‘As conchas não falam’, de Taylane Cruz: a criança diante do trauma
Ao longo de 27 contos, obra explora temas como solidão, abuso, homofobia, amor, relações familiares e perdão
Não é novidade para ninguém que o tamanho de um texto literário pouco tem a ver com a sua profundidade. Na literatura brasileira contemporânea, são muitos os autores e as autoras que conseguem abordar temas relevantes e sensíveis em poucas páginas, sem jamais diminuí-los ou simplificá-los. Alguns exemplos incluem Marcelino Freire, Conceição Evaristo, João Anzanello Carrascoza, Jarid Arraes e Monique Malcher.
Quem também acaba de apresentar uma obra com contos curtos marcados por delicadeza e originalidade é a sergipana Taylane Cruz, autora de As conchas não falam, lançado pela HarperCollins. Ao longo de 27 contos, a escritora explora temas como solidão, abuso, homofobia, amor, relações familiares e perdão, por meio de uma linguagem poética e uma estrutura narrativa que prende a atenção a cada palavra.
Muitos dos contos apresentam o ponto de vista de uma criança diante de acontecimentos traumáticos, como violências físicas e psicológicas, abandono e a percepção de que um familiar idealizado não é, no fim das contas, uma pessoa tão boa assim.
Todos esses conflitos acontecem perante a inocência dos narradores e são capazes de transformar essas crianças para sempre. As histórias caminham em meio ao imprevisível, trazem subtextos importantíssimos e constroem relações verossímeis, desde as que se baseiam no amor até aquelas que provocam asco.
Aliás, provocar sentimentos e sensações é algo que o livro faz muito bem desde as primeiras páginas. Seus protagonistas imploram aconchego, pedem socorro, caem em armadilhas, tomam decisões descabidas e se revelam profundamente humanos. Ao mesmo tempo, outros personagens oferecem perigo a vítimas em potencial, enquanto mães e avós se esforçam para construir uma rede de proteção – nem sempre efetiva, mas invariavelmente feita de amor e cuidado.
Taylane Cruz ainda subverte as expectativas de leitores e leitoras de forma sutil e assertiva. Em contos como “V e G”, por exemplo, elabora uma atmosfera que parece conduzir a um desfecho triste, no entanto, traz um final confortante, daqueles que aquecem o coração e arrancam sorrisos. Já em narrativas como “O beijo”, faz justamente o contrário: inicia o conto com leveza, mas o encerra com violência e desconforto.
O conto que dá título ao livro é um dos mais impactantes de toda a coletânea. Narra a história de Miúda, uma criança que é apaixonada por conchas e que acaba enganada por um adulto cruel e para lá de mal-intencionado.
Em meio a histórias que contrastam o que há de melhor e o que há de pior na humanidade, Taylane Cruz apresenta uma obra concisa, delicada, autêntica e necessária, não apenas pelos temas abordados, mas, sobretudo, pela qualidade literária dos contos aqui reunidos.
As conchas não falam é um livro provocativo, de leitura rápida, mas que ecoa por muito tempo após o fim da leitura, especialmente porque convida cada um de nós a revisitar a própria infância – e dessa vez, sem idealizações.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.