Análise do discurso de Lula
O discurso Lula foi de estadista, mas não pude deixar de pensar: se Lula voltar ao poder, irá convidar para a área econômica alguém ligado ao mercado?
O discurso do Lula foi emocionante. Sentimos alívio pelas críticas ao movimento político partidário da Lava Jato que condenou Lula sem provas, barrou sua candidatura, protegeu a corrupção dos aliados do PSDB e destruiu as empreiteiras nacionais, abrindo espaço para a expansão das empresas americanas no mercado africano e asiático.
O Brasil retrocedeu tanto que o discurso de Lula caiu como “um raio em céu azul”, para lembrar a famosa frase de Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Sacudiu a pasmaceira institucional e deu novos rumos à conjuntura política. Fixou uma agenda para salvar o Brasil do caos em que estamos mergulhados, à beira do colapso. Defendeu as medidas de proteção contra o vírus como distanciamento, máscara, vacina. Mostrou a importância de combater o desemprego, a fome, a desigualdade e o abandono da soberania brasileira. Denunciou o esquartejamento da Petrobras e a submissão da economia brasileira aos interesses das empresas multinacionais. Grande comunicador, falou para todas as classes sociais. Acima de tudo, nos devolveu a esperança perdida que agora ressurge no horizonte.
Foi um discurso de estadista, lavou a alma, mas não pude deixar de pensar: se Lula voltar ao poder, irá convidar para a área econômica alguém ligado ao mercado, como Meireles, por exemplo? Até que ponto ele estaria disposto a enfrentar a pressão do mercado financeiro? Ele terá condições de reverter as chamadas “reformas” que transferiram renda dos pobres para os ricos? Teria força para propor e apoiar a taxação das grandes fortunas e grandes heranças?
É bom não esquecer os 15 minutos dedicados a falar de carro e gasolina e falta absoluta de menção à crise ambiental e às novas fontes de energia renovável. Lula, como boa parte da esquerda, não prioriza a questão ambiental denunciada desde a Conferência de Estocolmo em 1972, passando pela Conferência Rio-92 e pela Conferência Paris-2015, todas sobre destruição de recursos naturais (biodiversidade) e mudanças climáticas, denunciando que a sobrevivência humana no planeta está ameaçada.
Além disso, não há mais o preço alto das commodities que favoreceu o governo Lula na década de 2000 a 2010. O conflito redistributivo está mais acirrado, boa parte do orçamento vai para o pagamento da “dívida interna”, eufemismo para pagamento de juros aos bancos. A possibilidade de conciliação de classes está mais remota e os setores progressistas não parecem estar mais dispostos a engolir o projeto das elites econômicas. Isso exige a construção de um programa que a esquerda vem desconsiderando há tempos.
Em seus 580 dias de prisão, Lula teve tempo para ler e refletir. Tem experiência suficiente para saber os conflitos que irá enfrentar. Provavelmente, Lula releu a Carta Testamento de Getúlio Vargas, da qual extraímos aqui o seguinte trecho:
Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre… Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo.
E na Carta Despedida, manuscrita e mais concisa, Getúlio, entre outras denúncias, disse:
Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não de crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes.
Lula deve ter relido, também, o último discurso de João Goulart, proferido na Central do Brasil, às vésperas do Golpe de 1964. Jango anunciou as “reformas de base” e denunciou:
A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam. A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício… O nosso lema é Progresso com Justiça, e Desenvolvimento com Igualdade.
O discurso de Lula já é um marco na luta pela democracia e na luta para barrar o projeto neofascista de Bolsonaro. Ao que tudo indica, haverá polarização entre as duas figuras políticas. Simultaneamente, vemos a tentativa da direita liberal de formar uma chapa Ciro-Mandetta para superar o bolsonarismo e enfrentar Lula com chances no segundo turno. Segundo matéria do jornal Valor, a pesquisa Atlas, feita entre 8 e 10 de março, mostrou o seguinte resultado para o segundo turno:
Lula 44,9% x Bolsonaro 38,8%
Ciro 44,7% x Bolsonaro 37,5%
Mandetta 46,6% x Bolsonaro 36,9%.
Haddad 43% x Bolsonaro 39,4%
Em todas as simulações, Bolsonaro perde no segundo turno, sendo que, com Haddad, o resultado está dentro dos limites da margem de erro. Outra informação importante é a que se refere à rejeição dos possíveis candidatos. Dentre os candidatos considerados, a rejeição de Lula é a menor.
O efeito positivo do discurso de Lula não dura para sempre se não houver iniciativas políticas proativas. Lula poderia nomear um Ministério alternativo para, junto dos governadores, fazer propostas de governo. Seria algo como o “Shadow Cabinet” britânico. Mas não basta fazer propostas. É necessário ir além. É preciso aplicá-las onde for possível, nos estados e municípios. Seria exercer um poder alternativo.
Os partidos de esquerda não devem se limitar a fazer uma oposição institucional e abandonar a ação social direta. Jornalistas chamam Bolsonaro de genocida. Militantes vão às ruas e são presos por dizerem a mesma coisa. Está mais do que na hora de os partidos, sindicatos e associações bancarem essa denúncia publicando, divulgando panfletos e instalando outdoors com a frase: Bolsonaro é genocida!
Podem prender um militante isolado. Mas não podem prender toda a direção de um partido ou entidade, ainda mais contando com o apoio direto de parlamentares. E o genocídio prossegue. Em breve teremos 3 mil mortes por dia. Há previsões de que chegaremos a 4 mil por dia! O colapso hospitalar já chegou em muitos lugares.
O discurso de Lula foi um divisor de águas. É verdade que muita água ainda vai correr debaixo da ponte, é muito cedo para previsões. Mas já se pode dizer que mudou a conjuntura, novos caminhos surgem no horizonte. De repente, como Fênix, Lula ressurgiu das cinzas de sua condenação ilegal e desponta como o candidato mais bem colocado para barrar o projeto fascista em curso e garantir a democracia, condição para o avanço das lutas populares e, por isso mesmo, sempre ameaçada pela direita.
Para isso realmente ocorrer, é necessário desencadear agora uma ofensiva política. A eleição de 2022 será decidida nos confrontos pela democracia travados este ano. Para barrar o Estado de Exceção e o projeto autocrático em curso, a oposição tem que partir para a ofensiva. Chegou a hora e a vez da desobediência civil.
Liszt Vieira é professor universitário, sociólogo, e político brasileiro ligado ao movimento ambientalista. É formado em direito e estudante de ciências sociais, quando da edição do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em dezembro de 1968.