Armadilha inconstitucional da nova lei de saneamento básico
O cenário no Brasil é de grave exclusão do saneamento por ausência de estrutura básica. Todavia, o novo marco do saneamento básico, que supostamente viria a combater esse déficit humanitário, ao invés de se utilizar dos mecanismos exitosos dos planos anteriores para corrigir problemas, baseia-se na privatização dos serviços como o grande motor da melhoria
O novo marco legal do saneamento básico no Brasil (lei nº 14.026/2020), convive (no que não se sobrepõe) com o fundamento legislativo do saneamento, representado pela lei 11.445/2007, denominada Lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico, que não caducou e não se tornou obsoleta, tendo sido parcialmente revogada. Em síntese, a nova lei planeja a gestão do saneamento em vertentes que abrangem abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, drenagem urbana e gestão de resíduos sólidos, ao tempo em que abriu caminho para um modelo agressivo de inserção do capital privado no chamado “negócio” do saneamento.
A nova lei ampliou e aprofundou as competências e responsabilidades da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), que ficou responsável pela elaboração das normas de referência. A lei também impôs aos estados o formato de regionalização do sistema de águas e saneamento, por blocos de municípios integrados, sob pena de divisão compulsória e irrevogável feita pela própria União. Além disso, foram extintos os chamados “contratos de programa” celebrados com as companhias estaduais de águas e esgotos, em regime preferencial, exigindo abertura de licitação para a participação de empresas privadas. Por fim, no pacote de alterações, a lei de 2020 incluiu a eliminação do subsídio cruzado, que incorpora o princípio da solidariedade entre municípios superavitários e deficitários do sistema de água e esgoto, na ponderação político-econômica dos estados.
É preciso asseverar que a imposição do modelo de regionalização, com prazo e penalidade estipulados de antemão, desvirtua o princípio federativo da autogestão dos estados e dos municípios. Mas não é só isso – outros aspectos da norma não resistem a análises comparativas de gestão ou de conformidade jurídica, deixando-a propícia à judicialização, visto que, além da imposição do modelo pela União, segundo o disposto nos artigos 48, XVII, 49, XIV e 50, §1º, os estados não aderentes terão suspensos os repasses de recursos federais de financiamento e investimentos. Existem três ações de inconstitucionalidade em tramitação no Supremo Tribunal Federal: ADIs nº 6536, interposta pelo PC do B; 6583, interposta pela Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento; e 6492, pelo PDT.
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O cenário no Brasil é de grave exclusão do saneamento por ausência de estrutura básica. Todavia, a lei nº 14.026/2020, que supostamente viria a combater esse déficit humanitário, ao invés de se utilizar dos mecanismos exitosos dos planos anteriores para corrigir problemas, baseia-se na privatização dos serviços como o grande motor da melhoria. De modo açodado, a lei ordenou aos estados a adesão ao formato da microrregionalização, constituindo este o seu problema mais urgente, visto que os estados brasileiros têm até o dia 16 de julho de 2021, quando completa um ano de publicação da lei, o prazo para implantar a regionalização e adotar o modelo final de adaptação. Entre os meses de abril e junho, os estados correram para aprovar leis complementares em regime de urgência, ou seja, sem discussão pública ou legislativa e isso é assustador por causa do aligeiramento de questões de fundamental relevância, como o próprio direito humano à água, representante destacado do princípio da dignidade humana.
O estado da Paraíba, localizado no nordeste do Brasil, com 223 municípios e população de mais de 4 milhões de habitantes, aprovou sem debate efetivo a lei complementar 168/2021, para criação das microrregiões de água e esgoto. Adotou o modelo de divisão por blocos regionais de quatro grupos, a saber: Litoral, Borborema, Espinharas e Alto Piranhas, regidos por autarquias intergovernamentais de regime especial, integradas pelos respectivos municípios, em estrutura conveniada, com caráter deliberativo e normativo e personalidade jurídica de direito público. Cada microrregião dessas exercerá as competências relativas à organização e execução de funções públicas, que compreendem planejamento, regulação, fiscalização e prestação, direta ou contratada, dos serviços públicos de abastecimento de água, esgotamento sanitário e manejo de águas pluviais urbanas.
Na Paraíba, o anteprojeto foi disponibilizado para consulta pública no dia 30 de abril de 2021, pela Secretaria Estadual de Infraestrutura, dos Recursos Hídricos e do Meio Ambiente, tendo sido em seguida convocada, pelo governo do estado, audiência pública para a criação das microrregiões de água e esgoto, realizada em 18 de maio de 2021. Em apresentação on line, a equipe técnica mentora do projeto de lei complementar, ao que se sabe, a mesma equipe que elaborou projetos semelhantes para outros estados, estipulou uma premissa inédita de divisão: o critério adotado não foi o das bacias hidrográficas, posto que a Paraíba possui 11 bacias, de igual modo, não foi o comitê de bacias, visto que a Paraíba possui 05 comitês, tampouco foi o das regiões metropolitanas, visto que a Paraíba possui 13 regiões.
Este exemplo mostra que existiram templates padronizados para “facilitar” o trabalho interno dos estados. Em suma, diante dos argumentos analisados, os condutores do processo (na Paraíba e no Brasil) tomam como categorias de base duas visões dicotômicas, quais sejam (i) a compreensão de água e saneamento como setor de serviço regulado e como direito humano garantido (e seus desdobramentos) e (ii) o modelo de regionalização como o único apto a carrear a prescrição legal. Na verdade, identificou-se nesse argumento uma justificativa astuciosa para anestesiar o debate em torno do propósito de privatização (e seus desdobramentos), primeiramente dos serviços, depois dos leitos pluviais, no contexto de Estados muitos pobres com indicadores sociais frágeis, como é o caso da Paraíba.
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Alterações da nova lei de saneamento
Como dito, houve graves alterações nas atribuições de competência da ANA, que passou a abranger: (i) a elaboração progressiva de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico, por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras; (ii) a manutenção e operação dos sistemas de saneamento básico; (iii) a regulação tarifária dos serviços dentro de parâmetros como o equilíbrio econômico-financeiro; (iv) a universalização do acesso ao saneamento básico. As metas prioritárias do processo podem ser assim resumidas: viabilidade técnica e econômico-financeira do sistema integrado, com criação de ganhos de escala e eficiência e garantia de universalização dos serviços.
Estamos em julho de 2021 e, neste momento, o marco regulatório está longe de ser implementado, por diversas razões, entre as quais a total falta de estruturação da Agência. Ainda, no afã de atrair o competior privado, a nova lei acabou gerando problema na ordem dos prazos: (i) regionalização pelos Estados, prazo de 01 ano; (ii) cumprimento de medidas preliminares pela ANA, 2 anos; (iii) adesão dos municípios à prestação regionalizada, prazo de 180 dias; (iv) adesão dos órgãos reguladores locais às normas de referência, prazo de 90 dias. Se os municípios não aderirem os recursos não serão enviados e se os órgãos reguladores não aderirem, da mesma forma, não haverá transferência de recursos.
No tocante ao dever de regionalização imposto pela União aos estados, a lei 14.026/2020 comporta situação jurídica estranha ao estipular a regionalização obrigatória, mediante a instituição de duas novas figuras de prestação regionalizada, quais sejam a unidade regionalizada (ou microrregiões), a ser criada pelos Estados por meio de Lei complementar, e o bloco de referência, a ser criado pela União como punição, na hipótese de os Estados não editarem a respectiva lei complementar estadual, no prazo de um ano de publicação da lei. A liberação de recursos federais ficou também condicionada à adesão do Estado ao modelo de prestação regionalizada assim como às normas de referência, ainda não expedidas pela agência reguladora federal.
Outro fator de grave impacto foi a vedação dos Contratos de Programa. A maior parte dos contratos que regem a relação entre o titular do serviço e o concessionário é classificada como “de programa”, caracterizando-se pela inexistência de processo licitatório e vinculação dos municípios às empresas estaduais de água e saneamento, a partir de convênio entre as partes, vedada a delegação das funções de planejamento, regulação e fiscalização. Nos termos da nova legislação, esses contratos deixam de existir, respeitando-se os vigentes, fato que impele muitos municípios, de forma isolada ou associada, a licitarem esses serviços, proibidos de firmar contratos de programa diretamente com a operadora estadual (art. 8º, Inciso II, parágrafo 1º). Significa que a lei induz claro incentivo a um “mercado de licitações de saneamento”, cenário ideal para intensa participação de investidores privados.
Por fim, vem a questão do Subsídio Cruzado, que, no setor de saneamento, deriva de dois mecanismos: (i) por estabelecimento de consumo mínimo e, a partir daí, com valores progressivos conforme o consumo; b) por diferença tarifária na qual se discriminam categorias, com faixa diferenciada de preços conforme o enquadramento – residencial, (tarifa social e tarifa normal), comercial, industrial e público. Nessa sistemática, ocorre a redistribuição tanto entre consumidores como entre produtos, assim, o sistema opera eficientemente, universalizando o serviço sem excluir consumidores de baixa renda e sem excluir um dos serviços (água ou esgoto).
Sob a égide da lei anterior tinha-se um regime pautado no modelo solidário e redistributivo do subsídio cruzado, embutido na própria estrutura tarifária, no entanto, a partir da nova lei, isso não será mais possível. Como consequência, pelo exemplo histórico de outras localidades, é possível antever que os primeiros efeitos serão o aumento das tarifas para as comunidades mais carentes (não mais protegidas) e a incerteza sobre a tarifa social, alternativa a descartar na estrutura tarifária das companhias.
O fato é que as empresas privadas poderão ser favorecidas nas regiões superavitárias, todavia, ficará para as companhias estaduais o dever de manter contratualmente as obrigações sobre regiões que não se pagam em termos de tarifas. O impacto pode desestruturar as companhias estaduais de água e saneamento, posto que a prática de subsídios cruzados entre municípios só faz sentido quando uma mesma empresa atende a diferentes áreas de concessão, abrangendo regiões deficitárias e superavitárias ao mesmo tempo.
No caso do estado da Paraíba, cabe lembrar que está pendente, ainda, o custeio, pela população, das obras da transposição do Rio São Francisco, visto que o estado assumira, quando da contratação, o custeio da operação e da manutenção da obra. Corre-se o risco de dupla tarifação: pela oneração acarretada com a regionalização, em face do financiamento por tarifa ante a possibilidade de ingressantes privados, e pela obras de transposição, cuja forma de pagamento deve ser por meio de tarifa a impactar sobre a conta de água e esgoto para consumidores individuais e empresas. Por sua vez, a obra de transposição está sendo objeto de estudo para fins de privatização, conforme consta no Decreto Federal nº 9.954, de 5 de agosto de 2019.
É este o cenário que se encontra hoje no Brasil. Uma mudança dessa magnitude necessitaria ser discutida com todos os setores atingidos, não podendo ser implementada durante a pandemia. As profundas reformas não estão sendo percebidas pela grande maioria da população, especialmente os mais vulneráveis, e as consequências a médio e longo prazo certamente serão a perda da garantia de universalização dos serviços, com aumento de tarifas e ausência de projetos de saneamento da zona rural. Destruído o setor, mais uma vez, o Estado será chamado a republicizar, não sem antes comprometer direitos humanos essenciais.
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa é doutora em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; professora titular e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (PPGCJ) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB); bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
José Irivaldo Alves de Oliveira Silva é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); doutor em Ciências Jurídicas pela UFPB; professor do curso de Gestão Pública da UFCG; bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.
Aendria de Sousa do Carmo Mota Soares doutoranda em Ciências Jurídicas pelo PPGCJ-UFPB; Mestra em Direito pela UFMG; Especialista em Direito Tributário pelo CEAJUFE; Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Bolsista Capes