As armadilhas de uma guerra
Há vários meses as revoltas árabes estão embaralhando as cartas políticas, diplomáticas e ideológicas da região em sentido democrático. A repressão líbia estava ameaçando essa dinâmica. E a guerra ocidental autorizada pelas Nações Unidas acaba de introduzir nessa paisagem um dado cujas consequências são imprevisíveis.Serge Halimi
Mesmo um relógio quebrado indica a hora certa duas vezes por dia. O fato de os Estados Unidos, a França e o Reino Unido terem tomado a iniciativa de uma resolução do Conselho de Segurança autorizando o recurso à força contra o regime líbio não é suficiente para contestá-la de antemão. Um movimento popular desarmado e confrontado a um regime de terror se vê, às vezes, obrigado a recorrer a uma polícia internacional pouco recomendável. Concentrado na própria infelicidade, não negará o auxílio pelo único motivo do Conselho de Segurança ignorar as chamadas de outras vítimas, sobretudo, palestinas ou bareinitas. O movimento até esquecerá que esse auxílio é mais conhecido como uma força de repressão do que como uma associação de ajuda mútua.
Mas o que, logicamente, norteou os insurgentes líbios em perigo extremo não basta para legitimar essa nova guerra das potências ocidentais em território árabe. A intervenção de países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) constitui um meio inadmissível de tentar chegar a um fim desejável (a queda de Muammar Kadafi). Se esse meio adquiriu status de evidência – cada qual é intimado a “escolher” entre os bombardeios ocidentais e o esmagamento dos líbios em revolta –, é unicamente porque outras vias de apoio – a intervenção de um exército da ONU, egípcio ou pan-arabista – foram afastadas.
O balanço passado das expedições ocidentais impede que se dê algum crédito aos motivos generosos de que se vangloriam agora. Aliás, quem acredita que Estados, quaisquer que sejam, dediquem seus recursos e seus exércitos à concretização de objetivos democráticos? A história recente lembra bem, contudo, que se as guerras que alegam esse motivo como pretexto obtêm de início sucessos fulgurantes e amplamente divulgados pela mídia, as etapas seguintes são mais caóticas, mais perigosas e mais discretas. Na Somália, no Afeganistão e no Iraque os combates não cessaram, embora Mogadíscio, Cabul e Bagdá “tenham caído” há anos.
Os insurgentes líbios teriam gostado de derrubar eles próprios um poder despótico, como seus vizinhos tunisianos e egípcios. A intervenção militar franco-anglo-americana ameaça torná-los devedores de potências que nunca se interessaram pela sua liberdade. Mas a responsabilidade dessa exceção regional incumbe essencialmente a Kadafi. Sem a fúria repressora do seu regime que, em 40 anos, passou da ditadura anti-imperialista ao despotismo pró-ocidental, sem suas diatribes que assimilam todos os seus oponentes a “agentes da AlQaeda”, a “ratos que recebem dinheiro e trabalham para os serviços de informação estrangeiros”, o destino do levante líbio teria dependido apenas do seu povo.
A Resolução 1973 do Conselho de Segurança que autorizou o bombardeio da Líbia impedirá talvez o esmagamento de uma revolta condenada pela pobreza dos seus meios militares. Entretanto, ela se aparenta mais a um baile de hipócritas. Não foi porque Kadafi era o pior dos ditadores, ou o mais letal, que suas tropas foram bombardeadas, mas porque ele era mais fraco que outros, sem armas nucleares e amigos poderosos capazes de protegê-lo de um ataque militar ou defendê-lo na esfera internacional. A intervenção decidida contra ele confirma que o direito internacional não estabelece princípios claros cuja violação acarretaria sanções em toda parte.
Vai desde a lavagem diplomática até a lavagem de dinheiro: o minuto de virtude permite passar uma borracha nas décadas de torpeza. Dessa forma, o presidente francês mandou bombardear o antigo parceiro de negócios que ele recebia em 2007, enquanto todo mundo conhecia a natureza do seu regime – estamos agradecidos por Nicolas Sarkozy não ter proposto a Kadafi o “savoir-faire de nossas forças de segurança” oferecido em janeiro ao então presidente tunisiano Zine El-Abidine Ben Ali. Quanto a Silvio Berlusconi, “amigo íntimo” do guia líbio que viajou 11 vezes para Roma, ele se juntou à coalizão virtuosa a contragosto.
Uma maioria de velhotes contestados pela ascensão democrática encontra-se no seio da Liga Árabe, que se uniu ao movimento da ONU antes de manifestar uma comiseração fingida assim que foram lançados os primeiros mísseis americanos. A Rússia e a China tinham o poder de se opor à resolução do Conselho de Segurança, de modificá-la para reduzir seu alcance ou os riscos de escalada. Se o tivessem feito, elas não precisariam depois “lamentar” o uso da força. Finalmente, para se ter uma ideia da retidão da “comunidade internacional” nessa história, deve-se salientar que a resolução 1973 censura a Líbia por “detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, torturas e execuções sumárias”, coisas essas que não existem em Guantánamo, nem na Chechênia, nem na China…
A “proteção dos civis” não é simplesmente uma exigência incontestável. Ela também impõe, em período de conflito armado, o bombardeio de objetivos militares, isto é, de soldados (frequentemente civis uniformizados), eles mesmos em meio a populações desarmadas. Por outro lado, o controle de uma “zona de exclusão aérea” significa que os aviões que vão patrulhá-la correm o risco de serem abatidos e seus pilotos capturados, o que depois irá justificar que fuzileiros no solo se empenhem em libertá-los.1 Pode-se florear à vontade o vocabulário, não se pode eufemizar a guerra indefinidamente.
Em última análise, esta pertence àqueles que a decretam e a conduzem, e não àqueles que a recomendam sonhando que será curta e alegre. Podem-se elaborar em casa planos impecáveis de uma guerra sem ódio nem “incidentes”, mas a força militar a quem se confia a tarefa de executá-los o fará em função de suas inclinações, seus métodos e suas exigências. Em outras palavras, os cadáveres dos soldados líbios metralhados durante sua retirada são, da mesma maneira que as alegres multidões de Benghazi, a consequência da resolução 1973 das Nações Unidas.
As forças progressistas do mundo inteiro dividiram-se sobre o caso líbio, enfatizando a sua solidariedade para com um povo oprimido, ou a sua oposição a uma guerra ocidental. Os dois critérios de julgamento são legítimos, porém nem sempre se pode satisfazer a ambos simultaneamente. Falta determinar, ao se optar, o que um selo de “anti-imperialista” obtido na arena internacional autoriza a infligir a seu povo no cenário interno.
No caso de Kadafi, o silêncio de vários governos latino-americanos de esquerda (Venezuela, Cuba, Nicarágua, Bolívia) a respeito da repressão que ordenou é desconcertante, principalmente porque a oposição do guia líbio ao “Ocidente” é pura fachada. Kadafi denunciou o “complô colonialista” de que teria sido vítima, mas depois de ter assegurado às antigas potências coloniais que “nós estamos todos no mesmo combate ao terrorismo.Nossos serviços de informação cooperam. Nós os ajudamos muito nesses últimos anos”.2
A exemplo de Hugo Chávez, Daniel Ortega e Fidel Castro, o ditador líbio alega que o ataque de que é alvo seria explicado pelo desejo de “controlar opetróleo”. Contudo, o petróleo já é explorado pela companhia americana Occidental, a britânica BP e a italiana ENI (ler artigo deJean-Pierre Sereni, pág. 30). Há algumas semanas, o Fundo Monetário Internacional (FMI) felicitava o “grande desempenho macroeconômico da Líbia e seus progressos no reforço do setor privado”.3Amigo de Kadafi, Ben Ali recebera cumprimentos semelhantes em novembro de 2008, mas de Dominique Strauss-Kahn em pessoa, o diretor-geral do FMI, que acabava de chegar de Trípoli.4
A antiga pátina revolucionária e anti-imperialista de Kadafi, restaurada em Caracas e Havana, também havia passado despercebida para Anthony Giddens, teórico da “terceira via” blairista.Este anunciou em 2007 que a Líbia se tornaria em breve uma “Noruega da África do Norte: próspera, igualitária e focada no futuro”.5 A se julgar pela lista bem eclética daqueles que ele ludibriou, como acreditar que o guia líbio seja tão louco como dizem…
Várias razões explicam que governos latino-americanos de esquerda tenham se enganado a seu respeito. Quiseram ver nele o inimigo de seus inimigos (os Estados Unidos), mas isso não deveria ser suficiente para fazer dele um amigo. Um conhecimento medíocre da África do Norte – Chávez disse ter se informado sobre a situação na Tunísia falando com Kadafi… – levou-os em seguida a contradizer “a colossal campanha de mentiras orquestrada pela mídia” (como disse Castro). Até porque esta remetia a lembranças pessoais cuja pertinência era discutível nesse caso. “Não sei por que o que se passa, e o que se passou por lá, me lembra Hugo Chávez no dia 11 de abril”, declarou o presidente venezuelano a respeito da Líbia. No dia 11 de abril de 2002, um golpe de Estado apoiado pela mídia graças a informações manipuladas tinha tentado derrubar o poder eleito de Chávez.
Muitos outros fatores apontavam para um erro de análise da situação líbia: uma interpretação forjada por décadas de intervenção armada e dominação violenta dos Estados Unidos na América Latina; o fato de que a Líbia ajudou a Venezuela a se implantar na África; o papel dos dois Estados no seio da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep); a atitude geopolítica de Caracas visando reequilibrar a sua diplomacia no sentido de relações Sul/Sul mais estreitas.
A isso deve se acrescentar ainda a tendência do presidente Chávez de estimar que as relações de Estado a Estado de seu país implicam para ele uma relação de proximidade pessoal com os outros chefes de Estado: “Fui amigo do rei Fahd da Arábia Saudita, sou amigo do rei Abdallah, que esteve aqui em Caracas, durante uma conferência, e nos vimos em várias ocasiões. Há muito afeto. Amigo do emir do Qatar, do presidente da Síria, um amigo, ele também veio aqui. Amigo de Bouteflika”. Quando o regime de Kadafi começou a repressão do seu povo, essa amizade o levou longe demais: “Eu seria um covarde se condenasse aquele que foi meu amigo por tanto tempo sem saber exatamente o que está se passando na Líbia”.6 A coragem, no entanto, teria sido – no mundo árabe, assim como no Irã, na Síria e na Bielorrússia – superar essas considerações. Afinal, Chávez perdeu a chance de apresentar as revoltas populares do continente africano como as irmãs caçulas dos movimentos latino-americanos de esquerda que ele conhece bem.
Além desse equívoco, a diplomacia representa sem dúvida o campo onde, em todos os países, se desvendam melhor os vieses de um exercício solitário do poder feito de decisões opacas, livres de qualquer controle parlamentar e de deliberação popular. Quando, além disso, ela pretende, como no Conselho de Segurança, defender a democracia pela guerra, o contraste é inevitavelmente assombroso.
Depois de ter recorrido, não sem sucesso, à autoridade geopolítica antiocidental e ao argumento progressista da defesa dos recursos naturais, o dirigente líbio não resistiu por muito tempo à tentação de baixar a última carta do confronto de religiões. “As grandes potências cristãs envolveram-se em uma segunda cruzada contra os povos muçulmanos, liderados pelo povo líbio, e cujo objetivo é riscar o Islã[do mapa]”, explicou no dia 20 de março. Treze dias antes, Kadafi havia comparado a sua obra de repressão à do governo de Tel-Aviv contra os palestinos: “Mesmo os israelitas de Gaza tiveram de recorrer aos blindados para combater tais extremistas. Conosco, é a mesma coisa. […] Destacamentos do exército líbio tiveram de combater pequenos grupos da Al Qaeda”.7 Isso não deve ter aumentado a popularidade do guia no mundo árabe.
Mas essa última reviravolta tem pelo menos uma virtude. Ela lembra a nocividade política do discurso que reproduz, invertendo-a, a temática neoconservadora das cruzadas e dos impérios. Porque misturaram leigos e religiosos – e que leigos e religiosos se opuseram a isso – os levantamentos árabes talvez anunciem o fim de um discurso que se proclama anti-imperialista ao passo que é apenas antiocidental. E porque confundem, no seu ódio ao “Ocidente”, o que houve de pior – a política de força, o desprezo dos povos “indígenas”, as guerras de religião – com o que teve de melhor, desde a filosofia das Luzes até a seguridade social.
orientalismo ao contrário
Apenas dois anos depois da revolução iraniana de 1979, um pensador radical sírio, Sadik Jalal Al-‘Azm, esmiuçava as características de um “orientalismo ao contrário” que, ao recusar a via do nacionalismo leigo e do comunismo revolucionário, incitava a combater o Ocidente com um retorno à autenticidade religiosa.
Resumir, como o fez Gilbert Achcar, os principais postulados desse orientalismo ao contrário, permite compreender que a onda de choque nascida na Tunísia talvez os tenha abalado: “O grau de emancipação do Oriente não deve e não pode ser julgado de acordo com valores e critérios ‘ocidentais’, como a democracia, a laicidade e a liberação das mulheres; o Oriente muçulmano não pode ser compreendido com os instrumentos epistemológicos das ciências ocidentais; nenhuma analogia com fenômenos ocidentais é pertinente; o fator que move as massas muçulmanas é cultural, isto é, religioso, e sua importância ultrapassa a dos fatores econômicos e sociais que condicionam as dinâmicas políticas ocidentais; a única via dos países muçulmanos para o renascimento passa pelo Islã; finalmente, os movimentos que empunham o estandarte do ‘retorno ao Islã’ não são reacionários ou regressivos como é percebido pelo olhar ocidental, mas pelo contrário, progressistas pelo fato de resistirem ao domínio cultural ocidental”.8
Tal visão fundamentalista da política talvez não tenha dito sua última palavra; contudo, percebe-se que sua pertinência foi abalada por povos árabes que não querem mais se situar “nem contra o Ocidente, nem a seu serviço”9 e que provam isso focalizando ora um aliado dos Estados Unidos (Egito) ora um de seus adversários (Síria).Longe de temer que a defesa das liberdades individuais, a liberdade de consciência, a democracia política, o sindicalismo, constituam prioridades “ocidentais” maquiadas em universalismo emancipador, os povos árabes as tomam para marcar a sua recusa do autoritarismo, das injustiças sociais, dos regimes de polícia que infantilizam seus povos, ainda mais espontaneamente porque são dirigidos por anciãos. E tudo isso, que lembra outros grandes impulsos revolucionários, que arranca dia após dia conquistas sociais e democráticas de que muitas vezes se perdeu o hábito em outros lugares, eles o empreendem com entusiasmo, no momento preciso em que o “Ocidente” parece estar dividido entre o medo do declínio e a lassidão diante de um sistema político necrosado no qual o igual sucede ao idêntico a serviço dos mesmos.
Nada indica que esse entusiasmo e essa coragem árabes vão continuar a marcar pontos facilmente. Mas já nos revelam possibilidades inexploradas. O artigo 20 da resolução 1973 do Conselho de Segurança, por exemplo, estipula que este “se declara decidido a cuidar para que os bens[líbios]congelados[em aplicação de uma resolução anterior]sejam, em uma etapa posterior, assim que possível, colocados à disposição do povo da Jamahiriya árabe líbia e usados em seu proveito”. Dessa forma, seria possível congelar bens financeiros e entregá-los aos cidadãos de um país. Desde alguns meses, o mundo árabe nos lembra, às vezes dessa forma, duas lições universais: os povos têm o poder de restringir os Estados; os Estados têm o poder de satisfazer os povos.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).