Anistia que te quero sempre!
Não há lugar, portanto, para reivindicar “anistia nunca mais”. Enquanto lutamos por democracia, por um mundo de igualdade e justiça social, precisamos ter anistia. Não devemos repetir palavras de ordem que confundem e não orientam no sentido de construir a democracia, as liberdades políticas e a dignidade das pessoas humanas.
Anistia, uma palavra tão cara ao povo brasileiro, aos familiares de militantes políticos e desaparecidos, amigas e amigos, profissionais diversos, estudantes e demais populares que estiveram nas ruas, em meados de 1970, sob plena ditadura, em busca de liberdades políticas.
Na época, sob a vigência do AI-5, o ato mais truculento da ditadura, precisávamos de todas as liberdades políticas.
Numa estratégia de sobrevivência moral e política, começamos a reivindicar a anistia, com o significado de apagar os crimes considerados pela lei de segurança nacional, que nada mais eram que atos de resistência e defesa de direitos humanos em plena ditadura.
Em 1975, as mulheres, organizadas no Movimento Feminino pela Anistia, sob a coordenação de Therezinha Zerbine, lançaram um abaixo-assinado, cujas assinaturas eram colhidas, pessoalmente, de mão em mão, nos eventos, nas ruas, nos bairros e escolas, nas portas de fábricas, nas igrejas, com dificuldades impostas pela repressão política, sob ameaças de prisões e atos violentos.
Os familiares de mortos e desaparecidos políticos se empenharam na luta pela anistia, ampla, geral e irrestrita. Ao lado da reivindicação, foi exigida que houvesse apuração, responsabilização dos agentes que cometeram os crimes de sequestro, inclusive de crianças e bebês, tortura, estupro, assassinatos e ocultação dos cadáveres e que todos eles fossem devidamente punidos e condenados.
Entraram na luta pela anistia diversos setores da sociedade, estudantes e suas agremiações, sindicatos e associações profissionais, advogadas e advogados e inclusive parlamentares. Criaram o Comitê Brasileiro pela Anistia que reuniu todos os movimentos do Brasil e até do exterior.
Não podemos deixar de referenciar as mães, como por exemplo, D. Maria, que fez, pela primeira vez em público, no Congresso Nacional da OAB, em São Paulo, em 1976, a leitura de uma carta dos familiares reivindicando anistia, ainda que de maneira quase invisível. Valeu a pena. Assim a palavra anistia passou a ter certa repercussão nos meios políticos, reforçada, corajosamente, por D. Paulo Evaristo Arns, cardeal da Arquidiocese de São Paulo, o seu maior defensor. Outros nomes de celebridades, artistas e políticos, apoiaram a anistia, no decorrer das lutas.
Naquela época, já se denunciava e exigia-se o reconhecimento de que tais crimes são de lesa humanidade e são imprescritíveis.
A lei da anistia n. 6.683, aprovada em 28 de agosto de 1979, foi um passo decisivo para se criar as mínimas condições na construção de um processo democrático.
Essa anistia ainda que limitada, pois não alcançou de pronto guerrilheiros e guerrilheiras, trouxe de volta uma parcela grande da militância política que não aderiu à luta armada. Trouxe de volta para uma convivência social e política a militância que vivia na clandestinidade e que vivia no exílio.
A anistia abriu caminho para se ter um governo civil, ainda que não eleito pelo voto popular e uma Constituinte com a maior participação popular da História da República do Brasil, que resultou na Constituição Federal de 1988, que, infelizmente, tem sido violada com frequência.
Os militares, vinculados aos órgãos repressivos, não permitiram anistia aos que lutaram com armas para por fim à ditadura. Temiam que a busca pelos militantes desaparecidos levasse à verdade e à justiça, denunciando, com provas contundentes, seus crimes estarrecedores de lesa humanidade.
A Anistia veio e mais tarde outras leis tiveram que incluir outras questões como a Lei 10.559/2002, que reconheceu a anistia a mais de 60 mil pessoas perseguidas pela ditadura, que foram demitidos de seus empregos e perderam até mesmo suas residências.
A Lei 9.140/1995 reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de militantes de oposição à ditadura.
Nenhuma delas puniu os militares e agentes públicos responsáveis pelos crimes de lesa humanidade. Mas todas elas abriram caminhos para a busca da verdade e da justiça.
A anistia historicamente tem sido aplicada aos casos de militantes que defendem a democracia e a justiça social e são arbitrariamente punidos por regimes fascistas e estados de exceção. Não há anistia para aqueles que cometeram crimes contra a humanidade, como torturas e estupros, assassinatos e ocultamento de cadáveres.
A impunidade se mantém apesar do Brasil ter sido condenado pela CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos/OEA em dezembro de 2010. A sentença condenatória obriga o Estado brasileiro a apurar os crimes da ditadura e responsabilizar criminalmente os autores de tais crimes, aplicando-lhes as sanções e outras consequências legais.
A Corte considerou inaceitável a concessão de anistia aos perpetradores de crimes contra a humanidade. A Corte não aceita a tese da auto anistia.
Não há lugar, portanto, para reivindicar “anistia nunca mais”. Enquanto lutamos por democracia, por um mundo de igualdade e justiça social, precisamos ter anistia. Não devemos repetir palavras de ordem que confundem e não orientam no sentido de construir a democracia, as liberdades políticas e a dignidade das pessoas humanas.
Temos que deixar bem explícito o nosso repúdio à impunidade dos agentes públicos, sejam civis, sejam militares, autores de crimes de violações de direitos humanos, contra a vida e as liberdades. Estes devem ser severamente punidos de acordo com a legislação, pois cometeram os crimes contra a humanidade, como os sequestros, torturas diversas, o estupro, os assassinatos de opositores da ditadura militar, assim como os que praticaram genocídios e perseguições que levaram à morte de milhares de pessoas, indígenas, pretos e pretas e as que vivem em situação de miséria. Deverão também ser devidamente punidos as pessoas e seus grupos que fizeram ataques terroristas e depredaram as dependências dos Três Poderes da República, em 8 de janeiro de 2023, comprometendo drasticamente a estrutura do estado democrático de direito.
Genocídio é crime de lesa humanidade. Temos que cobrar ações no sentido de punir tais criminosos sob pena de vivermos sob os eternos sentimentos de medo e sob ameaças estarrecedoras de ofensas ao nosso povo e à democracia.
Defendemos a democracia, a anistia ampla, geral e irrestrita e a punição aos autores de crimes de lesa humanidade de ontem e de hoje.
Maria Amélia de Almeida Teles é militante feminista de direitos humanos e integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.