Uma análise da coletiva de imprensa da Polícia Civil sobre o Jacarezinho
O massacre do Jacarezinho foi uma forma de dizer ao STF que ninguém controla a polícia, que ela é quem define o que é excepcional e legítimo na sua atuação, que ela não se submeterá a nenhum controle externo, que as operações não serão interrompidas, e que a polícia tampouco assume qualquer compromisso em reduzir as altas taxas de letalidade
O recente massacre policial na favela do Jacarezinho, no dia 06 de maio de 2021, Zona Norte do Rio de Janeiro, em plena pandemia, foi um ato macabro de demonstração de poder. Protagonizada pela Polícia Civil, a “operação policial” que promoveu a chacina foi uma reação violenta aos esforços que vêm sendo realizados através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e visa à redução da altíssima letalidade policial nas favelas do Rio de Janeiro e instituir mecanismos eficazes no exercício do controle externo da atividade policial. Desde junho de 2020, uma decisão do Supremo Tribunal Federal na referida ADPF, também conhecida como ADPF das Favelas, determinou a proibição de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, exceto em casos absolutamente excepcionais. Ademais, nos dias 16 e 19 de abril, vinte dias antes da realização da chacina no Jacarezinho, ocorreu no STF uma audiência pública convocada pelo ministro Edson Fachin, relator da ADPF 635, com o objetivo de debater estratégias de redução da letalidade policial. A audiência contou com a participação de movimentos de favelas, mães de vítimas da violência policial, pesquisadores e especialistas na área de segurança pública, policiais, membros do Ministério Público, defensores públicos e outras autoridades governamentais.
Esse preâmbulo é necessário para possibilitar a melhor compreensão da coletiva de imprensa concedida pelo subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, Rodrigo Oliveira, junto com os demais delegados que participaram da operação, ainda no dia 06 de maio, quando os 28 corpos acabavam de ser recolhidos no Jacarezinho. Os eixos retóricos do que foi dito durante a coletiva de imprensa pelos representantes da Polícia Civil merecem, a nosso ver, o escrutínio público e a atenção de todas as pessoas que se preocupam com as implicações da atividade policial para a segurança pública, para a democracia, e, especialmente, para as possibilidades que milhares de pessoas, majoritariamente negras e pobres, possuem ao habitar as favelas da cidade e experienciar cidadania e garantia de direitos.
As polícias no Brasil foram historicamente organizadas para a manutenção de uma ordem social que desiguala e separa os ditos “cidadãos de bem”, que seriam aqueles portadores de direitos, dos “bandidos”, que precisariam ser reprimidos, punidos e eliminados. Nas últimas décadas, após o marco da Constituição de Federal de 1988 que prevê, em seu artigo 144, as atribuições das instituições de segurança pública, as forças policiais militar e civil (responsáveis pelo policiamento ostensivo e pela investigação policial respectivamente) vêm representando um papel político cada vez mais incisivo e crescente, em que se defende a autonomia policial frente a qualquer tipo de controle social. Esta defesa, contudo, diverge das finalidades das instituições públicas numa sociedade que se pretende democrática e representa avanços de um projeto político autoritário e totalitário.
O massacre do Jacarezinho consistiu numa demonstração de força desse projeto que defende a autonomização das polícias e o recrudescimento de forças bélicas para a repressão, em um momento político marcado por sistemáticas violações e restrições de direitos e pelo endurecimento do discurso punitivista vocalizado frequentemente pelo presidente Jair Bolsonaro e por seus apoiadores, cuja máxima é “bandido bom é bandido morto”. No que toca especialmente o contexto político do Rio de Janeiro, a matança também simbolizou o “batismo” do governador Cláudio Castro que, após a destituição definitiva de Wilson Witzel, havia acabado de assumir o governo do estado e, coincidentemente ou não, reunira-se com Jair Bolsonaro 10 horas antes do início da operação policial em Jacarezinho. Como se sabe, a política de Wilson Witzel, de quem Cláudio Castro foi eleito vice, era a de “atirar na cabecinha”. Como a chacina do Jacarezinho evidencia, o atual governador parece seguir na mesma linha.
A coletiva de imprensa da Polícia Civil naquele dia 06 de maio foi, no entanto, um capítulo à parte do massacre e da construção de sua justificação pública e, portanto, merece atenção e análise minuciosa. Justificativas difusas e sob frágil fundamentação técnica foram mobilizadas para defender o “sucesso” da operação que supostamente visava ao cumprimento de 21 mandados de prisão e que, segundo os delegados, promoveria a preservação do direito de ir e vir dos moradores do Jacarezinho, a libertação de meninas e mulheres subjugadas pelo tráfico e a defesa da “sociedade de bem”. Passemos agora a comentar alguns tópicos da entrevista.

A protocolização das mortes e a racionalidade cínica
A demanda para que as ações policiais ocorram dentro de protocolos técnicos, baseada na lei e no princípio da transparência pública, visa exatamente à construção de parâmetros para a avaliação da eficiência e da eficácia do trabalho policial. O mandato policial, em última instância, implica a legitimidade do uso da força para matar; mas em prerrogativas nas quais o ato de matar seria acionado como medida extrema, de garantia da ordem pública e legítima defesa em confronto bélico, nunca como a primeira alternativa. Essa é uma das reivindicações que vêm sendo construídas no âmbito da mobilização em torno da ADPF das Favelas: o respeito a protocolos básicos como a presença de ambulâncias, o estabelecimento de horários para a realização das operações policiais, a proibição do uso de helicópteros e a investigação de todas as mortes cometidas por agentes policiais, com a realização de perícia autônoma e independente. O objetivo dos protocolos na regulação da ação policial é diminuir os riscos de produzir mortos e feridos durante as operações policiais.
Esse foi um dos primeiros pontos abordados na coletiva de imprensa da Polícia Civil. O delegado Rodrigo Oliveira, após justificar a demora para a manifestação da Polícia Civil, alegou que “os fatos são relativamente graves, então, enfim, isso se justifica” (grifos nossos) e afirmou que a operação foi realizada com base no tripé “inteligência, investigação e ação” e “como determina a lei”. Desde o início da coletiva, as falas dos policiais tiveram um tom agressivo, quando não debochado, e, segundo palavras dos mesmos, pretendiam, além de fazer um balanço da operação, “passar um recado para a sociedade”.
O recado viria adiante. No início de sua argumentação, porém, o que se manifestava era uma atitude cínica que esvaziava burocraticamente o sentido dos protocolos: “deixando muito claro aos senhores, que todos os protocolos exigidos na decisão do STF foram cumpridos. Sem exceção, todos os protocolos foram cumpridos” – disse o delegado Rodrigo Oliveira. Cinismo, como afirma Safatle, “não é apenas um julgamento moral, mas uma certa forma de racionalidade. Cínicas são as ações nas quais repetimos a aparência de legitimidade, mesmo sabendo que todos compreendem que se trata apenas de aparência”[1].
Segundo a autoridade policial, lamentavelmente houve muito confronto, ocorreram muitas mortes. Considerando-se que “houve confronto e os bandidos estavam fortemente armados”, os números são absolutamente desproporcionais: até o momento 27 mortos pela polícia, e do lado da polícia, um policial morto. No entanto, no entendimento de Rodrigo Oliveira, não haveria com o que se preocupar, pois todas as mortes dos supostos bandidos estariam conforme os protocolos do STF. Eis a operação cínica do discurso policial. Ou seja, os protocolos reivindicados para garantir a preservação da vida e o controle externo da ação policial são, nas palavras do delegado, subvertidos e transformados ironicamente numa vazia protocolização das mortes. A legitimidade não passa de aparência, porque quem tem o poder de definição dessa legitimidade é a própria autoridade policial.
Assim, a matança não precisa ser feita às escondidas. O jogo de poder aqui consiste exatamente na espetacularização das mortes. Não é preciso desaparecer com os corpos, prática geralmente atribuída pela polícia aos traficantes (como sugerido na coletiva de imprensa), mas sim exibi-los exaustivamente com o apoio e a cumplicidade da grande mídia e suporte de parte do público na sociedade. O ato de desaparecer com os corpos, como bem se sabe, também faz parte do repertório macabro das polícias. Isto ocorre seja em ações oficiais como as que levaram ao desaparecimento do pedreiro Amarildo, realizada pela Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha (2013); ou ao desaparecimento da engenheira Patrícia Amieiro pela Polícia Militar (2008); ou ao desaparecimento do servidor da Fiocruz Jorge Carelli por policiais civis da Divisão Anti-Sequestro (1993); seja em ações de grupos de extermínio formado por policiais, como a Chacina de Acari; ou ainda, os inúmeros desaparecimentos cometidos pelas milícias.
No Jacarezinho, nenhum protocolo foi adotado com o objetivo de preservação dos locais onde as mortes ocorreram para a realização de perícias. A afirmação de Rodrigo Oliveira, de que todos os locais foram periciados, contrasta com o relato das pessoas presas durante a audiência, de que foram obrigadas a carregar corpos para o caveirão, nenhum deles estava vivo, o que aponta para a adulteração e o desfazimento das cenas de crime[2]. Ademais, a operação supostamente teve início com o objetivo de cumprir 21 mandados de prisão, mas dos nomes que constavam nessa lista 3 foram presos e 3 foram mortos; outras 21 pessoas, além do policial, foram mortas durante a operação. Todos esses mortos foram descritos como “suspeitos”, “bandidos” e “criminosos” pelos policiais. No entanto, as acusações individuais dos supostos crimes cometidos por cada um dos mortos não foram divulgadas na ocasião da coletiva de imprensa. Os policiais também não informaram o contexto em que se deu cada morte e não descreveram as supostas ameaças extremas que teriam demandado o emprego excepcional de violência letal com vistas à garantia da legítima defesa.
Se, por um lado, há um esvaziamento do sentido dos protocolos enquanto dispositivos destinados a possibilitar o controle dos abusos policiais e a preservação de vidas, tal como foram defendidos na audiência pública do STF, por outro lado, a performance agressiva dos policiais que participaram da coletiva de imprensa parece ter sido suficiente para instituir um ritual de tratamento dos jornalistas em relação aos policiais. Após um policial insinuar que apenas uma morte mereceria ser lamentada, a morte do policial civil no começo da operação, os jornalistas passaram a, antes de iniciarem suas perguntas, expressar solidariedade aos policiais pela perda do colega, não estendendo o mesmo lamento aos demais mortos.
Aliciamento de crianças pelo tráfico
Uma das justificativas apresentadas na coletiva para a realização da operação foi a de existência, no Jacarezinho, de aliciamento de crianças pelo tráfico. Sobre esse ponto, um jornalista fez uma série de perguntas: “Como vocês chegam nessa informação de que criminosos estariam arregimentando crianças a partir de 12 anos para trabalhar com tráfico de drogas? Quem estaria arregimentando essas crianças? O que elas estavam fazendo? Nesse inquérito tem imagens dessas crianças trabalhando? (…) E quem foi o juiz ou a juíza que expediu isso, de qual vara?”. Um dos delegados disse apenas que a investigação foi baseada em quebra de sigilo telemático e em perfis de redes sociais, mas, evasivamente, não respondeu às questões solicitadas, passando a fazer uma descrição genérica do modus operandi do tráfico. Da plateia, alguém perguntou quantas crianças estariam sendo aliciadas, segundo a investigação. A resposta: “Isso… são várias crianças, isso aí acontece… isso é uma prática do tráfico de drogas, arregimentar crianças, no caso foram menores ali daquela comunidade, da comunidade do Jacarezinho, mas isso acontece nas comunidades que sofrem influência do tráfico de drogas no estado do Rio de Janeiro”. Ou seja, o policial que responde ignora solenemente as informações técnicas e específicas solicitadas.
Diante da resposta evasiva, o jornalista seguinte a fazer perguntas voltou ao tema:
“Eu queria um pouquinho mais de detalhamento sobre essa investigação das crianças. Se vocês têm elas identificadas, se conseguiram resgatar alguma dessas crianças. Sobre provas desses crimes, vocês têm imagens, algum tipo de material, de prova? Uma outra pergunta que eu já queria deixar aqui também. A gente tem a informação de que inicialmente, no início da operação, teria acontecido um erro de cálculo da quantidade de equipe, um erro aí da inteligência e que depois foi chamado reforço. Eu queria saber se vocês confirmam isso. O que vocês podem comentar? A respeito da comunicação com a Supervia e com o Metrô Rio, como isso pode acontecer, se rolou algum tipo de comunicação, até porque para não vazar informação; porque essa operação começou cedo, como acontece sempre, e é um horário que todo mundo está se deslocando para ir para o trabalho. E não por ser uma comunidade onde passa o transporte público, se há esse tipo de comunicação, se houve, e, por fim, o que acontece daqui pra frente?”.
A intervenção do jornalista foi incômoda para os policiais, porque as perguntas colocavam em xeque o suposto trabalho de inteligência e investigação de regra acionado retoricamente pelos policiais para defender a qualidade da operação. Além disso, o jornalista também questionava o álibi apresentado pelos policiais, o de que o foco eram crianças e adolescentes aliciados pelo tráfico.
Em diversos momentos, antes das respostas dos policiais, uma conversa prévia entre os representantes da Polícia Civil explicitou como eles, in loco, organizavam-se para combinar as respostas. Em alguns momentos há risos na sala da entrevista, e é possível ouvir uma voz de fundo dizendo: “sem rir”.
Diante da insistência por dados, informações e respostas mais técnicas e precisas, o recurso retórico para evitar enfrentar os questionamentos dos jornalistas foi recorrer ao argumento do sigilo, afirmando que, por tratar-se de uma investigação sobre “menores”. haveria uma série de sigilos impedindo-os de detalhar a situação de cada menor. Por sua vez, sobre a alusão do jornalista à existência de uma possível descoordenação operacional, os policiais afirmaram que isso também não teria acontecido, mas sim uma dificuldade de acesso: “porque embora tivéssemos quatro blindados operando, nenhum desses blindados conseguiu adentrar na comunidade, tamanha a resistência por parte do tráfico de drogas e por tudo aquilo que eles puderam fazer do ponto de logística operacional deles para impedir que os blindados acessem aquela comunidade”. Já em relação ao que o jornalista perguntou a respeito de comunicação à Supervia, os policiais responderam que tal comunicação só foi feita posteriormente à operação, o que se justificaria também em nome do sigilo e do “princípio da oportunidade”.
Mais uma vez, o que aqui se nota é a operacionalização da racionalidade cínica, um argumentum ad nauseam de que protocolos e procedimentos foram seguidos, contudo, absolutamente carente de fundamentação técnica. Para compensar a falta de fundamentos técnicos que justificassem a operação, o delegado Rodrigo Oliveira argumentou que a ação não foi de responsabilidade exclusiva da Polícia Civil e que ela foi submetida ao Ministério Público e ao Judiciário, resultando na emissão dos 21 mandados de prisão. A ação supostamente estaria embasada na lei e respeitando protocolos e procedimentos, porque teria passado anteriormente pelo crivo do Ministério Público e do Judiciário. Este crivo formal, no entanto, não justifica que para cumprir 21 mandados de prisão seja legítimo realizar uma megaoperação policial que resultou em: interrupção de todos os serviços locais, incluindo clínicas de saúde da família que vinham realizando vacinação contra Covid-19; suspensão do transporte público realizado por trem e metrô; impossibilidade de moradores irem ao trabalho; execução de pessoas dentro da casa dos moradores, diante da presença de crianças; destruição das casas dos moradores pelos disparos de tiros, que ainda colocaram a vida de toda uma comunidade em risco.
Da mesma forma que o presidente do país tem evocado o direito de ir e vir para produzir aglomerações e boicotar as políticas sanitárias de isolamento físico, as autoridades policiais responsáveis pela ação no Jacarezinho também se reportaram à defesa do direito de ir e vir dos moradores para justificar a operação. Evoca-se retoricamente o direito de ir e vir dos moradores para, na prática, violá-lo. Tudo isso com a aquiescência de grande parcela da sociedade que aceita, defende e apoia o tratamento desigual e fora da lei dispensado pela polícia aos moradores de favela, sob o pretexto de combater o tráfico e “proteger a sociedade de bem”. Que vidas, corpos, pessoas, grupos cabem na “sociedade de bem” de uma conduta policial que se recusa a seguir os princípios de um mundo cívico democrático? O princípio de grandeza que orienta esse tipo de prática policial é o extermínio, e esse é o perigo que a autonomização das polícias representa para qualquer sociedade que se pretenda democrática: ter uma polícia que age oficialmente à margem da lei e sua especialidade torna-se matar pessoas.
Excepcionalidade, ativismo judicial e as “mãos sujas de sangue”: obstáculos à defesa policial da “sociedade de bem”
A decisão do STF determinou que durante a pandemia operações policiais devem ocorrer apenas em situação de excepcionalidade, devidamente justificadas. O conceito do que seja excepcionalidade, no entanto, não ficou claramente definido. Diante de tal lacuna, Rodrigo Oliveira apresentou na coletiva um entendimento do que seria excepcionalidade: “Há de se discutir o que se entende por excepcionalidade. A simples extensão do confronto, as barricadas existentes, as imagens que foram geradas por algumas emissoras de TV. Enfim, todos esses dados, eles nos geram a absoluta convicção de que a gente está tratando de algo que talvez seja até superior à questão da excepcionalidade” (grifo nosso). Depreende-se desse raciocínio que a simples existência de tráfico de drogas na favela define a excepcionalidade. Mais do que isso, nas palavras do policial, a situação no Jacarezinho seria a de “uma aberração”; logo, a necessidade da operação policial, não coincidentemente denominada Exceptis, estaria mais do que justificada.
Durante a audiência pública realizada no STF para discutir medidas de redução da letalidade policial, um dos pontos muito criticados, principalmente pelos pesquisadores acadêmicos da área de segurança pública, foi a falta de inteligência e investigação policial no combate ao crime, muito centrado na realização de operações policiais. Por sua vez, dados sistematizados pelo GENI/UFF mostraram que a redução das operações policiais, em decorrência da ADPF 635, ensejou diretamente redução do número de mortes nos primeiros quatro meses de vigência da liminar do STF: nesses meses de 2020, 288 vidas foram salvas, acarretando na diminuição anual da letalidade policial de 34%, a maior dos últimos 15 anos. Cabe destacar que no mesmo período, houve redução dos crimes contra a vida (24%) e contra o patrimônio (39%), demonstrando que o controle da letalidade policial não se opõe ao controle do crime. No entanto, a partir de outubro, à medida que as operações voltaram a ocorrer com maior frequência, em descumprimento à decisão do STF, o número de mortos pelas forças policiais cresceu 187%, inclusive com o registro de 34 chacinas no estado do Rio de Janeiro.
Claramente em resposta a esta crítica, repetidas vezes foi dito nas diversas falas dos policiais presentes na coletiva de imprensa, que a operação foi realizada com base em investigação, conhecimento, planejamento e ação. Contudo, diferente do entendimento dos “pseudo-especialistas de segurança pública” de que o uso de inteligência diminuiria a necessidade de operações policiais em favelas, para o delegado Rodrigo Oliveira isso não se sustenta. A situação de “excepcionalidade” e a alegada “aberração” em que as favelas se encontram, principalmente aquelas dominadas pelo Comando Vermelho, imporiam a necessidade de guerra armada. Da perspectiva deste policial, o “ativismo judicial” que contesta a necessidade das operações policiais só favorece o tráfico, de modo que defender tal “ativismo” seria colocar-se contra os policiais e a “sociedade de bem”:
“Num dado momento, e isso a gente está vendo não é de agora, alguns pseudo-especialistas de segurança pública – nós temos diversos na sociedade brasileira -, eles inventaram a lógica de que quanto maior a produção de conhecimento, de inteligência, menor seria a reação por parte do crime. Isso não funciona dentro das comunidades do Rio de Janeiro, isso não funciona em especial junto a uma determinada facção criminosa que domina boa parte dessas comunidades. Quanto mais precisa for a informação, maior será a resistência por parte do tráfico. A prova cabal disso é o dia de hoje. Os senhores viram diversas imagens sendo veiculadas em diversos veículos de comunicação, que nos permitiram inclusive localizar alguns desses criminosos. E a reação não foi mais no sentido de atirar para poder fugir, hoje eles atiram para confrontar o Estado e para matar o policial. A Polícia Civil não vai permitir que isso aconteça. Nós estaremos presentes aonde quer que seja. Eu volto a dizer: o tripé Inteligência, Investigação e Ação nos dá todo o suporte legal para que a gente produza essas operações, como foi a operação que foi produzida no dia de hoje. Parte desse ativismo, que de alguma forma orienta a sociedade numa determinada direção, ele definitivamente não está do lado da Polícia Civil e definitivamente não está do lado da sociedade de bem. Os interesses são diversos. Os interesses deles são outros e eu queria deixar muito claro que o sangue desse policial que faleceu hoje em prol da sociedade de alguma forma está na mão dessas pessoas, ou dessas entidades, ou de quem quer que seja. A Polícia Civil não coaduna com isso. A nossa proposta é outra, nós queremos o bem da sociedade e é para isso que nós estamos trabalhando e é para isso que nós estamos lutando” – delegado Rodrigo Oliveira.
A forma acintosa como o policial Rodrigo Oliveira refere-se aos que ousam contestar a forma sanguinária da operação policial levou os jornalistas presentes na coletiva a questioná-lo várias vezes sobre o tópico do ativismo judicial. Em outra resposta, o mesmo policial reafirmou:
“Especificamente em relação ao ativismo que foi dito aqui, a gente não tem, seria leviano da nossa parte nominar A, B, C ou D. Mas na verdade, o que a gente entende, o que a gente enxerga, e que é amplamente discutido e isso obviamente é levado aos tribunais, são diversas organizações que buscam nesse discurso impedir o trabalho da polícia. Essas entidades ou essas pessoas, elas definitivamente não estão no mesmo barco que nós. Nós temos um objetivo e eles têm outro. Pessoas que pensam dessa forma, eu repito e insisto, ou estão mal-intencionadas ou estão mal informadas. Impedir que a polícia cumpra o seu papel enquanto Estado e como único legítimo detentor do poder é não estar do lado do bem da sociedade. Então, esse ativismo, ele perpassa uma série de entidades, uma série de grupos ideológicos que jogam, no nosso entendimento, contra aquilo que a Polícia Civil pensa, e a Polícia Civil está do lado da sociedade. No que diz respeito à investigação, a gente não tem a pretensão de acreditar que uma simples operação como essa possa colocar fim ao tráfico de entorpecentes e ao aliciamento de menores. Essa investigação prossegue, mas a gente não pode permitir ou se permitir que nada seja feito. A Polícia Civil tem que agir, a investigação continua. Enfim, outras operações virão, e a gente buscando justamente não permitir que essas crianças sejam aliciadas pelo tráfico, e aí eu convoco aqui boa parte dessas entidades ditas protetoras para que de fato estejam do lado da polícia evitando que esses menores sejam cooptados pelo tráfico de drogas” – delegado Rodrigo Oliveira.
No final da entrevista, outro jornalista insiste na tematização do ativismo judicial. O jornalista afirma que o delegado “fez uma frase forte”: “o sangue desse policial está nas mãos dessas pessoas ou dessas entidades”. Diante dessa frase, o jornalista solicita ao policial, “para não ficar um mal-entendido para a sociedade”, que ele explique que pessoas e que entidades seriam essas que estão com o sangue do policial nas mãos. A resposta:
“Na verdade, são todas as pessoas, entidades ou órgãos, que remam contra o trabalho da polícia. Como já foi dito aqui inúmeras vezes, a gente está ali para cumprir a lei, para trazer a presença do Estado. E ainda assim têm pessoas mal-intencionadas que querem fazer disso uma bandeira, dizendo que na verdade a proposta da polícia é outra, quando não é. Nós estamos do lado da sociedade. Todas essas pessoas que são oportunistas, nesse contexto, elas fazem parte dessa declaração que foi feita. Elas têm o sangue do policial nas mãos” – delegado Rodrigo Oliveira.
Segundo as manifestações e posicionamentos das autoridades policiais na coletiva de imprensa descritos até aqui, fica evidente que os representantes da Polícia Civil colocam-se no lugar de autoridade última sobre a definição dos limites de legalidade e de quem tem direito à vida: por dedução, tudo o que policiais fazem nessas operações seria correto porque atuariam pressupostamente em defesa do bem ou da “sociedade de bem”.
Há, aqui, uma separação retórica entre quem faz parte da sociedade, e seria por eles protegido, e quem dessa deve ser extirpado por questionar e contraditar suas ações. Essa separação retórica se dá sob critérios morais e autoritários de policiais que se apropriam da sua função como agentes do Estado para, em nome deste, produzir morte, sofrimento e terror. Foi manipulando esse lugar como autoridade legal e força policial que os responsáveis pela operação policial na favela do Jacarezinho não apresentaram, na coletiva de imprensa realizada, nenhum balanço técnico, baseado em dados e evidências, seguindo os princípios da transparência pública, que supostamente deveriam embasar as ações de qualquer instituição estatal, especialmente as que envolvem diretamente a vida de pessoas. Ao contrário, limitaram-se a atacar o que denominaram de “ativismo judicial”, a difamar as vítimas com justificativas moralizantes e culpabilizadoras e a afirmar que a quantidade expressiva de mortos, a maior na história de chacinas na cidade do Rio de Janeiro, foi derivada de um “revide” a uma “injusta agressão” após, ainda no começo da operação, ter sido atingido um policial civil, como afirmou na coletiva de imprensa o delegado Roberto Cardoso, titular do Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa (DGHPP):
“A Polícia Civil não entra em comunidade nenhuma para praticar execuções, mas às vezes precisamos revidar. A Polícia Civil entra para cumprir mandados de prisão deferidos pela Justiça. Sendo assim, a operação deflagrada foi baseada em um inquérito judicial e ocorreu completamente dentro da legalidade. A prova cabal de que não entramos para executar é que, logo no início da incursão, perdemos um de nossos policiais na troca de tiros. Não houve execução, mas houve a necessidade de revidar uma injusta agressão. Portanto, a ação é legítima do início ao fim” – delegado Roberto Cardoso, grifos nossos.
Ocorre, contudo, que as alegadas “necessidade de revidar” e “injusta agressão” não deveriam ser princípios para a atuação de uma força policial garantidora de direitos em prol da sociedade, pois se baseiam em desejos de vingança e de um fazer justiça com as próprias mãos. A morte do policial civil no início da operação, morte essa que deve ser investigada e esclarecida como qualquer outra, não é demonstração suficiente da necessidade de matar outras 27 pessoas. A dificuldade de explicação sobre a dinâmica daquelas mortes pelos representantes policiais ao evitarem responder às perguntas dos jornalistas sobre dados objetivos acerca da operação era uma forma de tentar justificar a operação e as mortes. Assim, valem-se de recursos retóricos que criam um grupo abstrato de pessoas a serem protegidas e identificam o Jacarezinho como um território essencialmente perigoso que deve ser enfrentado pelos “homens de bem” que seriam – pressupostamente, como dito – os próprios policiais civis. Nesse sentido, a existência mesma do Jacarezinho parece consubstanciar a “injusta agressão”, o que ajuda a explicar as flagrantes violações de direitos dos seus moradores durante a operação policial.
Decifrando o recado
Como já dito no início deste texto, o objetivo da coletiva, além de fazer um balanço e explicar a operação, era “passar um recado para a sociedade”. O recado foi dado através dos corpos dos supostos “bandidos” do Comando Vermelho, condenação póstuma também rapidamente confirmada pelo vice-presidente da república, general Hamilton Mourão que, ainda quando não se sabia nem o nome de todos os mortos, fez questão de afirmar “Tudo bandido!”, ecoando o discurso moralizante produzido pela Polícia Civil para legitimar as execuções e culpabilizar as vítimas por suas mortes. Esse tipo de declaração, fundamentada no racismo que estrutura a sociedade brasileira, permite que ações supostamente ancoradas na legalidade e em procedimentos técnicos e idôneos, continuem a produzir a barbárie, com requintes de crueldade, nos territórios mais negros da cidade. Numa das cenas mais aterrorizantes presentes nas denúncias e em registros fotográficos, aparecia o corpo de uma pessoa negra morta colocada em uma cadeira, sentada, com um de seus dedos na boca. O gesto produzido no cadáver foi fruto de um deboche, uma forma da polícia comunicar aquilo que é capaz de fazer, particularmente de que são capazes em tempos de ascensão de uma forma local de fascismo miliciano.
O recado consistiu em uma enunciação pública de que a linguagem com a qual a polícia opera não é a da palavra dialógica, argumentativa e democrática; mas a da força bruta e da guerra armada. A mensagem foi a de que a polícia não admite ser controlada, nem contestada, por quem quer que seja. O conteúdo do recado também expressou a concepção maniqueísta das autoridades policiais que divide a sociedade entre as figuras do “cidadão de bem” e do “bandido”, dos aliados e apoiadores e dos “mal intencionados” e “desinformados”, pois quem ousar contestar essa forma de classificação também será declarado inimigo da polícia. Se há várias décadas os inimigos declarados desse projeto são os “traficantes”, agora também são incluídas “todas as pessoas, entidades ou órgãos, que remam contra o trabalho da polícia”, “pessoas mal-intencionadas”, “pseudo-pesquisadores de segurança pública”, “pessoas oportunistas”, que não estão do lado da “sociedade de bem”, como a polícia está.
Para os policiais, pessoas que fazem “ativismo judicial” e assim impedem o trabalho da polícia, contribuem para a expansão do tráfico de drogas, para o aliciamento de menores e para a morte de policiais. Como consequência, dentro do horizonte cada vez mais autoritário do Brasil, percebe-se a permanente extensão da categoria de “bandidos” ou “vagabundos”, que amplia cada vez mais aqueles fora da zona dos direitos e restringe a possibilidade de vocalização apenas para os que concordam, sem questionar, com as ações das autoridades políticas e policiais. No Rio de Janeiro, todas as vezes que se criticou a alta letalidade policial e o insulamento institucional das polícias, as forças policiais sempre foram muito reativas, e as respostas das polícias foram com matanças e chacinas. O massacre do Jacarezinho por meio da Operação Exceptis foi uma forma de dizer ao STF que ninguém controla a polícia, que ela é quem define o que é excepcional e legítimo na sua atuação, que ela não se submeterá a nenhum controle externo, que as operações não serão interrompidas, e que a polícia tampouco assume qualquer compromisso em reduzir as altas taxas de letalidade, afinal, eliminar bandidos é considerado parte fundamental do trabalho da polícia.
Como apenas uma operação não resolve o problema do tráfico, é preciso um grande projeto de sociedade, protagonizado pela polícia, para defender a “sociedade de bem”; e aqueles que se colocam como críticos do trabalho policial são tomados e tratados como inimigos. Segundo a retórica das autoridades policiais na entrevista coletiva, o tratamento geralmente dispensando aos moradores de favelas, acusados de bandidos ou coniventes com o crime, pode transbordar para outros grupos sociais e CEPs da cidade. Afinal, como diz o delegado Rodrigo Oliveira, “não tem CEP ou endereço neste Estado do Rio de Janeiro que a Polícia Civil não se faça presente”.
Fábio Araújo (Fiocruz), Rachel Barros (Cidades/UERJ), Daniel Hirata (UFF), Roberto Efrem Filho (UFPB/UFPE), Juliana Farias (Pagu/Unicamp), Adriana Vianna (Museu Nacional/UFRJ) e Gabriel Feltran (UFSCAR) integram o Comitê Cidadania, Violência e Gestão Estatal; Flavia Medeiros (UFSC) integra o Comitê de Antropólogas(os) Negras(os) e a Comissão de Direitos Humanos; e Lucia Eilbaum (UFF) coordena a Comissão de Direitos Humanos, todos da Associação Brasileira de Antropologia.
[1] Vladimir Safatle. O cinismo é uma forma de racionalidade. Folha de São Paulo. 16/06/2017
[2] Vera Araújo. Mortes no Jacarezinho: presos dizem que foram obrigados pela polícia a levar corpos para o caveirão. O Globo. 08/05/2021. Link: https://oglobo.globo.com/rio/mortes-no-jacarezinho-presos-dizem-que-foram-obrigados-pela-policia-levar-corpos-para-caveirao-1-25009825. Acesso em 09/05/2021.