Aos cuidados dos proprietários de terra
Com 235 deputados de 513 no total, e 27 senadores de 81, a bancada ruralista se mostra bastante empreendedora. De sua autoria estão iniciativas que aumentariam a violência no campo se aprovadas: um projeto de lei legalizando o porte de armas por produtores rurais; outro que propõe inscrever o MST e outros movimentos de trabalhadores do campo na lista de “organizações terroristas”
Uma grande reunião acontece todas as terças em uma linda pousada de um bairro de alto padrão de Brasília. “É um almoço e o menu muda toda semana”, explica o encarregado de comunicação da “bancada ruralista”. No cardápio não estão petiscos ou menu degustação, e sim temas que esse grupo de latifundiários do Parlamento discutem em sala fechada para, em seguida, levar ao Congresso ou ao Palácio do Planalto.
“É exatamente isso: eles discutem com qual molho vão devorar os direitos indígenas ou a reforma agrária”, ironiza Alceu Castilho, responsável pelo De Olho nos Ruralistas, um observatório da indústria agroalimentar no Brasil. Desde a chegada de Michel Temer à Presidência em 2016, a bancada parlamentar ganhou uma influência inédita. O mérito? Ter contribuído com metade dos votos do Congresso que destituíram a presidenta Dilma Rousseff. Confrontado com uma impopularidade abissal (menos de 5% dos brasileiros se dizem satisfeitos com seu governo), Temer não conseguiria se manter no poder sem o apoio dos ruralistas. E de fato o presidente é convidado com frequência para o almoço de terça.
Nestes dois anos, “o presidente tem nos atendido plenamente, isso é verdade. Mas ainda há muitos obstáculos para superar”, avalia João Henrique Hummel, diretor do Instituto Pensar Agro, o anfitrião desses almoços. Pensar Agro é um “think tank sem fins lucrativos” que agrupa as quarenta principais organizações agrícolas no Brasil, todas também desprovidas de “fins de lucro”, ressalta Hummel. O instituto financia as atividades do grupo parlamentar ruralista, elabora propostas e analisa os projetos de lei desse campo. Em relação aos “obstáculos”, Hummel relembra “duas recuadas de Temer” nestes dois anos. A primeira vez quando renunciou à diretriz de abolir a qualificação de “trabalho escravo”, conforme a reivindicação dos ruralistas. Em nome dessa qualificação, em 2017, o Ministério do Trabalho liberou 2.264 trabalhadores de 165 empresas que os mantinham em “condições análogas à escravidão”, notadamente em latifúndios. A segunda vez foi quando tentaram liberar a mineração em uma das reservas amazônicas mais importantes, a Renca. Ambas as vezes, a pressão internacional forçou o recuo. Uma pena para os amigos de Hummel, que se consolam em constatar que o presidente satisfez treze dos dezessete “temas prioritários” que pautaram no Congresso.
Essa lista de “reclamações” compreende em primeiro lugar os entraves à expansão territorial do agronegócio, em particular na Amazônia. A palavra-chave dos ruralistas nesse campo é “flexibilização”: a das análises preliminares das concessões de exploração (sejam de mineração ou agrícolas), mas também a da obrigação de realizar estudos de impacto ambiental.
Também reivindicaram uma lei que permita às empresas estrangeiras adquirir terras sem limitações – o que foi, de fato, implementado – e desejam que os “entraves históricos” aos seus negócios sejam suprimidos, entenda-se: os direitos indígenas e de comunidades quilombolas, além da obrigação por parte do Estado de empreender uma reforma agrária diante da desigualdade da propriedade das terras no Brasil. Vitória: não apenas o governo Temer propôs uma reforma constitucional visando à mudança das regras de demarcação de terras indígenas de comunidades quilombolas, mas também amputou o orçamento de dois organismos públicos essenciais, o Instituto Nacional de Colonização e da Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Desde sua chegada à Presidência, Temer suprimiu o Ministério do Desenvolvimento Rural, que desenvolvia políticas favoráveis aos pequenos agricultores. Uma nova lei limita a reforma agrária e prevê a regularização de terras adquiridas a um preço bem inferior aos praticados no mercado – prática histórica entre os latifundiários. “Essa lei é uma grande derrota para a democratização da propriedade da terra”, resume Julianna Malerba, doutoranda em Planejamento Urbano na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ela muda completamente as regras e provoca uma concentração ainda maior. Além disso, permite anistias fiscais e reduções de dívidas aos latifundiários”, pontua.
Há dois anos, o ministro da Agricultura é “o maior dos ruralistas”: Blairo Maggi, conhecido no Brasil como “rei da soja”, proprietário do grupo Amaggi e maior produtor mundial da commodity, citado no Panama Papers por ter montado com o grupo Louis-Dreyfus uma empresa super-rentável nas Ilhas Cayman. “Esse governo suprimiu toda a regulamentação ambiental para a agricultura, de sementes transgênicas a inseticidas”, explica Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Agrário da PUC-PR. “E o enquadramento legal já era limitado. A lei permite, atualmente, o uso de pesticidas proibidos em seu país de origem.”
Com 235 deputados de 513 no total, e 27 senadores de 81, a bancada ruralista se mostra bastante empreendedora. De sua autoria estão iniciativas que aumentariam a violência no campo se aprovadas: um projeto de lei legalizando o porte de armas por produtores rurais; outro que propõe inscrever o MST e outros movimentos de trabalhadores do campo na lista de “organizações terroristas”…
Os ruralistas também dirigiram duas comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre o Incra e a Funai. Essas comissões pedem que a justiça investigue 96 pessoas (antropólogos, responsáveis de ONGs nacionais e internacionais, procuradores, juízes etc.), acusadas por eles de “fraudes na demarcação e homologação de terras indígenas”. “O Poder Judiciário tem uma grande responsabilidade nos processos de criminalização dos movimentos sociais”, inquieta-se Layza Queiroz Santos, advogada do Comitê Brasileiro de Defesa dos Direitos Humanos. “Se a relação de forças entre progressistas e conservadores não se equilibrar no Congresso que será eleito este ano, a violência no campo vai recrudescer.”
Enquanto o governo Temer se abre para o agronegócio, quase 4 milhões de camponeses permanecem sem terra no Brasil, em um território com 66 mil latifúndios improdutivos, que representam 175 milhões de hectares (uma área um pouco menor que a do México, que tem 196 milhões de hectares). “E esses números são estimados para baixo”, ressalta Marés de Souza Filho. “Os critérios que medem a produtividade datam de 1975. Se a miséria dos camponeses não for levada em conta, os conflitos vão se radicalizar.”
O número de brasileiros que vivem em estado de extrema pobreza aumentou em 11,2% entre 2016 e 2017, passando de 13,34 milhões para 14,83 milhões de pessoas – sujeitos que jamais participam do almoço de terça-feira.
*Anne Vigna é jornalista.