Arte independente também se produz
Às margens da represa de Guarapiranga, Varal Cultural é grande mostra de arte da metrópole. Organizado todos os meses, revela rapaziada que é crítica, autogestionária, cooperativista e solidária — mas acredita em seu trabalho e não aceita receber migalhas por eleEleilson Leite
Os caras e as minas que movimentam a cena cultural nas beiradas da metrópole fazem arte com consciência, atuam em parceria e inventam eles mesmos suas alternativas de apresentação, criação e divulgação. É o imperativo do faça você mesmo. Todo o apoio é bem vindo, sobretudo das políticas públicas, mas a ausência de condições não faz da periferia um deserto cultural. A arte na quebrada corre como fogo no pavio. Exemplo disso é o Varal Cultural, um evento que acontecerá na Zona Sul, no Espaço Forasteiro, às plácidas margens da Represa Guarapiranga, neste sábado, dia 15 de março. A parada é organizada por dois jovens que moram na região do Grajaú: Edson Patriota, 29 anos e Apampa, codinome de Anderson de Oliveira Silva, 25 anos. Esses rapazes começaram do zero e estão prestes a realizar um dos mais grandiosos eventos da periferia de São Paulo.
Concebido como uma ampla mostra de arte independente, o Varal Cultural, não se restringe à periferia. É desdobramento de um empreendimento baseado no site www.varalcultural.com.br. O espaço virtual funciona como uma vitrine para grupos e artistas individuais divulgarem seus discos e shows. O portal agrega também artistas plásticos, tatuadores, produtores e todo mundo que estiver a fim de “desenvolvimento artístico e cultural, atuando sem preconceitos”, informa o site. E dessa forma reúne artistas de diferentes perfis garantindo a diversidade a que se propõe o evento.
Se você não for à Guarapiranga neste sábado, não desanime. A idéia é que o evento aconteça todo terceiro sábado do mês. Anota aí: dia 19 de abril será o próximo. Mas entre no site do Varal Cultural antes e terás uma prévia do que pode rolar. Tem lá o Gangsteria, um projeto que une os grupos de rap Agressão Cerebal e Sentimento de Fúria. Quem conhece, garante que o nome faz jus ao que pensam seus integrantes. Uma rapaziada muito crítica, que não faz concessões em suas letras, mas manda o recado com rimas elaboradas e muita criatividade musical.
Ainda na linha do rap, e fazendo um certo contraponto ao Gangsteria, tem o grupo Pacíficos. O nome é também expressão fiel do que pregam os MCs: falam do amor e da alegria que existem na Periferia. Interessante ver esses dois grupos no mesmo espaço. São representantes de estilos diferentes de rap e mostram a riqueza da cena hip hop. O discurso pode ser distinto, mas ambos se unem na defesa da do povo preto, pobre da periferia.
Depois de agitar um rock and roll, viajar no reggae jamaicano: fumaça rolando, casais contemplando as águas que banham a periferia da Zonal Sul, um gran finale no Grajaú…
Confirmando a diversidade de artistas expostos no site do Varal, encontramos também um grupo de música instrumental chamado Carpe Diem. O trio de músicos toca em restaurantes, shopping centers, cerimônias, entre outras ocasiões, “compondo os mais diversos ambientes com peculiar requinte e bom gosto”, diz o texto em que se apresentam. Veja que há uma busca de profissionalismo aí. Os músicos têm consciência do que fazem. Sabem qual o nicho de mercado mais adequado para sua música e escrevem um texto na medida certa para conquistar o cliente. Prezados organizadores de eventos, contratem o Carpe Diem!. Vocês não vão se arrepender.
No Varal Cultural, há também espaço para aquela galera que gosta de fazer um som, quer espaço para tocar, busca ganhar uma grana com isso, mas não abre mão de curtir enquanto toca. Assim parecem ser o grupo de reggae União, Força e Fé e a banda de rock Espírito de Porco. O primeiro é de São José dos Campos, cidade grande do interior de São Paulo, que tem uma periferia de responsa. O nome do grupo também é tradução literal do sentimento dos seus integrantes. Eles seguem os princípios filosóficos do rastafarismo. Já os roqueiros paulistanos do Espírito de Porco mandam um som pesado, tributário do velho e bom rock dos anos 70. Vou fazer campanha para que essas duas bandas toquem na próxima edição do Varal Cultural. Já fico imaginando, depois de agitar um rock and roll, viajar no reggae jamaicano, aquela fumaça rolando, casais contemplando as águas que banham a periferia da Zonal Sul, um gran finale no Grajaú… A noite periférica merece uma balada como essa.
Edson Patriota, Apampa e todos os que com eles promovem o Varal Cultural, acreditam nisso. A expectativa é muito boa. O lugar é grande; cabem 1500 pessoas. Dizem que a gente é do tamanho de nossos sonhos. Esses rapazes pensam alto. Mas não são ingênuos. São empreendedores. O Patriota já teve um bar, o Greguejê, que durante três anos agitou o bairro de Jordanópolis, no Grajaú. Ele conhece bem a cena cultural periférica. Sabe de seu potencial e também dos vacilos da moçada que pensa que o êxito é uma benção do destino. Ele tem visão de negócio e todo dia faz uma parceria nova. Tatuador, juntou-se com outros profissionais do ramo e botou, na mesma casa, estúdio, webdesiger que faz o site e produz flyers, cartazes e cartão de visita para os grupos associados, entre outros serviços. A iniciativa privada na quebrada é autogestionária, cooperativista e solidária. A grana é bem-vinda. Patriota e sua turma não querem distribuir migalhas entre os aliados. Vocês vão ganhar dinheiro sim, rapazes. Uma remuneração conquistada com muita correria e dignidade. O ingresso para o Varal é apenas R$ 5,00. E o legal é que mulher paga igual. São a maior roubada essas baladas gratuitas para as minas e com ingresso inflacionado para os caras. No Varal não tem essa. É barato e é para todos e todas.
Mahatma Gandhi, em uma de suas muitas lindas frases, disse assim: “Nós somos a mudança que queremos”. É tão absoluto isso. Se a gente não é exemplo do que defende, somos uma fraude. O Varal Cultural tem essa coerência gandhiana. Os organizadores pregam uma mudança de mentalidade. Querem mostrar que é possível viver de cultura mantendo os princípios artísticos. E eles próprios seguem essa conduta no trabalho diário. Na noite deste sábado, 15 de março, certamente veremos uma demonstração de que dá fazer negócio e ganhar dinheiro defendendo a cultura independente com eventos grandiosos e de qualidade, com baixo custo e preço justo. Isso sim, é coisa de artista da periferia.
Serviço:
Varal Cultural – Apresentações de rael da Rima Brado M? Bando, K- Bobra Roots e discotecagem de Kiko (pentágono)
Espaço Forasteiro, R. Valentim Ramos Delano, 52, Altura do 2250 da Av. Robert Kenedy (ao lado do Golf Club).
Dia 15 de março(sábado), a partir das 22h, R$ 5,00 a noite toda, fone (11) 3461.5971
Contato: [email protected]
Vara Cultural
Mais:
Agenda Cultural da Periferia:
Para baixar (formato pdf), clique aqui
Eleilson Leite é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edições anteriores da coluna:
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Eleilson Leite é historiador, programador cultural e coordenador do Espaço de Cultura e Mobilização Social da ONG Ação Educativa e coordenador editorial da Agenda Cultural da Periferia.