“Aqui, quem manda é a guerrilha”
As medidas de acompanhamento do acordo de paz assinado em 2016 entre Bogotá e as Farc se encerram em 15 de agosto, enquanto a reforma agrária prometida se arrasta, travando o processo. Nesses três anos, cerca de 500 militantes de movimentos sociais e 180 ex-combatentes foram assassinados. Em 20 de maio, o ex-negociador da paz pelas Farc, Iván Márquez, declarou: “Depor as armas foi um grande erro”. Ele voltou à clandestinidade
Torre
Tibú, nordeste da Colômbia. A explosão despertou o bairro. A terceira em algumas semanas. Como nas vezes precedentes, o alvo era uma câmera de vigilância da polícia. Na queda, a torre onde ela estava destruiu o teto de uma casa. “Você ficou com medo?”, pergunta-nos Edwin. “Eles as derrubam porque são blindadas e não conseguem pô-las fora de uso apenas com tiros.” “Eles”? Edwin não diz quem são. No outro dia de manhã, na rua, todos comentam: “A guerrilha voltou a destruir uma câmera esta noite”.
Zona vermelha
Situada no departamento do Norte de Santander, na fronteira com a Venezuela, Tibú se encontra na “zona vermelha”: aquela à qual a paz negociada entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) ainda não chegou.1 Em todas as entradas da aldeia, soldados observam atentamente o desfile de ônibus e motocicletas. As pessoas passam sem nem sequer levantar os olhos – duas, três, às vezes, quatro no mesmo veículo de duas rodas. O ronco dos motores se mistura às músicas tradicionais que se ouvem nos recintos mal regulamentados de lojas e restaurantes. De dia, os agentes de polícia patrulham em caminhonetes, com coletes à prova de bala e armamento ostensivo. De noite, o piscar vermelho de um drone lembra que o poder público continua vigiando a zona, mas a distância. Nessas horas, as milícias urbanas da guerrilha fazem a lei. Invisíveis, confundem-se com a fauna noturna que joga sinuca e frequenta os bares. Prostitutas venezuelanas, camponeses deslocados pela guerra, vendedores ambulantes… É impossível saber quem trabalha para a vasta rede de informantes dos rebeldes. “Aquele sujeito caído no chão, lá longe, pode ser um deles”, brinca nosso contato. “De qualquer modo, você está sendo observado desde que desceu do ônibus.”
Presença
Há alguns dias, dois rapazes suspeitos de roubar motos foram assassinados. “Em Tibú, o roubo é impossível. Mas isso não quer dizer que alguns não tentem”, explica Fabian Contreras, membro de uma organização de defesa dos direitos humanos, a Fundación Progresar [Fundação Progredir]. “A guerrilha marca sua presença graças ao controle social que exerce sobre a população. Tudo fica fácil pela ausência do Estado: o Catatumbo é uma zona rica em recursos naturais, mas pobre em investimento econômico. As infraestruturas públicas são quase inexistentes.” Nosso interlocutor lança um rápido olhar por sobre o ombro antes de prosseguir: “As pessoas podem dizer o que quiserem. Mas aqui, na verdade, é a guerrilha que manda”.
Guerra flutuante
Nem uniforme, nem arma, nem bandeira. “Você sabe que a CIA tem equipamentos de reconhecimento facial?”, interroga Jairo. “As novas tecnologias nos obrigam a reforçar as medidas de proteção.” Mal chegando à casa dos 30, o jovem integra a rede urbana do Exército de Libertação Nacional (ELN). Não podemos mencionar seu nome nem o lugar onde o encontramos. Ele nos foi apresentado por um grupo de militantes revolucionários com os quais combate. Um pé na legalidade, o outro na luta armada. “O ELN se afastou do modelo de guerra aberta das Farc. Não pretende crescer como exército regular”, esclarece Carlos Medina Gallego, professor e pesquisador da Universidade Nacional da Colômbia, em Bogotá. “Os guerrilheiros do ELN desenvolveram um modelo chamado ‘guerra flutuante’, sem frente de combate, sem teatro de operações ou mesmo território administrado. Entretanto, a guerrilha controla a população nas zonas onde é ativa: cobra impostos, designa candidatos às eleições, infiltra-se em organizações sociais. Sem dúvida, o ELN possui acampamentos onde se acham os comandantes, mas o essencial de suas forças são unidades especiais encarregadas de agir contra alvos militares, políticos e econômicos. Essas unidades, formadas por milicianos (combatentes urbanos), se fundem com a população. São invisíveis.”
Jairo não contestaria essa descrição. Profissional liberal, sempre de bermuda e tênis, o rapaz não dá pistas de seu engajamento. De resto, não cita jamais o nome do ELN: diz apenas “a organização”. Fundada em 1964 sob o impulso da Revolução Cubana e de um grupo de estudantes colombianos que foram a Cuba para adquirir experiência militar, o ELN se tornou rapidamente um ator importante no conflito colombiano, embora fosse eclipsado por guerrilhas mais poderosas (as Farc) ou responsáveis por ações mais espetaculares (o M-19). Após os acordos de paz entre Bogotá e as Farc, assinados em 2016 depois de quatro anos de negociações, o ELN ficou sendo a mais antiga organização rebelde do país. As conversações que ele havia iniciado com o governo foram interrompidas pela explosão de um veículo surpreendido dentro da escola de polícia de Bogotá, em 17 de janeiro último. O grupo armado reivindicou o atentado, que, em plena capital, provocou a morte de 22 aspirantes a oficiais. A despeito dessa demonstração de força, a organização permanece isolada em algumas zonas do território colombiano. Menos coberto pela mídia do que as Farc (pois não é tão importante no plano militar), o ELN goza de uma aura política mais fraca junto à população fora de suas zonas de influência. Alguns, como Medina Gallego, acham que ele faz o papel de adversário de estimação do poder. “O ELN é um inimigo consentido pelo Estado, que pode alegar sua existência para justificar uma política de repressão. O ELN não ameaça o governo: é útil para ele.”
Estrada
Uma simples corrente estendida de lado a lado na estrada faz as vezes de pedágio na saída de Tibú. Por um peso, o jovem que vigia a passagem deixa-a cair no chão arenoso. “É um pedágio dos combatentes”, dizem-nos, sem precisar que combatentes são esses. O caminho está livre. A moto se lança pela trilha, que mergulha na vegetação luxuriante da selva. Depois de uma eternidade, a estrada de terra chega ao asfalto da rodovia em construção, que vai conectar Tibú a Cúcuta, a capital do departamento.
“Estão viajando por terra? Em pleno Catatumbo?”, espanta-se o oficial militar que nos detém para um controle de identidade. “Não sabem que aqui é uma zona de guerra? Podem ser sequestrados.” Decidido a impor sua presença, até então inexistente nesse enclave, o Estado acredita que a nova rodovia facilitará a luta contra os grupos armados. Encarregado da obra, o Exército colombiano repele os ataques constantes do ELN, particularmente ativo na região. Dias antes de nossa passagem, dois artefatos explosivos visaram soldados em um dos trechos.
Bússola
Aqui, as rivalidades políticas ainda se resolvem pela violência. “Recebemos ameaças”, conta Mario, responsável por um pequeno grupo de militantes comunistas politicamente próximos das Farc. Eles preparam as eleições regionais do outono em uma região que contribuiu para a ascensão à presidência de Iván Duque, homem da extrema direita. “Sabemos, de fonte segura, que pessoas viriam aqui para nos cortar os cabelos.” Cortar os cabelos? “Matar-nos”, reformula Mario, antes de acrescentar: “Mas nós também temos amigos capazes de dar o troco. Isso permite a manutenção de um status quo”.
Os dedos da mão não bastam para enumerar a quantidade de atores armados que agem no departamento: militares, paramilitares, guerrilheiros, ex-narcotraficantes e seus concorrentes às vezes oriundos dos grupos armados etc. São aliados em potencial que partilham ou disputam os movimentos políticos locais. Um jogo de alianças por vezes contra a natureza: “O EPL [Exército Popular de Libertação], uma antiga guerrilha maoista, trabalha com alguns grupos paramilitares que, por seu turno, indicam seu pessoal político às eleições”, explica Mario. Resultado, segundo ele, da “perda da bússola ideológica”. “Antes, cada guerrilha seguia a linha ideológica do partido revolucionário do qual era próxima. As Farc tinham o Partido Comunista, o EPL se inspirava no Partido Comunista Marxista-Leninista e o ELN se apoiava em várias organizações, como A Luchar [Lutemos]. Tudo isso acabou. Já não há trabalho político. Basta avaliar os resultados eleitorais obtidos pelo partido das Farc.” A nova plataforma política só obteve 49.170 votos nas eleições legislativas de 2018 (0,34%). “As Farc acabaram descobrindo a diferença entre fazer política com um fuzil e sem ele. A capacidade de convencer não é a mesma…”
Humildade
Faz cerca de cinco meses. Uma das figuras nacionais do novo partido das Farc, Gloria Martínez, uma ex-combatente, circulava pela região a bordo de seu 4×4 quando foi interceptada… por antigos companheiros. Membros da “dissidência” desarmaram os guarda-costas da dirigente política e em seguida liberaram todos. “Quiseram lhe dar uma lição de humildade”, explica uma das pessoas que nos contaram a história. “A mulher se tornou muito arrogante, no entender deles, com aquele carro blindado, aquela escolta e aquela nova condição de política, tudo isso à custa do Estado que sempre haviam considerado um inimigo!”
Trinta e três
Órfão desde a infância, criado pelos avós, William Ferrer Ortiz juntou-se à guerrilha das Farc com 17 anos. “Tornei-me guerrilheiro por causa da direita”, conta ele hoje. Originário do Catatumbo, foi testemunha da incursão violenta de grupos paramilitares no departamento, no fim dos anos 1990. Massacres às cegas, expulsões, tudo se fez para facilitar a tomada de milhares de hectares por grandes famílias de proprietários de terras, apoiados por governos sucessivos. Obrigados a deixar a fazenda onde viviam, William e sua família caíram na miséria. Um só caminho estava aberto ao adolescente: el monte, “a mata”. Entrou para a Frente 33 das Farc, em cujas fileiras combateu por dezenove anos.
Como boa parte dos ex-camaradas, William abandonou as armas. Estas foram entregues aos enviados da ONU após a instalação de diversos grupos de combatentes em 24 zonas de reagrupamento (oficialmente, Espaços Territoriais de Formação e Reincorporação, ETFR), previstos pelos acordos de paz. Inteiramente construídos pelos guerrilheiros graças ao material fornecido pelo Estado e por países observadores do processo de paz (como a Noruega), esses espaços de transição para a vida civil enfrentam inúmeras carências (de água potável, eletricidade) e isolamento. Isso agrava a desmoralização de seus ocupantes. “Chegamos à zona de reagrupamento em fevereiro de 2017. Depois que devolvemos as armas à ONU, as coisas se deterioraram rapidamente. O regulamento militar da organização já não se aplicava. Sem o risco de sanções, muitos não quiseram participar das tarefas coletivas, como a cozinha. Estavam também nesse número alguns oficiais veteranos. Depois, pouco a pouco, várias pessoas foram indo embora para as cidades ou para o seio de suas famílias.” Entre eles, William, que hoje mora em Cúcuta com os pais de uma mulher que conheceu: uma professora pela qual se apaixonou. Achou até trabalho. “A guerrilha me ensinou o sentido do esforço e posso fazer qualquer tipo de tarefa. O que aprendi na selva agora me serve na cidade.”
Perto de desconhecidos, o homem se mostra discreto quanto a seu passado: o risco de represálias não é uma lenda. Cento e oitenta ex-combatentes já foram mortos em todo o país, um bom número deles na região. “Prometeram-nos muitas coisas, principalmente que seríamos protegidos, mas o governo não cumpriu a palavra”, desabafa. Em 15 de agosto de 2019, todos os ETFR perderão seu estatuto jurídico, bem como a proteção do Exército. Do mesmo modo, o Estado deixará de pagar os 740 mil pesos (cerca de R$ 850) mensais que concede aos combatentes desmobilizados. Voltar ao Catatumbo, a Tibú? William nem pensa nisso: outro perigo o espreita ali. “Se me virem, vão querer que eu vá com eles”. “Eles”? Companheiros de armas que não renunciaram à luta armada, os “dissidentes” que tentam reforçar suas linhas recrutando antigos camaradas desmobilizados durante o processo de paz. As pessoas convocadas têm escolha? William finge não ter entendido a pergunta.
A maior parte das frentes ainda ativas opera nas zonas fronteiriças do país. “Nem todas são reconhecidas como organizações com uma orientação política”, adverte o analista Kyle Johnson, membro da ONG Crisis Group, sediada em Bogotá. “Mas, no caso do Catatumbo, a dissidência preenche os critérios necessários.” Entre as exigências: a proximidade com uma comunidade local e a consideração, em atos e reivindicações, de suas prioridades. Em Tibú, os dissidentes retomaram o nome de origem de sua frente, “o 33”, como a chamam de novo os habitantes locais. E não estão sós: após expulsar seus rivais do EPL e ter concluído, ao que parece, um acordo com o ELN, os guerrilheiros rebeldes das Farc reencontraram sua antiga fortaleza na região. Inúmeros grafites revelam sua presença nos bairros pobres da periferia da cidade. Em uma casa lemos, à guisa de advertência: “Farc-EP, Frente 33. Não queremos nem os maus, nem os ladrões, nem os dedos-duros”.
Chocolate
Uma hora e meia de moto, costas doloridas por causa de um terreno acidentado, cheio de pedras. Chegamos enfim à zona de reagrupamento de Caño Indio, onde moram os ex-combatentes das Farc da região. Um grupo de militares patrulha a entrada: como na maior parte das zonas de reagrupamento, a de “Caño” está sob a vigilância do Exército colombiano, o adversário de ontem, hoje encarregado de proteger ex-combatentes da ameaça paramilitar. Barracas se alinham uma ao lado da outra. O rosto de Ernesto “Che” Guevara foi pintado em uma das fachadas, junto a uma rosa, símbolo da formação política criada pelas Farc, a Força Alternativa Revolucionária do Comum: Farc, também. No centro, uma grande estufa onde cresce o cacau, cuja produção visa facilitar o retorno à vida civil dos ex-combatentes. Alguns se aventuraram na produção de cerveja; outros, na de roupas. Aqui, é o chocolate.
Em sua tenda um pouco afastada, o comandante Jimmy Guerrero nos recebe. Foi por ordem dele que a Frente 33 veio para Caño Indio. “Éramos 317 ao chegarmos, em fevereiro de 2017. Agora, não passamos de oitenta”, desola-se o idoso de cabelos brancos. E acrescenta: “Respeito a escolha de cada um, tanto os que foram para a cidade a fim de começar uma vida nova quanto os que decidiram se juntar à dissidência. Estes eu conheço, é claro, pois os comandei. O Exército me pediu que fizesse o papel de mediador e os convencesse a depor as armas. Recusei-me. Não é esse meu papel. Além do mais, aqui, com todos os atores armados que disputam o território, tomar o partido de um é provocar os outros. Precisamos conservar certa neutralidade para continuarmos vivos”.
Estratégia
Gerardo é um combatente na ativa. Quarentão, baixo, boné na cabeça, pertence à rede urbana do ELN, em Tibú. A seu ver, a dissidência não faz parte dela. E os combatentes das Farc jamais depuseram realmente as armas. “Você não acha mesmo que eles foram suficientemente estúpidos para entregar todas, não é? Não era preciso ser adivinho para saber que o Estado trairia os acordos de paz.” Assassinatos de ex-combatentes, ameaça de extradição para os Estados Unidos de Jesús Santrich (ex-membro da equipe de negociação das Farc do acordo de paz), ausência de política em matéria de erradicação de plantações ilícitas etc. Nosso interlocutor apresenta vários exemplos para justificar sua teoria. A situação foi agravada pela ascensão ao poder de Duque, em 2018. “Era preciso manter uma porta aberta: a dissidência é seu plano B.”
“Que voltem!”
Durante o verão de 2018, quatro ex-combatentes desmobilizados foram assassinados em El Tarra (Catatumbo). Alguns citam os paramilitares, que agiriam em conjunto com o Exército, os inimigos de sempre, que, apesar dos acordos de paz, seguem uma estratégia de erradicação conhecida por todos, mas que um artigo recente do New York Times acaba de revelar ao grande público: “O chefe do Estado-Maior colombiano […] ordenou às suas tropas que dobrassem o número de criminosos e militantes a serem mortos, capturados ou forçados a se render durante os combates – ainda que isso implique mais mortes de civis”.2 Outros mencionam o EPL, que se empenharia em acertar velhas contas com os concorrentes de ontem. Enfim, alguns culpam a dissidência, cheia de ódio, sobretudo contra os ex-combatentes que tiveram a má ideia de se aproximar dos militares ou dos policiais. “O conflito se tornou fluido”, reconhece Jacobo, ex-guerrilheiro das Farc. E isso principalmente porque muitos mergulharam na delinquência e no narcotráfico, achando que a reinserção no mundo do trabalho os condenaria à miséria. No meio desse caos, uma constatação: o desespero dos camponeses que outrora se acomodavam à ordem imposta pela todo-poderosa guerrilha das Farc. Eles só pedem uma coisa: “Que as Farc voltem!”.
Sabotagem
“Jimmy não vai admitir, mas se sente mal com sua tropa”, confidencia-nos Clara, funcionária da Agência de Reintegração e Normalização (ARN), organismo encarregado da reinserção dos combatentes na vida civil. “Acha-se culpado porque todos confiavam nele. Jimmy os trouxe aqui, a Caño Indio, e agora, diante das omissões do governo, descobre que não há nada a lhes propor. Os espaços serão fechados em agosto e não haverá mais salários. Ninguém sabe para onde ir nem quem os protegerá.” Uma lágrima cintila no olho da jovem. Pedindo que não citemos seu nome verdadeiro, denuncia a “sabotagem do governo”, como na questão da terra. Muitos ex-combatentes esperavam poder ficar em “Caño” após o verão, quando o período de transição previsto pelos acordos de paz terminará. Mas o poder bloqueou as ações dos guerrilheiros desmobilizados que tentavam comprar terras. Seu pretexto? A necessidade de “garantir a segurança” de uma região em que o conflito persiste. “As autoridades propuseram deslocar as pessoas para Los Patios, perto de Cúcuta, onde as terras são controladas pelos narcotraficantes”, explica Clara sem medo. “Os ex-combatentes das Farc não quiseram ir, é claro. Ali, seriam assassinados.”
Libertação
Situado no alto de uma colina, o prédio religioso está no meio de um bairro pobre de uma cidade no norte de Santander, para onde nos conduz Jairo, nosso contato entre os combatentes do ELN. “Aqui, com o padre, garantimos uma obra comunitária junto aos habitantes graças à criação de hortas coletivas”, explica. O padre da paróquia, um homem de baixa estatura, nos recebe com um sorriso tímido e nos leva para uma encosta, a algumas centenas de metros do edifício religioso. Lá estão as hortas e os pomares formados pela “organização”. “Antes, isto aqui era um lixão. Hoje, cultivamos frutas, coentro, manjericão. Temos até algumas ovelhas”, conta o religioso. “Tentamos estimular a agricultura local e a autossuficiência em proveito das pessoas desfavorecidas. É o comunismo concreto.” “O padre já foi do ELN”, sussurra Jairo.
O vínculo entre a Igreja Católica e o grupo armado não chega a surpreender. Desde o berço, o ELN se apoia em uma corrente de pensamento muito em voga durante os anos 1960 no continente: a teologia da libertação, que prega a participação ativa da instituição eclesiástica na luta contra a pobreza e na análise das condições sociais, econômicas e políticas que ela engendra. Próxima do marxismo, trabalha pela união entre homens da Igreja e movimentos revolucionários. O ELN conta em suas fileiras com as figuras nacionais mais emblemáticas dessa doutrina: o padre Camilo Torres Restrepo (morto em combate em 1966) e o cura Manuel Perez Martínez (falecido em 1998), que foi comandante-chefe do ELN por vários anos. Embora sua aura política tenha enfraquecido nos últimos anos, o ELN mantém ainda laços estreitos com os adeptos dessa corrente no seio da Igreja. E isso propicia, em um país profundamente católico como a Colômbia, uma tribuna importante junto à população.
Na pequena cozinha da sede de um partido de esquerda aonde ele vai regularmente, Jairo reuniu uma dezena de jovens militantes, rapazes e moças, com idade entre 14 e 25 anos. Em volta de um notebook, o pequeno grupo ouve um discurso de Hugo Chávez, o ex-presidente da Venezuela (1999-2013). Segue-se um debate sobre o tratamento dado pela mídia ao processo bolivariano. “Conhecem o mito da caverna, de Platão?”, pergunta Jairo de repente. “Acorrentados numa gruta, um grupo de homens só enxerga, do mundo, as sombras projetadas pela luz do sol, que vem de fora. Um deles é forçado a sair e volta a fim de convidar os outros a segui-lo para tomarem consciência de sua cegueira.” Jairo estabelece então um paralelo entre a fábula e a “deformação da realidade” operada pelas grandes mídias. “Nossa missão, como na alegoria, é ‘levar a mensagem’ aos nossos semelhantes.” E o jovem conclui: “Agora, terminamos nosso primeiro curso de teologia da libertação. Falei de Jesus Cristo ou de Deus? Não”.
Katerine
“Há uma semana, ainda comíamos juntos”, suspira Violeta no acampamento das Farc de Caño Indio. “Hoje, cada um come sozinho em seu canto.” A moça lamenta uma forma de individualismo que se instaura na pequena comunidade de ex-combatentes. A passagem de uma vida dedicada ao coletivo para a condição de cada um por si parece sem volta. A televisão substituiu a leitura em grupo de jornais, ninguém mais se levanta ao nascer do sol nem faz exercícios, a disciplina militar se perdeu. Katerine se juntou à guerrilha em 1987. Passou trinta anos de sua vida na selva, ao ar livre. Ainda hoje, apenas encosta a porta da cabana que ocupa, sem trancá-la. Com seu caderninho de notas, participa do grupo de escrita animado por um casal de jornalistas presentes no campo, por algumas horas. Instam os ex-combatentes a escrever “sua” história. Katerine lê o que colocou no papel: “Devo agora reaprender o que desaprendi, tornar-me aquilo que fui. Renascer. Mas não quero ser chamada pelo meu nome verdadeiro. Usei por trinta anos o nome de guerra Katerine e é ele que pretendo continuar usando”.
Loïc Ramirez é jornalista.
1 Ver Gregory Wilpert, “Pourquoi la Colombie peut croire à la paix” [Por que a Colômbia pode acreditar na paz], Le Monde Diplomatique, set. 2012.
2 Nicholas Casey, “Colombia’s Army New Kill Orders Send Chills Down Ranks” [As novas ordens do Exército da Colômbia para matar abalam as fileiras], New York Times, 18 maio 2019.