sistemas integrados de produção de alimentos e energia e não
justaposição de cadeias de produção, com especial destaque para a integração da
bioenergia com a pecuária estabulada ou semi-intensiva;
— aproveitamento sempre que possível das terras degradadas que não se prestam à
produção de alimentos;
— passagem rápida à segunda geração dos biocombustíveis, ou seja, o etanol
celulósico que vai permitir o aproveitamento de todos os resíduos agrícolas e
florestais, gramíneas e espécies arbóreas de crescimento rápido, consolidando a
complementaridade entre a produção de alimentos e de bioenergia.
O ponto nevrálgico não está na competição por solos agricultáveis escassos, nem pela
água, e sim na escolha do modelo social no qual se fará a expansão dos biocombustíveis: pela
agricultura familiar, fortalecida pelo aumento de oportunidades de trabalho decente e de renda
assim geradas, ou, ao contrário, por meio de uma agricultura altamente mecanizada em
latifúndios, que se traduziria por um aumento do fluxo de refugiados do campo para as favelas
urbanas? [66]
Pesquisa – a chave do futuro [67]
Eminentes cientistas da Academia Brasileira de Ciências redigiram recentemente um
documento intitulado Amazônia: Desafio Brasileiro do Século XXI – A Necessidade de uma Revolução Científica e Tecnológica, baseado na premissa de que “a valorização econômica
dos recursos florestais e aquáticos da Amazônia se coloca como um marco fundamental para
sua conservação”. A Amazônia “representa um gigantesco potencial cientifico, econômico e
cultural, cuja transformação em riqueza está intrinsecamente relacionada à disponibilidade e
geração continuada de conhecimentos e tecnologias adequadas.”
Para tanto, faz-se necessária uma mudança radical no cenário de Ciência, Tecnologia e
Inovação, que passa pela criação de novas universidades e institutos científico-tecnológicos, a
expansão da pós-graduação na região amazônica e programas para atrair pesquisadores vindos
de outras regiões do Brasil e do Exterior.
A Amazônia possui hoje apenas 140 cursos de mestrado acadêmico, 39 de doutorado e
6 de mestrado profissionalizante, ou seja, 4,8% dos 3854 cursos existentes no Brasil em 2007,
com 2800 doutores atuando na região. Os autores propõem a criação de 3 novos institutos e 3
novas universidades, com um investimento adicional de 30 bilhões de reais em 10 anos,
correspondente a 0,2% do PIB.
Como já foi dito, a extraordinária biodiversidade da Amazônia [68] a predestina a funcionar como um laboratório das biocivilizações do futuro, sem perder de vista a necessidade de alcançar o quanto antes a meta de desmatamento zero. A condição é de avançar nas propostas da exploração racional da floresta baseadas nos conceitos de agroecologia, de implantação nas áreas desmatadas de sistemas integrados de produção de alimentos, biocombustíveis e outros bioprodutos adaptados aos diferentes biomas amazônicos, e de tirar o máximo proveito da abundância das águas para fazer da Amazônia uma das pátrias da “revolução azul”, combinando a piscicultura com a criação de animais anfíbios e de algas – matéria-prima para a terceira geração dos biocombustíveis.
No caso brasileiro, não se deve contrapor a economia do conhecimento à economia
dos recursos naturais, bem ao contrário. Como diz K. Bound, “a inovação brasileira se destaca
mais quando a sua população aplica sua engenhosidade aos seus recursos naturais. [69]”
O Programa-Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), lançado
em 1992, na cúpula dos Países Desenvolvidos, em Huston, deu lugar a uma chuva de pequenos
projetos demonstrativos, muitos dos quais bem sucedidos, porém numa escala extremamente
reduzida e com muita burocracia [70]. A supor que esses países estejam ainda dispostos a cooperar no desenvolvimento da pesquisa amazônica, a abordagem por projetos deve ser
abandonada em favor de programas plurianuais.
Poderíamos pensar no esquema seguinte:
— os países da OCDE criam um fundo de ordem de 2 bilhões de dólares iniciais,
administrado pelo Banco Mundial ou outra instituição escolhida pelos doadores,
com perspectiva de aumento para 5 bilhões em 10 anos, assegurando ao Brasil um
rendimento inicial mínimo de ordem de 100 milhões de dólares por ano;
— as fundações estaduais de apoio à pesquisa dos Estados Amazônicos (e/ou o
Governo Federal) contribuem uma soma equivalente;
— a fim de manter a massa crítica de pesquisadores presente nos institutos existentes
ou a serem criados na Amazônia, completa-se o dispositivo com um esquema de
bolsas para mestrandos e doutorandos vindos de outras regiões brasileiras;
— em paralelo, são organizados fóruns da Amazônia nas universidades fora da região
amazônica para incentivar o interesse dos estudantes nos temas de pesquisa
relativos a essa região do Brasil;
— os fundos são atribuídos aos institutos e às universidades amazônicas em base a
programas de pesquisas plurianuais sobre temas prioritários para o
desenvolvimento da região;
— os resultados são avaliados periodicamente por uma comissão internacional de
especialistas, com possibilidade de redução ou cancelamento do financiamento
externo em casos de desempenho insatisfatório.
Financiamento
O financiamento da pesquisa não esgota o assunto da contribuição internacional à
manutenção da floresta em pé e ao desenvolvimento ambientalmente correto da Amazônia,
como forma de retribuir os serviços ambientais prestados pela região a toda a humanidade.
O protocolo de Kyoto deu início aos assim chamados mercados de créditos de
carbono, um esquema que recentemente foi objeto de críticas legítimas. A construção
artificial desses mercados depende da alocação inicial de quotas de emissão de gases de
efeito-estufa às empresas poluidoras. Estas podem vender os créditos não utilizados às
empresas que ultrapassaram a sua quota. A outorga de quotas por demais generosas equivale a
oferecer às empresas poluidoras um lucro extraordinário provindo da venda da quota não
consumida, o que tem ocorrido com freqüência na Europa. Um outro tipo de efeito perverso
aconteceu com as usinas geradoras de energia elétrica que tiveram que recorrer ao mercado de
créditos de carbono, mas, graças à sua posição monopolística, puderam transferir o custo
adicional aos consumidores. Assim, estes passaram a financiar o direito a poluir dos
fornecedores de energia elétrica [71].
Enquanto o Mecanismo de Produção Limpa vigorar, devemos continuar a aproveitá-lo
por razões pragmáticas. Porém, o futuro pertence a formas mais justas de co-financiamento da
da conservação das florestas tropicais, por fundos internacionais que não estão vinculados aos
créditos de carbono.
Um passo importante nessa direção foi dado pelo governo da Noruega, que decidiu
colocar à disposição dos países tropicais que lutam contra o desmatamento 545 milhões de
dólares por ano no período 2008 – 2012. Em recente visita ao Brasil, o primeiro-ministro da
Noruega anunciou a aplicação de 1 bilhão de dólares até 2015 no Fundo da Amazônia,
instituído no Brasil em agosto último e que será gerido pelo BNDES. Este está autorizado a
captar recursos públicos e privados a partir de doações voluntárias, nacionais ou estrangeiras,
para investir em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento. O Japão, a
Suécia, a Alemanha, a Coréia e a Suíça já demonstraram interesse pelo novo Fundo [72].
As Nações Unidas, apoiadas pelo Governo da Noruega, acabam de lançar
um programa intitulado REDD (Redução de Emissões do Desmatamento e de Degradação das
Florestas) que será implementado pelo PNUMA, PNUD e FAO. O Brasil não está na primeira
leva dos países em que o programa vai atuar [73].
Mesmo na hipótese mais otimista, os financiamentos externos representarão uma
parcela modesta do esforço que deverá ser consentido pelos bancos públicos e privados
brasileiros. Estes serão chamados a desempenhar um papel decisivo no desenvolvimento
includente e sustentável da Amazônia, por várias razões:
— o volume dos recursos destinados aos investimentos e ao custeio da produção;
— a diversificação dos produtos adaptados às diferentes categorias de clientes, com
créditos preferenciais para os agricultores familiares, os pequenos negócios, as
cooperativas e demais entidades da economia solidária;
— a função estratégica que, nas economias mistas, cabe aos bancos no processo de
desenvolvimento ao condicionar os empréstimos pelo respeito rigoroso do
zoneamento econômico ecológico, da certificação socioambiental e das demais
políticas públicas;
— por fim, o seu engajamento em projetos de caráter não comercial no exercício da
sua responsabilidade social [74].
Nesse contexto, foi importante a revisão em junho 2008 do Protocolo Verde, que
contou com a participação dos representantes do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal,
BNDES, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste e do governo federal. O protocolo inclui
sete princípios norteadores pelos quais esses bancos públicos se comprometem a empreender
políticas e práticas bancárias que sejam precursoras, multiplicadoras, demonstrativas ou
exemplares em termos de responsabilidade socioambiental [75].
8. As andorinhas
Não estamos partindo de zero, como o mostram várias iniciativas recentes tomadas
pelo governo e pela sociedade.
O ministro Roberto Mangabeira Unger foi encarregado de coordenar um ambicioso plano, Amazônia Sustentável, destinado, segundo suas palavras, “a reconstruir o Brasil ao reinventar a Amazônia”. Suas premissas coincidem em grande parte com as idéias expostas acima [76]. Sem prejulgar dos resultados desse empreendimento, surgem duas questões:
— como o plano será compatibilizado com o PAC Amazônia Legal, que contempla
vários investimentos infraestruturais cujos impactos ambientais têm provocado uma
intensa polemica?
— de que maneira deve ser institucionalizado o planejamento estratégico da
Amazônia para ser efetivo, lembrando que o planejamento é um processo contínuo
de diálogo e negociação com todos os protagonistas do processo de
desenvolvimento e não se reduz de maneira alguma à elaboração de um plano? A
rigor, o plano é apenas um pretexto para o planejamento contínuo.
O Fórum de Governadores da Amazônia Legal, que se reuniu pela primeira vez em 30 de maio 2008, em Belém, promulgando a carta do Pará, será um elo importante dessa institucionalização, junto com o Conselho Deliberativo da SUDAM, no qual os governadores vêem a pedra angular de um Conselho da Amazônia como “alta instância capaz de efetivar as políticas públicas integradas necessárias à inclusão social e ao desenvolvimento sustentável”, ao mesmo tempo que se fortalece institucionalmente a SUDAM.
O ano em curso viu também a consolidação de várias políticas nacionais já mencionadas em matéria de combate ao desmatamento, como a moratória da soja e sua extensão para madeireiras e frigoríficos, e a promoção de produtos da sociobiodiversidade. Da maior importância, se for efetivamente aplicado, é o princípio da co-responsabilidade das empresas pelos crimes ambientais cometidos pelos seus fornecedores, que entrou em vigor a 15 de junho, abarcando grandes empresas com ênfase em frigoríficos, siderúrgicas, madeirreiras e a indústria alimentícia [77].
Em paralelo, convém mencionar a criação, por iniciativa do Instituto Ethos, do Fórum
Amazônia Sustentável, congregando organizações da sociedade civil, movimentos sociais,
instituições acadêmicas e de pesquisa e as empresas privadas e públicas que aderiram à Carta
de Compromisso aprovada em Belém, em 8 de novembro 2007. Em junho 2008, por iniciativa
do Fórum, foi assinado um pacto pelo desenvolvimento sustentável do Pará. Em outubro 2007, nove organizações não-governamentais [78] lançaram em Brasília (DF), o Pacto Nacional pela Valorização da Floresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia. A proposta visa um compromisso entre diversos setores do governo e da sociedade brasileira que permita adotar ações urgentes para garantir a conservação da floresta Amazônica. O pacto pressupõe o estabelecimento de um regime de metas anuais de redução progressiva da taxa de desmatamento da Amazônia, que seria zerada em 2015. Para isso, as ONGs estimam ser necessários investimentos da ordem de 1 bilhão de reais por ano, vindos de fontes nacionais e internacionais. Os incentivos econômicos serão voltados para o
fortalecimento da governança florestal (monitoramento, controle e fiscalização; promoção do
licenciamento rural e ambiental para propriedades rurais; criação e implementação das
unidades de conservação e terras indígenas), para otimizar o uso de áreas já desmatadas e
compensar financeiramente os atores sociais responsáveis pela manutenção das florestas.
9. O compromisso de Belém
Para os otimistas, todas essas andorinhas anunciam a chegada da primavera. Os céticos
dirão que se trata, na maioria dos casos, de jogo de cena e que, uma vez bem informados, os
otimistas passarão a ser pessimistas.
Penso que a razão está com ambos. Vivemos os primeiros momentos da grande
transição. Convém mobilizar todas as forças vivas para não desmentir os sinais da primavera e
fazer pressão sobre todos os protagonistas do process
Ignacy Sachs professor e economista polonês, é especialista em desenvolvimento sustentável e diretor do Centro de Pesquisas do Brasil Contemporâneo na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, França.