As armadilhas psicológicas do Facebook em tempos de crise da democracia
os botões do Facebook formam um sistema de recompensa à mediocridade. Guiados pela necessidade de afagar seu ego e autoestima, a esmagadora maioria das pessoas estabelece como objetivo natural a obtenção do maior número possível de “likes”
“Il n’ y a de véritable tyrannie que celle qui s’exerce inconsciemment sur les âmes, parce que c’est la seule qui ne se puisse combattre”
Gustave Le Bon – La Psychologie des Foules
Não é novidade que o surgimento da internet e das invenções a ela associadas, como os smartphones e as redes sociais virtuais, modificou substancialmente o modo de vida das pessoas e, consequentemente, a maneira como os seres humanos interagem.
Entre as inovações mais importantes, devemos incluir, sem sombra de dúvida, o Facebook. Criada em 2004, essa rede social conta, atualmente, com mais de 2 bilhões de usuários. Tendo em vista que a população com acesso à internet é de, aproximadamente, 4 bilhões de indivíduos, podemos afirmar, a grosso modo, que metade das pessoas conectadas tem um perfil na plataforma de Mark Zuckerberg.[1] Que implicações isso traz para a sociedade ? Como afeta o comportamento individual ? Pretendo apresentar aqui algumas breves reflexões sobre o tema.
O superego em seu estágio mais avançado
Sigmund Freud e vários de seus discípulos, entre os quais tomo a liberdade de incluir e de destacar Michel Foucault, demonstraram como nosso comportamento é fortemente influenciado, ainda que nem sempre tenhamos consciência disso, pelas normas sociais. Os conceitos de certo e errado, comum e incomum, normal e anormal; bem como o que deve ser rejeitado e o que deve ser idealizado e, se possível, mimetizado, nos são passados desde o momento em que nascemos. Seja de uma maneira clara e objetiva, como em uma bronca dos pais ou do diretor da escola, seja de maneira codificada, como a linguagem monossilábica e a cara emburrada de uma namorada.
Normalmente, as atitudes aceitáveis/desejáveis são recompensadas, enquanto as inaceitáveis/indesejáveis são punidas. Essa lógica pode ser visualizada na legislação dos Estados, sobretudo quando está em jogo a dicotomia liberdade/aprisionamento, ou na progressão funcional no trabalho, mas também é perceptível em detalhes do cotidiano. Se eu convidar a minha mulher para jantar em um lugar especial, certamente não apenas ela, como eu, terei uma noite única. Já se eu fizer alguma besteira das grandes, corro o risco de dormir no sofá.
Muitas vezes, contudo, a dualidade punição/recompensa se apresenta de modo mais sutil. A consequência para nossas ações não é direta nem imediata, mas continua a ocorrer, de forma velada, seja por meio dos famosos e temidos comentários pelas costas, seja por meio de uma admiração nutrida, mas não revelada.
A vida em sociedade é um eterno pisar em ovos, vivemos como o burro entre a cenoura e o chicote. Isso não é necessariamente ruim, pois o bom convívio social depende da existência de algumas regras que permitam, ou que deveriam permitir, estabelecer a harmonia entre interesses pessoais distintos e a maximização do bem-estar de cada um dos indivíduos.
Ok, mas o que o Facebook tem a ver com isso? Quem utiliza essa rede seguramente conhece o sistema de reações a postagens com “likes” e “emojis”. Teoricamente, todos temos a liberdade de postar o que desejarmos. Escolhemos um artigo, uma frase ou uma foto de que gostamos e inserimos na linha do tempo. Isso é maravilhoso, afinal conhecemos os limites de representação nos veículos midiáticos tradicionais. O Facebook oferece um espaço público de divulgação de ideias, de contato social e de projeção pessoal que não existia anteriormente. Há, no entanto, um porém. Existem, por um lado, as postagens que sabidamente terão mais curtidas, ou seja, maior aprovação, como a foto de um casamento suntuoso, uma frase que transmita suposto conhecimento erudito[2] ou o vídeo de um filhote de gato brincando. Por outro, há aquelas que terão menos curtidas, ou, pior, “emojis” expressando desaprovação e comentários negativos, ou seja, serão reprovadas pela comunidade, como um “post” expressando opinião minoritária ou contrária ao senso comum.
Em outras palavras, os “likes” e os demais botões semelhantes solidificam e amplificam o julgamento de valores já existente na sociedade, ao estabelecerem avaliações para a manifestação alheia. Como o objetivo, ainda que subconsciente, é buscar o maior número de “likes” possível – afinal é da essência do ser humano querer se sentir amado, pois afeta diretamente sua autoestima e seu bem-estar, a tendência é recompensar o pensamento mediano e castigar os que pensam diferentemente.
A título de exemplo, digamos que determinada pessoa seja formada em Economia. Ela pode ter estudado nas melhores universidades do mundo e ter muitos argumentos técnicos para defender seu ponto de vista. Ousaria, por exemplo, fazer uma postagem apoiando, em meio à recente greve dos caminhoneiros, a política de preços da então direção da Petrobras e justificando a alta dos combustíveis? Seria uma boa maneira de se desfazer amizades. Talvez não tenha muitas curtidas. Tende a gerar vários “emojis” desaprovadores e, seguramente, a necessidade de despender energia ao responder comentários raivosos. Vale a pena? Nosso amigo economista liberal pode até decidir postar, mas pensará duas vezes antes de fazê-lo, a não ser que já tenha um público cativo que pensa da mesma forma e que o apoia em suas publicações, assunto do qual tratarei mais adiante, ou que busque atrair a atenção para si independentemente de ser sob viés positivo ou negativo, como fez Trump durante sua campanha.[3]
Infelizmente, os botões do Facebook formam um sistema de recompensa à mediocridade. Guiados pela necessidade de afagar seu ego e autoestima, a esmagadora maioria das pessoas estabelece como objetivo natural (ainda que nem sempre consciente) a obtenção do maior número possível de “likes”, o que faz com que evitem expor posições que fujam do senso comum. Como se pode depreender, poucos elementos poderiam ser mais nocivos à diversidade de opinião e ao debate de ideias.
Tornamo-nos ditadores em nossos Facebooks
Entre as características do Facebook que podem ser ainda mais nocivas ao debate de ideias está a possibilidade de restringir a nossa linha do tempo apenas àquilo que queremos ouvir.
« Meu fb, minhas regras !! »
Não há quem não tenha excluído da linha do tempo, ao menos quem conhece essa ferramenta, pelo menos uma pessoa pela insistência em repetir “ad nauseam” as mesmas ideias com as quais não concordamos.
A possibilidade, contudo, de restringir a expressão de opiniões àquelas para as quais já temos inclinação a concordar nos transforma em mini-Hitlers das nossas redes sociais, que censuram opiniões distintas excluindo ou retirando da linha do tempo tudo que lhe parecer inconveniente. O usuário do Facebook vai moldando a realidade ao seu gosto, e cria progressivamente a falsa impressão de que a sua opinião é uma verdade absoluta, pois ela é reforçada reiteradamente pelo círculo seletivo de amigos.[4]
Isso é facilmente observável no Brasil atual tanto no espectro da esquerda, em meio, por exemplo, às feministas mais radicais, quanto no da direita, junto aos antipetistas mais raivosos. Não há espaço para diálogo ou para a diversidade de opiniões. Cada grupo tem seus dogmas (criados pelo mecanismo explicado acima), segue determinadas páginas e publicações, e o botão de curtir e a sessão de comentários são o espaço de reforço e de repressão. Qualquer opinião que fuja ligeiramente do que é esperado por esses grupos, será punida por meio de “bullying”, em forma de uma enxurrada de comentários críticos que visam a evitar a repetição de manifestações semelhantes no futuro.
Não por acaso, conceitos importados acriticamente da «esquerda» norte-americana, como o de « apropriação cultural », que poderiam ter dificuldade em resistir a um debate aberto, se alastram por meio de grupos de « like-minded people », tornando-se novos tabus e bandeiras, que ocupam espaço que poderia estar sendo utilizado para levantar questões muito mais relevantes e profundas, como a violência, a fome, a desigualdade socioeconômica e o subdesenvolvimento no Brasil e o avanço da extrema-direita no mundo.[5]
Com o auxílio das ferramentas oferecidas pelo Facebook, os grupos atuais mantêm sua unidade e incrementam seu radicalismo. « Somos nós contra a sociedade machista patriarcal ». « Somos nós contra petralhas corruptos ». O grupo é mantido unido por meio do direcionamento do ódio aos de fora. « Quem não pensa como eu, é corrupto; quem não pensa como eu, é misógino… » e o comportamento agressivo é transmitido aos outros membros por contágio e reforçado por comentários positivos e curtidas.
A rejeição às ideias diferentes, ou, em termos mais gerais, ao diferente, não é exclusividade ou novidade dos círculos sociais do Facebook, apenas é catalisada pelo modo de funcionamento dessa rede social. A identidade e a união de um grupo dependem muitas vezes de sua contraposição ao « outro ». A tática mais antiga e eficiente de um líder recuperar popularidade e unir seu povo é definir um inimigo externo comum. Exemplo notório relativamente recente foi a recuperação da popularidade de George W Bush depois do 11 de setembro, um salto de 51% a 90% em poucos dias. De modo similar, historicamente, a formação do Estado nacional português ocorreu em contraposição a Castela / Espanha, bem como a independência e a identidade brasileiras formaram-se por meio da rejeição à metrópole portuguesa. Poderíamos, ainda, na atualidade, citar os casos mais radicais e repudiáveis, como o racismo, a homofobia, a islamofobia, a misoginia, a misandria e o antissemitismo, bem como sua versão mirim, o “bullying” na escola. Em maior ou menor grau, com consequências das mais leves às mais graves, o principio é o mesmo: aumento da união do grupo e do senso de pertencimento ao mesmo por meio da rejeição ao diferente.
A xenofobia, “lato sensu”, é, portanto, característica comum aos grupos que, no contexto do Facebook, ganha ainda mais força pela ausência de real debate e pelo mecanismo de criação de dogmas e de grupos de “like-minded people” que lhe são característicos, assim como pelas ferramentas de incentivo, repressão e contágio que a rede proporciona.
Ao final, os grupos extremistas que se formam acabam por legitimar e impulsionar seus antípodas, fomentando espiral crescente de ódio e radicalismo. Os setores mais radicais dos dois lados do espectro político, com discursos intolerantes e sectários, tentam calar as vozes discordantes, ao buscar humilhá-las e associá-las ao outro extremo. Essa visão maniqueísta e cruzadista tem, não raro, o efeito indesejado de entregar os corações e mentes dos discordantes e humilhados de bandeja aos extremistas rivais. Quantos eleitores de Trump não foram seduzidos pelo seu discurso politicamente incorreto por estarem cansados das lições de moral e bons costumes da “esquerda” norte-americana?
A agressividade na rede
Na internet, servem para aguçar a agressividade o distanciamento próprio ao mundo virtual, a proliferação de perfis falsos, o ritmo veloz e instintivo das interações, a canalização da raiva e das frustrações pela rede e a limitada legislação que a regula. No Facebook, soma-se a esses elementos a lógica de grupos de “like-minded people”.
Acredito que todos nós já tenhamos presenciado, pelo menos uma vez na vida, cena na qual um cachorro preso na coleira late e se move incansavelmente, com o objetivo de intimidar outro cão ou um ser humano. Ao ser solto, não raro o mesmo cachorro tem postura muito menos agressiva, pois intui que um ataque da sua parte gerará um conflito real, com consequências provavelmente danosas para si.
Essa é a lógica geral das seções de comentários da internet, entre as quais as do Facebook.
Muitos usuários da rede, ao crerem que suas palavras não lhes podem trazer quaisquer consequências negativas, sejam de um processo jurídico, sejam de uma briga de rua, liberam seus instintos mais agressivos nos comentários, não pensando duas vezes antes de criticar e ofender quem quer que apareça à sua frente, sobretudo se discordar das “verdades” nas quais crê.
Ainda que a maior parte desses usuários, à semelhança de seus congêneres caninos, não partam para a violência física, criam ambiente deletério à normalidade democrática. Sua ação no Facebook, Twitter, Whatsapp e Youtube, na atual conjuntura de crise no Brasil, é capaz de impulsionar ideias tão estapafúrdias quanto a defesa da volta da ditadura, uma antropofagia tupiniquim da Revolução dos Bichos que deixaria Oswald de Andrade tão orgulhoso quanto constrangido.
À lógica simplista do “cão que ladra” (e nesse caso acaba por morder), somam-se outras forças de empuxo, entre as quais o imediatismo da rede. O mundo contemporâneo tem como uma de suas características a aceleração do tempo. Há 200 anos, por exemplo, o único meio de comunicação confiável à distância era a carta. Poderia levar meses o tempo entre escrever uma e receber sua resposta. Juntando-se a isso o fato de, à época, as opções de lazer serem infinitamente menores, não havia, exceto em casos específicos, por que apressar-se, escrevendo impulsivamente uma resposta. A entrega de uma carta de réplica nos correios minutos, horas ou mesmo dias depois do dia de recebimento da carta original não faria grande diferença. Desse modo, podia-se tomar todo o tempo necessário para refletir sobre o que escrever, corrigir palavras, apagar frases e parágrafos inteiros, e escrever algo que fosse resultado de toda uma reflexão sobre o tema.
Hoje, a lógica é a do imediatismo. Os diálogos e os debates ocorrem em tempo real. Em uma discussão pelo Facebook, cada minuto conta.[6] É como um duelo de “rappers”, no qual se deve retrucar rapidamente, sempre levando a disputa a um novo estágio. O silêncio é identificado como derrota, afinal, o debate é público, a humilhação de “perdê-lo” também, e “quem cala, consente”.
O ritmo veloz das discussões não deixa muito tempo para a reflexão, e nesse frenesi, muitas vezes se diz o que não se devia. Quem nunca se arrependeu de um comentário, de uma mensagem (ou de um e-mail, para quem não tem Facebook) escrito de cabeça quente? Infelizmente, dado o pouco tempo para reflexão e o reduzido espaço para o bom senso, trata-se antes de regra que de exceção. Quantas amizades reais não foram desfeitas por causa de discussões “virtuais”?
Soma-se a isso o fato de a rede ser verdadeiro escoadouro de frustrações. O Facebook, o Youtube e outra meia dúzia de sites concentram grande parte do lazer de milhões de pessoas, que, muitas vezes, não conseguem encontrar a felicidade em outras coisas na vida e se sentem ainda mais frustradas ao testemunhar, nas publicações dos “amigos”, o suposto “sucesso” generalizado de indivíduos próximos. Nesse contexto, a democrática seção de comentários permite a expressão irrefreada dessas pessoas infelizes, que muitas vezes a utilizam catarticamente para descontar em terceiros todo seu mal-estar.
Adicionalmente, o Facebook, bem como outras redes e “sites”, possibilita a criação de perfis falsos, o que aumenta a sensação de irresponsabilidade causada pelo ambiente virtual. Escondido atrás de um computador e de uma identidade falsa, não há qualquer limite para a agressividade. Qualquer covarde torna-se corajoso.
Essa “coragem” torna-se ainda maior quando o agressor encontra-se em grupo, sendo estimulado por contágio e sentindo-se protegido por estar em maior número. Qualquer “deslize” do “adversário” torna-se pretexto para um linchamento virtual. Se você duvida, basta ir defender o Vasco nos comentários de uma notícia direcionada à torcida do Flamengo para mudar de ideia.
Em grupo, os indivíduos se comportam diferentemente. Não somente estão mais sensíveis a estímulos de seus colegas de grupo, como se sentem mais poderosos, permitindo-se fazer coisas que normalmente não fariam. Em termos freudianos, é como se, em algumas situações, o superego, em vez de servir de contrapeso ao id, atuasse na mesma direção, alimentando os instintos mais primitivos do ser humano. É assim na vida real, e também é assim no Facebook. Um pai minimamente consciente sabe que quando seu filho se junta a um bando de crianças encapetadas boa coisa não sairá, ainda que ele seja o alter ego do anjo Gabriel. Do mesmo modo, é fácil deixar-se levar por um sentimento, como o ódio, ou por uma opinião, de qualquer viés ideológico, que sejam largamente expressados nos comentários de uma página seguida no Facebook. Um bom exemplo, para quem gosta de futebol e segue algumas publicações na rede de Zuckerberg, pode ser dado pelo ódio que se disseminou, após a Copa do Mundo de 2014, contra o jogador David Luiz, escolhido como encarnação individual do “7 a 1” . Sempre que o zagueiro é citado em alguma publicação, as críticas são agressivas e unânimes, expondo uniformidade de opinião e raiva no mínimo curiosas.
Em alguns casos, o ódio externado na rede, que já não tem nada de positivo, toma conotações mais sérias. É o que acontece, por exemplo, quando a corrente de raiva transmitida pelos comentários toma uma espiral homofóbica, misógina, xenofóbica ou racista.
Auxiliam muitas vezes, nesse sentido, os “trolls” e os “ciborgues”. Aproveitando-se de um sentimento de tensão latente que existe na rede, em especial na área dos comentários, esses usuários, em geral intencionalmente e, não raro, tendo sido pagos para tal, atuam como catalisadores da revolta e da agressividade do público. Basta um ou dois usuários, frequentemente com perfis falsos, para desencadear em uma notícia onda de ódio contra uma pessoa, grupo social ou partido politico. O papel psicológico desempenhado por esses perfis, que sequer precisam ser controlados por seres humanos, tendo em vista que há programas com essa função (alguns tipos de “bots”), é similar ao dos agitadores infiltrados em manifestações. Como se sabe, desde pelo menos os século XIX, são comuns os casos de infiltração, em protestos, de indivíduos que buscam deturpar o sentido original do movimento. Aproveitam-se da tensão no ambiente para executar uma ação mais drástica, que é mimetizada por outras pessoas mais exaltadas e que serve, ao fim, para justificar repressão policial draconiana e críticas da população não apenas ao movimento como às ideias por ele defendidas. No caso da internet, o mecanismo é ainda mais simples, pois o que se busca é apenas a primeira etapa do processo: o desencadear de um comportamento coletivo por contágio.
Evidentemente, a utilização desse tipo de tática, seja com fins políticos, econômicos ou puramente pessoais, é facilitada pela rarefação de normas que regem a internet. A dificuldade dos legisladores em acompanhar a rápida evolução tecnológica e comportamental decorrente do avanço da internet e das redes sociais gera um vazio jurídico. Estabelece-se, então, um faroeste onde quase tudo é permitido, desde recolher dados pessoais dos usuários sem seu expresso conhecimento para fins comerciais e políticos até manipular a opinião pública por novos meios.
Conclusão
Apesar do cenário aqui descrito, e de vários outros aspectos negativos do Facebook que evitei abordar, por serem mais claramente perceptíveis, como os estímulos ao egocentrismo, a perda da privacidade e a transformação da psique dos usuários em mercadorias, essa rede social não é de todo ruim. Se assim o fosse, ninguém faria parte dela.
O problema é que a grande maioria dos usuários tem, aparentemente, consciência apenas parcial dos prós e contras envolvidos em sua participação ativa no Facebook. Quando decidem fazer um teste divertido, e aparentemente inocente, para descobrir a que personagem de desenho animado correspondem, não lhes é informado que o objetivo real da brincadeira é saber ainda mais sobre suas preferências pessoais, informações que depois serão vendidas, como se fossem uma mercadoria como outra qualquer, a empresas ou políticos.
Atraídos pelo Facebook por causa dos benefícios tanto sociais quanto egocêntricos que a rede proporciona, os usuários pouco se dão conta de que o uso dessa rede social tem, entre outras consequências, modificado a maneira como pensam e se comportam. Há diversos fatores pelos quais as pessoas estão hoje mais intolerantes, e o uso frequente do Facebook é um deles, conforme foi explicado acima.[7] Do mesmo modo, caso a utilização dessa rede continue a ocorrer em larga escala nos moldes atuais, as pessoas serão cada vez mais guiadas pelo senso comum, seja de um grupo maior ou menor. Os espaços para quem pensa diferente e para real debate de ideias serão progressivamente reduzidos, o que tende a ameaçar a própria democracia.
Guiados pelos mecanismos de microrecompensas das redes sociais e isolados em grupos de pensamento semelhante que retroalimentam suas próprias crenças, os usuários são levados naturalmente à radicalização, constituindo um dos motores da polarização política observada atualmente.
Ilustrativo dessa tendência foi o experimento realizado pela Microsoft no começo de 2016, quando a empresa criou um “robô” com inteligência artificial, chamado Tay, para interagir nas redes sociais. Elaborado de modo a modificar seu comportamento para facilitar a comunicação com seus interlocutores virtuais, em 16 horas o “chatbot” teve de ser desligado, pois repetia à exaustão mensagens racistas, nazistas e xenofóbicas, além de buscar a atenção dos usuários com postagens de teor sexual.
Não por acaso, algumas das pessoas mais diretamente envolvidas no desenvolvimento das redes sociais evitam utilizá-la em demasia. Assim como Zuckerberg, que não tem pudor em negociar a privacidade das pessoas, protege a sua, cobrindo a câmera de seu notebook com fita isolante, o criador do botão de “like”, Justin Rosenstein, busca reduzir ao máximo seu uso do Facebook, tendo inclusive apagado o aplicativo de seu celular.
Vivemos em um mundo em constante evolução, e é difícil saber se o uso do Facebook se perpetuará em escala próxima da atual. Ultimamente, grande parte dos usuários parece estar migrando sua atenção para o Instagram, que também pertence a Mark Zuckerberg, mas tem mecanismos de interação distintos, concentrados no egocentrismo e no flerte, que já existiam no Facebook, mas eram partes de um todo mais complexo. O movimento de manada, que tanto caracterizou e beneficiou o Facebook, pode vir a decretar também seu fim. De um modo ou de outro, cabe prestar atenção não somente nos benefícios que as redes sociais trazem, como também em seus efeitos colaterais. Conforme afirmou, em outro contexto, Camilo Castelo Branco, os raciocínios do amor-próprio não gozam do crédito das melhores consequências.
*Carlos Dias é historiador e diplomata. As opiniões emitidas no texto são de inteira responsabilidade do autor, não coincidindo necessariamente com posições do Ministério das Relações Exteriores.