Anatomia de um crime
O caso da Luana é, por excelência, a expressão máxima da dimensão sexual da violência racial que se manifesta na criminalização, subjugação, exploração e execução, principalmente, de pessoas negras lésbicas, transexuais, travestis, seja em casa, na rua ou nos tribunais
No dia 8 de abril de 2016, Luana Barbosa dos Reis Santos foi espancada por três policiais da Companhia da Força Tática do Quinquagésimo Primeiro Batalhão de Ribeirão Preto/SP. Luana, uma mulher negra LGBTQIA+, estava em numa moto com seu filho quando passaram por uma blitz policial. Eles pararam. Luana exigiu ser revistada apenas por uma policial feminina, já que a lei garante esse direito. O protesto foi suficiente para uma sessão de espancamento que culminou na sua morte, dias depois, por traumatismo crânioencefálico.
O caso da Luana guarda estrita relação com os dados estatísticos mais recentes da violência letal no Brasil que revelam que 76,2% das pessoas assassinadas, em 2021, eram negras. Entre as mulheres, 61,8% das vítimas de feminicidio eram negras. Também, 63% das crianças de 0 a 9 anos e 81% das adolescentes vítimas da violência letal eram negras. Na última década foram 405.8011 pessoas negras mortas, o equivalente à população da capital do Tocantins, Palmas, dizimada, diz o Anuário de Segurança Pública.
Ainda que a violência contra LGBTQIA+ seja invisibilizada, dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mostram que, em 2021, tivemos pelo menos 140 assassinatos de pessoas transexuais, sendo 135 travestis e mulheres transexuais e 5 casos de homens transexuais e pessoas transmasculinas. O estudo identificou a identidade racial das vítimas e concluiu que 81% eram travestis e transexuais, majoritariamente pretas e pardas, e jovens, entre 18 a 29 anos. Nesse mesmo sentido, a pouca disponibilidade de dados estatísticos sobre a realidade das lésbicas dificulta enxergarmos a dimensão da especificidade da violência no país. A partir das informações do “Dossiê sobre lesbocídio no Brasil”, de 2014 até 2017, é possível traçar um panorama sobre o aumento anual dos casos registrados desde 2013, com crescimento de 80% entre 2016 (30 casos) e 2017 (54 casos). Os dados também demonstram que a maioria das vítimas (assassinadas e suicidadas) estão na faixa até 24 anos e 42% eram negras.
Nesse sentido, a morte de Luana é reflexo da realidade cruel que combina racismo, sexismo, classismo. O que as experiências de mulheres como Luana revelam, apesar da sua resistência contra a violência patriarcal aqui representada pela polícia, é que prevalece o poder soberano do Estado. Esse tipo de violência aparece aqui como uma afirmação de que não se pode resistir, especialmente corpos que não estão conformados pelas construções de gênero considerados “normais” na sociedade brasileira.
Eu tive contato com a família de Luana, por meio do meu ativismo contra a violência do Estado e depois como advogada assistente de acusação, junto à competente equipe jurídica do caso. A análise do processo criminal revela uma prática comum nos encontros das gentes negras com o Estado policial: pessoas como Luana são por definição puníveis, e pessoas como os policiais são, por definição, inocentes. Ali, a referência à Luana, pelos policiais, sempre enfatizou aspectos de sua biografia que, de acordo com eles, poderiam justificar a sua morte. Por exemplo, o território racializado da favela onde Luana cresceu é a base da destruição de sua biografia visto como local de “interesse de segurança pública”. Ou seja, a favela é o lugar de residência ativado como marcador racial da culpa e, portanto, do legítimo assassinato. Referências quanto à sua identidade sexual aparecem quase sempre de maneira indireta, mas facilmente associadas a seu comportamento dito por eles como “desviante”. Embora a delegada responsável pela abertura do inquérito tenha dito que não sabia da identidade sexual da Luana, referências aparecem em todo o discurso jurídico. De outro lado, os policiais militares aparecem nas narrativas legais como as “vítimas da injusta agressão”, cristãos e “de família”. A agressão à Luana é revelada como um “encontro” fortuito em que os agentes do Estado fazem seu trabalho enquanto são atrapalhados por quem põe resistência às suas ações.
Aqui temos então a inversão da vitimização. De vítima à culpada. O agente da violência é Luana não somente em relação aos policiais, mas também em relação a ela mesma. Luana se matou. Dialeticamente produzida, a produção da culpa se estabelece em relação à produção racial da inocência em favor dos policiais. Na verdade, a inversão da ordem acontece desde o início do processo. Luana é presa. Logo ao chegar na delegacia é aberto um procedimento criminal imputando a ela a autoria de lesão corporal contra os policiais. Mais tarde o relatório médico do hospital revelaria que sua morte se deu por traumatismo crânio encefálico, em decorrência de espancamento, dado aos hematomas visíveis no seu corpo. Da mesma forma, o vídeo feito pela família na saída da delegacia de polícia é possível ver Luana com hematomas no rosto e sem consegui ficar em pé. Ainda assim, na audiência de debates e julgamento, perguntamos o porquê de a delegada não ter chamado uma ambulância para Luana quando esta chegou à delegacia. Sua resposta, “não vi nenhuma lesão”, é reveladora da perspectiva assumida desde o início. Para a delegada do caso, “Luana não estava machucada”. O assassinato de Luana, nessa perspectiva, não dependeu de outro agente a não ser dela mesmo. Morreu porque estava histérica. Morreu porque seu corpo produz alta periculosidade. Morreu porque resistiu!
Como o trabalho da advocacia ativista pode ajudar a desconstruir esse padrão insidioso de produção sexo-racial da culpa? Sem querer transformar sua biografia em material para consumo acadêmico, a curta vida de Luana é em si mesmo todo um manifesto da nação heteropatriarcal, a qual é reatualizada e performada nos encontros brutais das mulheres negras com a polícia. O caso da Luana é, por excelência, a expressão máxima da dimensão sexual da violência racial que se manifesta na criminalização, subjugação, exploração e execução, principalmente, de pessoas negras lésbicas, transexuais, travestis, seja em casa, na rua ou nos tribunais, como objetos de persecução penal. O sistema de dominação raça-sexo-heteropatriarcal instalado na sociedade brasileira incide, de maneira muito particular, sobre o corpo de pessoas negras LGBTQIA+ como um lugar paradigmático do poder de normatizar corpos fora da lei, circunscrever lugares e gerir a política da morte.
No brutal encontro com os agentes de segurança pública, o espancamento é inscrito no seu corpo e intensificado pela intersecção de distintas formas de vulnerabilidades a que ela já estava submetida como lésbica não feminilizada, negra, moradora de favela. Como a experiência das lésbicas, transexuais, corpos dissidentes se torna paradigmática? É paradigmática porque é o corpo desviante dos corpos desviantes. Ou seja, ser negro é ser desviante. Ser mulher é ser desviante. Ser pobre é ser desviante. Qual o corpo, cuja alteridade de raça-sexo-gênero-classe, o coloca em uma posição de não lugar, mesmo entre matáveis? Nesse sentido, essa experiência é a que mais encapsula, com mais propriedade, a experiência negra. Não apenas na sua dor, mas também nas suas formas de resistências. Seu não lugar, seus corpos/corpas desviantes é, por assim dizer, um território, uma corpografia da resistência.
É aqui que a experiência de Luana pode nos ajudar a pensar estratégias radicais por um Brasil livre do heteropatriarcado e do racismo. Os movimentos sociais pelo direito à cidade, pelo trabalho, pelo meio ambiente, contra o racismo, pelo abolicionismo das polícias, das prisões, pela vida, precisam se organizar, sob bases políticas que levem em consideração o “não lugar” ou o lugar paradigmático de pessoas negras, como Luana Barbosa. A afirmação amplamente evocada nos círculos políticos negros de que a libertação das mulheres negras representará a libertação de todas as pessoas do mundo – afinal, nas palavras da nossa Sueli Carneiro, as mulheres negras são “as últimas da fila depois de ninguém” – deve ser levada às suas últimas consequências.
A organização de lésbicas e bissexuais que compõem a Coletiva Luana Barbosa e a campanha Nenhuma Luana a Menos, ambas organizações políticas que surgiram em resposta ao brutal assassinato de Luana, apontam para essa direção. Vamos escutar esses movimentos. A Campanha oferece suporte familiar e apoio emocional, jurídico e de articulação social para proteger membros da família de Luana e a comunidade de Paiva Neto, mesmo com todas as limitações financeiras e de outras ausências. Uma lição desses movimentos é que eles desafiam a linguagem burocrática forense e as perspectivas reformistas de “salvar” o Estado para denunciar o lesbocídio, o genocídio antinegro ancorados, sobretudo, na experiência múltipla de Luana Barbosa dos Reis Santos.
Dina Alves atua como Assistente de Acusação do Ministério Público no processo criminal sobre o assassinato de Luana Barbosa dos Reis Santos. É liderança negra apoiada pelo programa Marielle Franco, do fundo Baobá, advogada, doutora e mestra em Ciências Sociais pela PUC/SP, com pesquisas na área de Antropologia: Rés negras, judiciário branco: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana e a tese “Corpografias raciais: uma etnografia das captividades femininas negras em São Paulo”, artista ativista e feminista negra abolicionista.