As cidades do amanhã são cidades justas
Com Cidades do Amanhã, pretendemos contribuir para esse valioso ecossistema do pensamento urbano brasileiro através da contribuição de ativistas e pesquisadores de outros países. Reivindicar justiça social é uma tarefa coletiva global, assim como não pode haver fronteiras na busca pelo direito à cidade
Qualquer celebração nestes tempos de pandemia nos parece estranha. O próprio carnaval, uma das maiores festas populares do mundo, não cabia em 2021. As efemérides – datas que celebram temas ou marcam acontecimentos relevantes – parecem frívolas, desconectadas da realidade. Mesmo assim, nunca foi tão importante lembrar que, no dia 20 de fevereiro, foi celebrado o Dia Mundial da Justiça Social, uma das principais bases de nossa sociedade. Por vezes taxada como um ideal utópico “esquerdista”, trata-se de uma pactuação social registrada e garantida por declarações, agendas e compromissos internacionais. Construída por meio de debates filosóficos, religiosos e políticos ao longo de séculos, a justiça social somente será alcançada através da transformação do modo como decidimos e produzimos nossas cidades.
Fundamento do ordenamento jurídico brasileiro, a justiça social foi expressamente incluída pela Constituição Federal como orientador das ordens econômica e social (arts. 170 e 193). Norteia por isso o próprio Capítulo de Política Urbana (arts. 182 e 183), o qual se situa justamente dentro da Ordem Econômica, decorrendo então uma conexão direta entre a justiça social e o objetivo de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”, estabelecido para a política de desenvolvimento urbano.
Parece óbvio que não há justiça social sem cidades justas, tampouco cidades justas sem justiça social; mas não é. Defensores da ideia de cidades competitivas, por exemplo, dirão que se trata de um caminho para alcançar justiça social. Não é. Não existe justiça na competição social. Nela, ganham aqueles – sejam classes, grupos ou cidades – que historicamente concentraram maior poder político e econômico. A ideia propagada de que a criatividade, a tecnologia e outras inovações podem reequilibrar essa relação para fornecer condições competitivas àqueles em desvantagem é simplesmente um outro meio de manutenção das desigualdades. Quem desenvolve e comercializa tecnologias? Quem possui meios de atrair e manter pesquisadores de ponta? Quem possui robusta capacidade institucional para mudança?
Para que as cidades sejam justas, precisam enfrentar todas as formas de desigualdades existentes entre elas e dentro delas mesmas, redistribuindo poder, riquezas, bens e serviços. Trata-se de promover a justiça nas dimensões econômica, política, social e simbólica de nossas cidades.

Uma economia urbana justa não é utopia, é lei
Como determina a Constituição para a Ordem Econômica (art. 170), isso implica na regulação da produção econômica das cidades brasileiras. Todos nós contribuímos cotidianamente para a produção do espaço urbano, seja construindo nossas moradias, seja em nossos deslocamentos para o trabalho, seja em nossos momentos de lazer em espaços públicos. A apropriação dos benefícios dessa construção coletiva chamada cidade, no entanto, se dá de maneira individual e extremamente desigual. Alcançar a justiça social demanda a solução dessa contradição, promovendo a “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”, como desde 2001 prevê o art. 2º do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257).
São cidades justas aquelas que capturam a valorização sofrida por imóveis privados em decorrência de investimentos públicos em regiões ricas do seu território e as investem em regiões com infraestrutura precária, redistribuindo benefícios do processo de urbanização. Há instrumentos para isso há mais de 20 anos, oferecidos pelo Estatuto da Cidade. Se aprendemos em duas décadas que o Estatuto sozinho (ou mesmo reforçado localmente por bons Planos Diretores) não transformaria a realidade urbana do país, a lei oferece possibilidades à gestão municipal que se pretenda justa. É imprescindível resgatar a diretriz da inversão de prioridades, eixo central do chamado modo petista de governar nas gestões municipais da década de 1980 e 1990, e atualizá-lo.
Organizações da sociedade civil, como a Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo, têm reforçado a importância da redistribuição orçamentária no território de acordo com suas necessidades específicas, enfrentando efetivamente as desigualdades urbanas de São Paulo. Propuseram até mesmo a adoção de um índice através do qual “cada subprefeitura da cidade de São Paulo recebe investimentos e novos serviços públicos de acordo com as suas necessidades, invertendo as prioridades e direcionando mais recursos para os territórios mais vulneráveis”, desenvolvido com base em estudos e dados da capital.
Para serem justas, as cidades devem também orientar o uso de todos os espaços públicos e privados da forma que seja melhor para o conjunto da sociedade. Não cabe ao proprietário definir como utilizará seu imóvel de maneira individual e desconectada do bem comum. Essa definição individualista e orientada ao proveito exclusivamente privado causou, como aponta campanha do Fórum Nacional de Reforma Urbana, a existência de mais de 6 milhões de imóveis vazios no Brasil – sem qualquer destinação e simplesmente aguardando sua valorização -, enquanto há mais de 6 milhões de famílias em situação de rua, ocupando áreas impróprias para moradia, vivendo em cortiços ou arcando com aluguéis excessivamente altos, tendo sua capacidade de sobrevivência comprometida e seu direito à moradia adequada negado.
A justiça social está além das condições materiais
Na pandemia que atinge o mundo, as desigualdades estruturantes de nossas cidades têm sido determinantes para que o impacto da crise sanitária seja muito maior sobre a população negra, pobre, moradora de periferias e favelas, apontam estudos desenvolvidos pelo Instituto Pólis e pelo núcleo de pesquisa Afro do Cebrap. Se tivéssemos feito o dever de casa como há décadas determinam a Constituição e o Estatuto da Cidade, os efeitos da pandemia seriam menos perversos do que testemunhamos hoje. Cidades justas possuem uma capacidade de enfrentamento a eventos extremos – seja uma pandemia, seja um evento climático de grande magnitude – consideravelmente maior. Para tanto, não basta a redistribuição de bens e serviços, é preciso ir além.
É necessária a redistribuição de poder político entre grupos que foram sistematicamente excluídos do processo de decisão das cidades (mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas, jovens), seja através da ocupação de cargos eletivos, seja através da reivindicação direta enquanto cidadãos. As eleições municipais de 2020 foram marcadas pelo debate acerca da reserva de verbas partidárias para candidaturas negras, reivindicação de organizações e movimentos como Educafro e Coalizão Negra por Direitos perante o TSE.
Embora tenha sido registrado o maior número de candidaturas negras da história e tenha crescido significativamente o número de parlamentares trans eleitas – como Erika Hilton, Duda Salabert, Carolina Iara e Linda Brasil -, os resultados gerais da eleição nos municípios alterou pouco a concentração de poder político institucional. Homens, brancos, cis, com idade acima de 40 anos, ainda são a maioria em todos os cargos, conforme levantamento realizado pela organização não governamental Inesc.
Se a crise do sistema político brasileiro não se resume à baixa representatividade dos grupos apontados, certamente se trata de um dos seus principais problemas, especialmente para avançar na adoção de políticas urbanas antirracistas, feministas e inclusivas. A superação desse cenário apenas será possível mediante a consolidação de novos pactos sociais baseados em outras visões de futuro, sendo fundamental a redistribuição do poder simbólico emanado das e nas cidades.

Isso perpassa pela exclusão de figuras eminentemente violentas e violadoras desses mesmos grupos, discussão que no último ano vem ampliando os horizontes da dimensão antirracista da luta pelo direito à cidade, fomentada por iniciativas como o Projeto de Lei 404/2020 em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Apresentado pela deputada estadual Erica Malunguinho, o PL “dispõe sobre a proibição de homenagens a escravocratas e eventos históricos ligados ao exercício da prática escravista, no âmbito da Administração Estadual”. Embora esteja correndo o risco de não ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em função de parecer contrário do deputado Gilmaci Santos (Republicanos), alegando inconstitucionalidades que inexistem; o PL aponta uma estratégia clara e concreta em prol de cidades justas com sua memória e responsáveis com seu futuro. Em função da repartição de competências entre entes federativos, a efetividade dessa estratégia depende de sua disseminação em todo território nacional, sendo essencial outras iniciativas como o PL 2806/2020 proposto pela deputada estadual Renata Souza à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e o PL 5296/2020 apresentado ao Congresso pelos deputados federais Talíria Petrone, Áurea Carolina e Orlando Silva.
Não basta, no entanto, retirar ou mesmo ressignificar a presença desses monumentos para a emergência de novos futuros, devemos ampliar a presença destes grupos – mulheres, negros, LGBTQIA+, indígenas, dentre outros – nos espaços públicos, tendo em vista que sua representação ainda é marginal em monumentos e na historiografia dos centros urbanos brasileiros. Segundo estudo do Instituto Pólis, dos 367 monumentos mapeados em São Paulo, apenas 5 representam pessoas negras – 4 destes retratando homens e apenas 1 retratando uma mulher negra. Como alerta Henrique Cunha Jr. em seu livro “Espaço público, urbanismo e bairros negros”, “o risco da perda total da justiça social e da sustentabilidade humana está edificado, justificado e estetizado nas cidades”. Sem uma reconstituição estética e simbólica, não há futuro.
As cidades do amanhã são cidades justas
Estes são apenas alguns dos muitos desafios existentes hoje para promover justiça social através das cidades. Se realmente queremos que exista um futuro sustentável e equilibrado para a humanidade, não podemos mais adiar a reivindicação de uma práxis urbana justa. Somente nos aproximaremos das Cidades do Amanhã – utópicas, desejadas, perpetuamente em produção – através da consolidação de novos laços de solidariedade dentro e entre nossas cidades.
O espaço que inauguramos no Le Monde Diplomatique Brasil com este texto tem como proposta justamente dialogar com as cidades do agora para a construção das Cidades do Amanhã. Da mesma forma que o livro de Peter Hall que inspira o título deste especial, diferentes realidades urbanas do mundo estarão quinzenalmente em diálogo através de textos sobre as suas mais diversas dimensões: urbanismo feminista, políticas antirracistas, justiça climática e ambiental, cultura e arte urbanas, dentre outros temas relevantes.
Ao contrário do livro homenageado, ainda com grande ênfase no planejamento e urbanismo da tradição anglo-saxã, serão frequentes as contribuições e abordagens do urbanismo “de baixo”. O sul global tem muito a aprender, mas ainda mais para ensinar. No caso brasileiro, já contamos com diversos espaços de compartilhamento e reflexão sobre temas urbanos, como o blog A cidade é nossa da Raquel Rolnik, o ObservaSP do LabCidade, a Questões Urbanas do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, o blog do Br Cidades na Carta Capital, o cidades para que(m)? do João Sette Whitaker, a coluna sobre mobilidade de Kelly Fernandes no Uol, As cidades e as coisas de Bianca Tavolari na Quatro Cinco Um.
Com Cidades do Amanhã, pretendemos contribuir para esse valioso ecossistema do pensamento urbano brasileiro através da contribuição de ativistas e pesquisadores de outros países. Reivindicar justiça social é uma tarefa coletiva global, assim como não pode haver fronteiras na busca pelo direito à cidade. Todas – e sempre mais – vozes são essenciais para a construção das Cidades do Amanhã.
Rodrigo Faria G. Iacovini (@rodofaria) é doutor em planejamento urbano e regional pela Fau/Usp, coordenador da Escola da Cidadania do Instituto Pólis e assessor da Global Platform for the Right to the City. Foi coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e assessor da Relatoria Especial da Onu para o Direito à Moradia Adequada.
Leia a edição de dezembro de 2020: “Projetos de cidade em disputa”