Anonymous, a contestação mascarada
Em 18 de janeiro, milhares de sites dos EUA saíram do ar em protesto contra o Sopa, um projeto de lei antipirataria que pode levar à censura da internet. No dia seguinte, o FBI derrubou o site de downloads Megaupload. Em resposta, o coletivo Anonymous atacou páginas do governo. Emerge uma nova cultura de contestação?Felix Stalder
Muito eficazes, os ataques cibernéticos realizados em nome da liberdade de expressão e da justiça social sob o rótulo “Anonymous” estão se multiplicando. Últimos alvos atualizados: o site da ArcelorMittal na Bélgica, no início de janeiro, para protestar contra o fechamento de dois altos-fornos; o site da Stratfor, empresa particular de análise de dados de inteligência norte-americana, do qual foram roubadas dezenas de milhares de dados pessoais; o Ministério da Defesa da Síria, em agosto de 2011; ou antes, em junho, o site da polícia espanhola, após a detenção de três supostos membros do Anonymous nesse país.
Quem se esconde por trás dessa máscara? Hackers de elite, adolescentes ignorantes, ciberterroristas perigosos, simples trolls (perturbadores) com humor colegial? Nenhuma dessas definições é falsa, porque cada uma abrange uma faceta do fenômeno. No entanto, todas passam ao largo do essencial: Anonymous não é um, mas vários; não é um grupo nem uma rede, mas um coletivo ou, mais precisamente, coletivos que se apoiam uns nos outros.
À sua maneira – extremada –, Anonymous é emblemático dos movimentos de protesto que se estendem desde 2011 tanto no mundo árabe como na Europa e nos Estados Unidos. O abismo que os separa dos sistemas políticos que contestam se manifesta em formas radicalmente diferentes de organização. Por um lado, estruturas hierarquizadas, com dirigentes autorizados a falar em nome de todos por procedimentos de delegação de poder, mas cuja legitimidade foi enfraquecida pela corrupção, o favoritismo, o uso indevido das instituições. De outro, os coletivos deliberadamente desprovidos de líderes, que rejeitam o princípio da representação em benefício da participação direta de cada um em projetos concretos. Sua diversidade permite que a tomada de decisão se faça por agregação rápida de participantes em torno de um tema específico, em vez de buscar uma maioria oficial. O establishment político considera essas formas de organização ininteligíveis e expressa sua perplexidade com a falta de reivindicações concretas com que poderia se comprometer.
Esses coletivos temporários – que também podem ser descritos como “enxames”, swarm, em inglês −1 são compostos de indivíduos independentes, que utilizam ferramentas e regras simples para se organizar horizontalmente. Como salienta o fundador do Partido Pirata sueco, Rick Falkvinge, “como todo mundo é voluntário […], a única maneira de dirigir é ganhar o apoio dos outros”.2 Assim, a força do coletivo vem do número de pessoas que ele reúne e da luz que lança sobre seus projetos diversos e independentes.
Um coletivo nasce sempre da mesma maneira: um apelo à mobilização com a disponibilidade de recursos para ação imediata. Especialista em mídias sociais, Clay Shirky identificou três elementos essenciais para o surgimento desse tipo de cooperação flexível: uma promessa, uma ferramenta e um acordo.3 A promessa está no chamado, que deve ser interessante para uma massa crítica de ativistas e cuja proposta deve parecer viável. Isso pode incluir, por exemplo, atacar determinado site do governo em resposta à censura. Ferramentas disponíveis on-line, como o famoso software Low Orbit Ion Cannon (Loic), assim chamado em referência a Star Wars, permitem coordenar os esforços dispersos de voluntários. O acordo abrange as condições com que cada um concorda ao entrar no espaço coletivo da ação.
“Esculhambação ultracoordenada”
Ao longo do tempo, as três dimensões podem evoluir e o coletivo crescer, mudar de orientação, desagregar-se. Para que não desapareça tão rapidamente como surgiu, é preciso um quarto elemento, um horizonte comum que “permita que os membros dispersos de uma rede se reconheçam uns aos outros como vivendo no mesmo universo imaginário de referência”, como escreveu o crítico de arte e ensaísta Brian Holmes.4 É aqui que entra a famosa máscara de Anonymous. Identidade aberta, resumida por alguns slogans bastante gerais, elementos gráficos e referências culturais partilhadas: cada um pode reivindicar para si, mas isso só faz sentido se se compartilha o mesmo espírito, o mesmo humor, as mesmas convicções antiautoritárias e a mesma fé na liberdade de expressão.
O presidente francês, Nicolas Sarkozy, em vão apelou, no e-G8 em Paris, em maio de 2011, por uma “internet civilizada”; os recantos escuros onde tudo é possível continuam a existir. O site www.4chan.org, fórum criado em 2003, simples do ponto de vista técnico e eleito pelos internautas, é um exemplo desse esforço: podem-se postar ali textos e imagens sem se inscrever, sendo as mensagens assinadas como “Anonymous”. Seu fórum mais frequentado, /b/, não obedece a nenhuma regra quanto ao conteúdo. O site não armazena os posts: as mensagens que não suscitam nenhuma resposta são deslocadas para baixo na lista antes de serem eliminadas, o que geralmente acontece em poucos minutos. Nada é arquivado. A única memória que vale é a dos internautas. Uma lógica que tem suas vantagens e inconvenientes: tudo que é difícil de lembrar e não é repetido desaparece.
Para não mergulhar no esquecimento, muitas dessas mensagens tomam a forma de chamadas diárias para a ação – por exemplo, um convite para vandalizar determinada página do Wikipédia. Se a ideia agrada a um número suficiente de internautas, um pequeno enxame se abate sobre o alvo. Apenas por diversão. A repetição e o compromisso criaram uma cultura em que as individualidades e as origens desaparecem, uma tradição de “esculhambação ultracoordenada”, segundo a expressão de umhacker entrevistado por Gabriella Coleman, antropóloga da cultura geek.5 Em cinco anos, esses anônimos se tornaram Anonymous, termo genérico ou avatar de uma identidade coletiva. Seu hábito de ir além dos limites permitidos pelo anonimato caminha ao lado de uma profunda desconfiança em relação a todas as formas de autoridade que tentam regulamentar o discurso na internet, por razões consideradas perfeitamente hipócritas, como a luta contra a pornografia infantil.
Assim, não é coincidência que, durante o inverno [do Hemisfério Norte] de 2008, internautas tenham adotado essa identidade para atacar o endereço da Igreja da Cientologia. A guerra havia sido declarada uma década atrás pelos hackers; estes revelavam fraudes e manipulações, enquanto a Igreja da Cientologia mobilizava recursos consideráveis para remover as informações embaraçosas e destruir a reputação daqueles que a criticavam. Os Anonymous entraram na história quando a seita tentou impedir a circulação de um vídeo de propaganda em que o ator Tom Cruise, um alto representante da Igreja, parecia mentalmente desequilibrado. Em resposta à inevitável enxurrada de ações judiciais, um vídeo falsamente sério dos Anonymous anunciou a iminente destruição da seita.
Seguiu-se em vários fóruns de discussão um período de polêmicas virulentas, após o que se elaborou uma combinação específica promessa-ferramentas-acordo. Além das ações on-line, um dia global de ação foi organizado. Manifestações foram realizadas em 18 de fevereiro de 2008, em noventa cidades da América do Norte, Europa, Austrália e Nova Zelândia. Para escapar de represálias da seita, um bom número de manifestantes usava a agora famosa máscara de Guy Fawkes, inglês rebelde católico do século XVI, imitando assim o herói de V de vingança, a HQ de Alan Moore cuja história se passa em um mundo totalitário. Pela primeira vez, membros dos Anonymous se encontraram fisicamente fora da rede, estabelecendo a ligação com ativistas mais tradicionais.
Essas manifestações continuaram a ser o principal objetivo político dos Anonymous durante os dois anos que se seguiram. Então, em setembro de 2010, um coletivo se formou em torno da campanha Operation Payback. Esta começou com um ataque contra a Airplex Software, a empresa indiana encarregada de atacar o site de compartilhamento de arquivos The Pirate Bay. A campanha logo se espalhou para os sites da Motion Picture Association of America (MPAA) e organizações que defendem, sob o pretexto da luta contra o compartilhamento de arquivos, o controle da internet. Grito de guerra: “Eles falam de pirataria, nós falamos de liberdade”.
Durante essas ações, a identidade política dos Anonymous se definiu; seus meios técnicos e suas estratégias se sofisticaram. Em dezembro de 2010, quando o WikiLeaks foi impedido de receber doações após ter publicado telegramas diplomáticos,6 a Operation Payback reapareceu e atacou os sites da MasterCard, Visa, PayPal e Bank of America. Em janeiro de 2011, os Anonymous intervieram de uma forma muito organizada na Tunísia, onde atacaram sites do governo. Blogueiros tunisianos sentiram então a sensação de poder contar com a solidariedade internacional.
Efeito galvanizador
Ao longo de todo o ano de 2011, os coletivos Anonymous se multiplicaram e lançaram inúmeros apelos. Às vezes, eram internautas desejosos de chamar a atenção para si mesmos ou de tirar proveito de modas midiáticas. Mas isso não impediu outros coletivos de reunir um grande número de pessoas. Em 23 de agosto de 2011, os Anonymous divulgaram um vídeo que chamava a ocupar Wall Street, ecoando uma ideia que havia algumas semanas já era defendida pelos canadenses da Adbusters.
Os exageros e a audácia dos Anonymous lhes permitem adotar slogans tão fortes – “A pirataria é a liberdade” –, a que nenhum ator político tradicional ousaria recorrer sem medo de perder a credibilidade. E com um efeito galvanizador radical das energias latentes que ficam entediadas com as mobilizações convencionais. No entanto, qualquer que seja sua força, a espontaneidade em grande escala não pode competir com as instituições estabelecidas, a não ser pelo caminho da destruição. Essa forma de organização não tem como objetivo criar instituições alternativas. Ela colabora para a formação de um horizonte comum de contestação que facilitará talvez a ação futura e já rachou paredes que pareciam indestrutíveis. Outros manifestantes transformarão essas falhas em aberturas.
Felix Stalder é Professor da Universidade de Artes de Zurique e pesquisador do Instituto de Tecnologias de Viena.