As cicatrizes da violência e o espaço simbólico da cura
A convite de Médicos Sem Fronteiras, a fotógrafa e documentarista, Fernanda Pineda, visitou comunidades em áreas remotas do departamento de Chocó, na Colômbia
Uma escola perfurada por balas. Uma quadra onde líderes comunitários foram mortos. Uma casa para onde um guarda indígena nunca mais voltará. E uma rua em que a população se uniu para impedir que um grupo armado levasse seus jovens. Essas são imagens captadas pela fotógrafa e documentarista Fernanda Pineda, que, a convite de Médicos Sem Fronteira (MSF), visitou comunidades em áreas remotas do departamento de Chocó, na Colômbia. O objetivo foi registrar a vida em meio ao confinamento imposto pelo conflito entre grupos armados e retratar as cicatrizes que a violência e a ausência do Estado deixaram nesse território do Pacífico colombiano.
Pineda navegou rio Baudó acima até as comunidades afrodescendentes de Chachajo e Mojaudó e o povoado indígena de Puesto Indio, em Alto Baudó, acompanhada por mulheres que atuam como pontes entre culturas e trabalham incansavelmente para harmonizar a linguagem, os costumes e os saberes locais com a assistência médica prestada pelas equipes. O resultado desse projeto é a coprodução fotográfica “Riografias do Baudó”, na qual mulheres portadoras de saberes tradicionais, “curanderas”, ervanárias e parteiras das comunidades identificaram locais marcados pelo conflito e os curaram simbolicamente por meio de suturas e métodos tradicionais.
As comunidades afrodescendentes e indígenas remotas da região do Alto Baudó têm sido vítimas constantes do conflito armado e da ausência do Estado. Enfrentam limitações no acesso a medicamentos, centros de saúde, água potável e educação, além da insegurança alimentar devido à presença de explosivos em áreas de cultivo, impactando na saúde física e mental da população.
Em 2023, Chocó foi o departamento com o maior número de confinamentos forçados, afetando 40.414 pessoas. Também foi a segunda região com mais deslocamentos em massa, registrando 19 dos 154 casos no país. Ainda, foi o quinto departamento mais afetado pelo conflito armado, com 37.832 vítimas de violações de direitos humanos. Alto Baudó foi o segundo município mais impactado, com 5.758 registros.
A ausência do Estado agrava a situação. Como a principal via de comunicação da região é o rio Baudó e seus afluentes, sem estradas, o custo do transporte se torna inacessível para comunidades que não possuem renda fixa, deixando-as desconectadas de serviços de saúde. Nessa sub-região da Colômbia, o acesso a serviços de saúde pode exigir uma viagem de barco de até 13 horas, isso se a pessoa possuir recursos para pagar o transporte.
De acordo com Altair Saavedra, coordenadora médica da MSF na Colômbia e no Panamá, a organização tem sido “testemunha do profundo impacto que a escalada do conflito armado tem tido sobre o bem-estar das comunidades locais”. “O Estado colombiano, com apoio de organizações nacionais e internacionais, deve reduzir essas desigualdades e garantir o acesso à saúde e a outros serviços para todas as comunidades. Não podemos normalizar que as comunidades afrodescendentes e indígenas de Chocó vivam em permanente vulnerabilidade”, conclui Saavedra.
Para mitigar essa realidade, a MSF implementou um programa de capacitação para agentes e promotores comunitários de saúde, visando melhorar o acesso a serviços de saúde nas comunidades mais remotas do Alto Baudó. Entre março de 2022 e julho de 2024, esses profissionais realizaram cerca de 10 mil consultas e organizaram 5.233 sessões educativas sobre saúde preventiva, beneficiando um total de 47.384 pessoas.
Riografias do Baudó
O início de uma viagem é sempre um salto para o desconhecido. Mas quando essa viagem é pelo rio Baudó, no Pacífico colombiano, a incerteza se transforma em medo. A Colômbia é um país onde a violência e o conflito são manchetes eternas. A esperança se dissipa entre processos de paz e acordos que se fazem e se desfazem, enquanto em lugares como Chocó, departamento no oeste do país, deslocamentos, confinamentos e massacres, agravados pelo abandono estatal, continuam sendo a norma.
O projeto fotográfico de Fernanda Pineda, que culminou na exposição Riografias do Baudó, começou com um workshop de fotografia ministrado por ela para a equipe de envolvimento intercultural da MSF, composta principalmente por mulheres indígenas e afrodescendentes. Durante esses encontros, o grupo destacou a importância de representar as comunidades para além da imagem de vítimas, o que levou à decisão de que a produção fotográfica também enfatizaria as práticas locais de saúde.
“Chachajo, Mojaudó e Puesto Indio são comunidades onde as mulheres desempenham um papel central por seu conhecimento das plantas. Mergulhamos nesse território através de entrevistas para identificar os espaços da comunidade que foram feridos pelo conflito armado e, por meio desse conhecimento, buscamos entrar em um espaço simbólico de cura”, descreve Pineda.
No total, sete mulheres das três comunidades identificaram locais onde as cicatrizes da guerra eram evidentes e os trataram com suturas, ervas e flores, elementos que costumam usar para aliviar a dor de seus vizinhos. O resultado é uma cocriação que combina dois tipos de registros: um simbólico, com fotografias de territórios “curados” pelas mulheres sábias da comunidade, e outro mais literal, onde líderes e sobreviventes descrevem como o medo e a vulnerabilidade ainda persistem devido à falta de uma resposta eficaz das instituições.
“Buscamos sensibilizar o público para que olhe para esses territórios e os reconheça não apenas pela dureza e pela dificuldade, mas também pela riqueza cultural ancestral e pelo conhecimento dessas mulheres, que querem ser vistas por algo além da dor e da injustiça”, reflete a fotógrafa.
“Atendi ao convite de Médicos Sem Fronteiras, junto com a especialista em enfoques diferenciais Silvia Parra, para contar a história de três comunidades do Alto Baudó a partir de três conceitos: saúde, território e conflito armado. Sabíamos que realizar um projeto fotográfico ali seria um desafio, e não apenas por causa da violência. Sem eletricidade e sem internet, fomos forçadas a voltar ao tangível, a pensar no poder da fotografia impressa”, ressalta Pineda.
Assim se lançaram, para falar através de metáforas como forma de proteção. Riografias do Baudó se delineou como um diálogo direto com as “curanderas” desses rios. Elas mesmas curaram, com métodos tradicionais, por meio das fotografias impressas dos lugares feridos de suas comunidades.
Primeira parada: Chachajo
Chachajo é o nome de uma árvore de madeira fina e de um povoado que vive da agricultura, cria porcos e galinhas; um povoado de casas de madeira construídas por famílias que, apesar de terem sido forçadas a partir, sempre voltam, porque não há lugar no mundo que lhes pertença mais. Há uma ferida profunda nesse povoado, uma ferida que tentam curar com cantos e ervas.
“Curar com ervas é uma tradição que os mais velhos ensinavam aos jovens, e depois os jovens, quando formavam suas famílias, ensinavam aos filhos o que sabiam”, nos disse María Concepción, a “curandera” mais velha da comunidade.
Segunda parada: Mojaudó
O que resta depois que as balas atravessam uma sala de aula? Os raios de luz se infiltram pelos buracos que os disparos deixaram no teto e desenham linhas no quadro. Os livros e o calendário pendem das paredes, feridos pelas balas. As pequenas cadeiras azuis continuam no mesmo lugar de antes, como se a sala tivesse se tornado um museu do horror, uma ferida que continua sangrando.
“Faltavam uns cinco minutos para as duas da manhã quando começou a rajada de tiros. As balas zuniam pelo teto, pela cozinha, ouvíamos aquela chuva de chumbo. A essa hora da madrugada, para onde correr? Nos jogamos no chão, mas como se proteger num piso de madeira?”, nos contou uma parteira.
Mojaudó está doente de medo. “Às vezes, quando um coco ou outra fruta cai no telhado, pensamos que tudo vai começar de novo”, relatou outra mulher.
Terceira parada: Puesto Indio
O rio muda de cor e se transforma em espelho. O rio é calma e é fúria. Ele te leva, mas decide quando você pode navegá-lo. Quem comanda o rio? Quem lhe diz o que pode ou não pode fazer?
O povo do rio o respeita, porque depende dele para sobreviver nesta selva. Sua água é indispensável, embora já não seja clara; sua correnteza carrega o que o consumo e o descarte deixaram para trás. Lá encontramos uma “curandera” do espírito.
“Fui ajudante do meu marido, que era jaibaná (curandeiro espiritual). Quando fomos deslocados, meu marido já não estava e meus filhos precisavam de remédios. Foi assim que comecei minhas práticas e me tornei a primeira mulher jaibaná dessas comunidades. O território está doente. A violência que há por aqui nos persegue e nos adoece”, contou ela.
Sete mulheres subiram naquela embarcação, encarregadas de construir este projeto junto à equipe de apoio logístico dos MSF. Retornaram com sete fotografias, reconstruídas por elas. Partimos com o compromisso de expandir suas vozes além dos rios, levar sua sabedoria. Esperamos que este projeto, como um bumerangue, lhes traga assistência, reconhecimento e memória. Nós partimos, mas elas continuam ali, resistindo, curando comunidades feridas e esquecidas.
Fotografias de Chachajo

A tradição de curar com plantas faz parte do aprendizado das crianças em Chachajo. Devido ao conflito armado e às poucas oportunidades de estudo e trabalho, muitos pais abandonam a região e ficam aos cuidados dos avós. Chachajo, Alto Baudó, Chocó.

A comunidade de Chachajo, Alto Baudó, Chocó, sofreu múltiplos deslocamentos em massa para Quibdó (capital do departamento) devido a incursões de grupos armados.

Alguns homens, como Victoriano Córdoba (74 anos), também mantêm vivas as práticas de cura através de plantas, massagens e orações; conhecimento transmitido de geração em geração. Chachajo, Alto Baudó, Chocó.

A “curandera” tradicional Carmen Fidela Mena, da comunidade de Chachajo, Alto Baudó, Chocó. Nas Riverografias de Baudó, sete mulheres curaram simbolicamente as feridas de seu território. Cada uma rasgou uma imagem do local que queria curar e depois aplicou ervas e suturas para curá-lo.

“Há muitos anos, um médico de Médicos Sem Fronteiras me ensinou a suturar. Às vezes não há instrumentos e tivemos que fazê-lo com fio dental. Chachajo está doente de medo. Tenho certeza disso, porque eu mesma vivo com essa doença”, testemunho de Carmen Fidela Mena.
Fotografias de Mojaudó

Em novembro de 2023, enquanto mais de 14 mil pessoas estavam confinadas em Alto Baudó, o confronto entre dois grupos armados na escola de Mojaudó causou o deslocamento forçado de toda a comunidade. Comunidade afrodescendente de Mojaudó, Alto Baudó, Chocó.

A escola da comunidade afrodescendente de Mojaudó ainda está intacta, mas com buracos de bala nas paredes, no teto, no quadro branco e no material didático; após um confronto entre dois grupos armados. As crianças não voltaram para a escola.

Em 2023, a violência no departamento de Chocó, no oeste da Colômbia, forçou mais de 40 mil habitantes ao confinamento forçado, limitando o seu acesso aos serviços básicos. Comunidade afrodescendente de Mojaudó, Alto Baudó, Chocó.
“Curandera” tradicional Margarita Rojas Mena, da comunidade de Mojaudó, Alto Baudó, Chocó.
“Eu curo o olho, o mal da nação (de nascimento). Tenho minhas ervas no telhado e uso para tudo”, diz Margarita Rojas Mena. Mojaudó, Alto Baudó, Chocó.
Fotografias de Puesto Indio
Casa do Jaibaná (curador do espírito Embera) na comunidade de Puesto Indio. Ele é uma das principais referências para a saúde tradicional quando a comunidade não tem outra forma de acesso aos postos formais de saúde.
Nancy Arce (19 anos) segura o filho nos braços. Seu companheiro, que fazia parte da Guarda Indígena (grupo de proteção civil) de Puesto Indio, foi assassinado meses antes do nascimento da criança.
Jaibaná (curador do espírito) Dilia, da comunidade de Puesto Indio, Alto Baudó, Chocó.
María Leticia, em Puesto Indio, optou por trabalhar uma fotografia sua. Ela não apenas se curou, mas também colocou uma coleira protetora em volta do pescoço. Os corpos das mulheres também são território ferido. “Mais de 34 crianças nasceram em minhas mãos. Minha mãe me ensinou que eu era a grande professora”.
Parteira tradicional Carmen María Leticia, da comunidade de Puesto Indio, Alto Baudó, Chocó.
A exposição Riografías del Baudó já foi exibida na Colômbia e ficará em cartaz em Buenos Aires, Argentina, do dia 26 de fevereiro ao dia 9 de março na Galería Arte x Arte. O endereço é Lavalleja, 1062.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.