As crianças mimadas do supermercado
A figura do consumidor livre em uma sociedade de mercado impõe-se com tal força que esquecemos as batalhas que foram necessárias para seu nascimento. Antes dos liberais incorporarem e colocarem no centro do jogo esse ator informado e calculista, a noção de sociedade de consumo servia de suporte, nos anos 1960, a uma contestação da ordem econômica
A ideia de que vivemos em uma sociedade de consumo é evidente. Basta percorrer as artérias de nossas grandes cidades para nos extasiarmos ou nos exasperarmos diante da abundância de bens expostos e das mensagens que eles promovem. Dessa constatação, que já tem mais de meio século, surge uma dupla afirmação. De acordo com a primeira, os comportamentos da imensa maioria da população estariam profundamente transformados: tornamo-nos “consumidores” em tempo integral, insaciáveis, fascinados. Segundo a outra, nossa sociedade teria se tornado “unidimensional”, já que só oferece uma única perspectiva, a do consumo.
É bem fácil opor a esse díptico uma negação: nem todo mundo está satisfeito e as desigualdades gritantes de renda se refletem nas grandes disparidades de consumo no que diz respeito à habitação, aos eletrodomésticos ou aos lazeres. Mas esse argumento não abala a força das crenças: a sociedade de consumo e sua figura específica, o consumidor, são noções suficientemente elásticas e vagas para se perpetuarem sob formas e contextos diferentes. Para resistir à sua evidência, é preciso tratar essas palavras não como espelhos neutros e impessoais de seu tempo, mas como meios fundamentalmente políticos de tratar a ordem social e de tomar uma posição em relação a ela.
O termo “sociedade de consumo” aparece nos anos 1960 como um instrumento de crítica social. Confinada na primeira metade do século XX na França às cooperativas de compradores, às associações domésticas ou às comissões do Plano do Pós-Guerra destinadas a ajustar a oferta e a demanda, a questão das relações entre fornecedores e clientes individuais vai tomar uma inflexão radical. Uma nebulosa de intelectuais, entre os quais Henri Lefebvre, André Gorz e alguns outros, assumiu o controle do assunto em meados dos anos 1950 e o reformulou em uma problemática contestadora. Frequentemente ligados pela experiência da Resistência, do militantismo no Partido Comunista, depois de uma ruptura com este, essas personalidades têm também em comum competências filosóficas não ou pouco reconhecidas pela instituição universitária, assim como uma posição de franco-atiradores em relação aos partidos de esquerda. Apoiando-se em pensadores norte-americanos ou na teoria crítica alemã, seus trabalhos contribuem para a fortuna dos temas da alienação, da despolitização das massas, da “nova classe operária”. Para responder aos desafios de uma sociedade em plena mutação, na qual o proletariado à moda antiga declinaria e tenderia, segundo eles, a se acomodar com a ordem estabelecida, uma revolução intelectual se imporia. O marxismo libertado de seus dogmas, que eles pretendem encarnar, prefigura a “nova esquerda” da década seguinte, aberta ao “movimento social” e à “sociedade civil”.
A reconversão de alguns desses intelectuais das ciências sociais então em pleno crescimento favoreceu a constituição de um gênero híbrido às fronteiras da filosofia, da literatura e da sociologia: “a hermenêutica1 do cotidiano”, na qual se destacam Roland Barthes (Mythologies), Jean Baudrillard (Le Système des objets [O sistema dos objetos] e La Société de consommation [A sociedade de consumo]), Guy Debord (La Société du spectacle [A sociedade do espetáculo]), Henry Lefebvre (La vie quotidienne dans le monde moderne [A vida cotidiana no mundo moderno]) e Edgar Morin (L’Esprit du temps [O espírito do tempo]). Esses autores propõem exercícios de livre interpretação que consistem em decifrar significações ocultas em diferentes áreas da existência ordinária, tais como a publicidade, a mídia de massa e, ainda mais, o “carro”, carregado de um poder de sedução quase irresistível (virilidade, ostentação…). Lefebvre consagra a ele, por exemplo, diversas páginas exaltadas: “O Automóvel é o Objeto-Rei, a Coisa-Piloto”; “com seus feridos e seus mortos, é um resto de aventura no cotidiano”; “ele é símbolo de status social, de prestígio”. O caso do carro ilustraria uma lição universal: “O ‘espetáculo do mundo’ se torna consumo de espetáculo e espetáculo do consumo”.2
“Um suave terror”
A sociedade de consumo (de bens) é considerada uma sociedade de espetáculo (de signos), entregue à sedução das fantasias mais do que à pressão das necessidades. Ela comporta dois pilares: um indivíduo “alienado” indefinido, cercado pelas imagens eufóricas da publicidade e pelas mensagens mais ou menos criptografadas sobre os bens propostos no mercado, e um “sistema” que o força a consumir sempre mais. “A civilização neocapitalista”, escreve André Gorz, “colocou de pé um aparelho repressivo gigantesco […]. Um terror suave convoca cada indivíduo a consumir.”3 Pequenos burgueses e operários se encontraram tomados por uma vertigem de consumo que os fez perder a cabeça e que se chama alienação. Essa visão se choca principalmente com o ceticismo dos sociólogos de campo.4 Autores de uma pesquisa de referência, L’Ouvrier de l’abondance [O operário da abundância],5 John H. Goldthorpe, David Lockwood, Frank Bechhofer e Jennifer Platt convidam a manter o senso de medida, ressaltando que uma “máquina de lavar é apenas uma máquina de lavar”, mais do que um reservatório de “signos” para proletários enlouquecidos pela busca por status.
Durante os anos 1960, a crítica livresca da sociedade de consumo não realiza junções com os militantes consumidores, inclusive fracos e pouco numerosos. Maio de 68 favorece a cristalização desses temas que ampliam então sua audiência para bem mais do que os círculos intelectuais. No meio dos anos 1970, diversas associações de consumidores transformam a crítica da sociedade de consumo em palavra de ordem militante. Para a União Federal dos Consumidores (UFC) – Que choisir [O que escolher], associação criada em 1951, não se trata mais de guiar os consumidores em suas escolhas graças a testes comparativos, mas de informá-los sobre as estratégias das empresas, a composição dos produtos, os mecanismos de distribuição e também de incitá-los a um questionamento dos estilos de vida. A partir de então vendida nas bancas de jornais, a revista Que Choisir vê sua tiragem passar de 35 mil exemplares em 1971 para mais de 300 mil em 1974, à medida que surgem “manchetes” sobre praias poluídas, mercúrio nas conchas, talco tóxico etc., e que se afirma uma linha militante. Em fevereiro de 1972, um artigo defende a coletivização do eletrodoméstico (“Quem se opõe à coletivização de certo número de bens, à organização dos serviços?). O dossiê de julho de 1975 apresenta “7 razões para ser ‘publifóbico’”, uma das quais afirmando que a publicidade “corrompe os meios de comunicação de massa” e “se passa por uma verdadeira informação”. “Em toda parte onde reina a injustiça, o isolamento, o risco, a ‘má informação’, existe matéria para intervenção para o consumidor”, explica o editorial de novembro de 1977.
A partir do momento em que a crítica da sociedade de consumo aparece como um meio de contestar a ordem social, os defensores desta última investem o mesmo terreno. O executivo Jean Saint-Geours intitula de Viva a sociedade de consumo! um “livro de contracontestação” publicado em 1971. O filósofo Raymond Ruyer e o economista Jean-Jacques Rosa tomam, cada um à sua maneira, a defesa da livre escolha do consumidor e celebram as virtudes do mercado. Eles denunciam com insistência a arrogância dos pensadores: por que graça intelectual lúcida escapariam eles das ilusões dos outros? Em nome do que eles pretendem distinguir as necessidades “verdadeiras” das “falsas”? O pensamento conservador, explorando as falhas dos adversários, torna-se facilmente o advogado do bom senso e das pessoas comuns e coloca em destaque a noção de soberania dos agentes: com as preferências individuais constituindo dados primitivos que se refletem nas compras, seu questionamento só pode expressar um pensamento “totalitário” ou um “dirigismo” arcaico.
Enfim, o mundo político se interessa por esses debates cujo eco se encontra amplificado pela imprensa consumerista por uma série de escândalos relacionando as águas minerais poluídas (1973), o amianto no vinho (1976), os pneus Kleber-Colombes que explodem (1979), o bezerro com hormônios (1980) etc. Parte da esquerda encontra aí uma incitação para estender a contestação para fora da fábrica, rumo à “vida cotidiana”. Essa linha de crítica generalizada que prevalece de 1968 até a “virada do rigor” do governo socialista em 1983 trata das questões de equipamentos coletivos, acordos coletivos entre associações de consumidores e empresas, exames de produtos dentro dos comitês de empresa… A argumentação, inscrita em uma visão global e politizada da sociedade, opõe um indivíduo alienado, condenado a agir e a pensar como o “sistema” decidiu por ele, a um indivíduo revoltado, capaz de perceber e agir contra as causas e os efeitos recorrentes da alienação, não apenas em matéria de produção e distribuição, mas também de salários e de redistribuição de renda.
À direita, a presidência de Valéry Giscard d’Estaing se revelou decisiva. Em 1976, ele criou a Secretaria de Estado para o Consumo. Tratava-se de combinar a resposta a uma contestação social e cultural às exigências do “liberalismo avançado”, que, para se ajustar às necessidades de uma economia fundada na concorrência, deveria pôr fim a anos de economia “administrada”, herança da Libertação, combatendo as “rendas” e os “corporativismos”. Com força adversa, o consumidor se tornaria, por meio das associações, um parceiro econômico útil para denunciar os abusos, mas com uma condição essencial: que não mexesse no funcionamento das empresas e limitasse sua ação à arbitragem entre os bens propostos no mercado. “No contexto de uma economia liberal fundada na livre escolha dos consumidores e na liberdade de empreender dos produtores”, explica em maio de 1976 Christiane Scrivener, a primeira titular da Secretaria de Estado para o Consumo, “uma política do consumo não pode ter como objeto impor uma estrutura diferente do consumo nem ocupar o lugar dos produtores para conceber os produtos.”
Do rebelde ao expert
Ao longo da construção europeia, a ideia de uma “ordem pública econômica” garantindo um bem-estar coletivo fundado na concorrência apareceu, por uma Disposição de 1967, no direito francês – cujo velho enquadramento civilista e contratual ela iria fissurar progressivamente em proveito de imperativos do mercado.6 A argumentação opunha dessa vez um indivíduo vigilante, que dispunha de ao menos uma boa vontade informativa, e um indivíduo ignorante, condenado a uma condição de vítima, fosse por falta de cultura, fosse por vulnerabilidade para seduções fáceis. O comerciante de antigamente, presumidamente motivado apenas pelo lucro, foi substituído, graças ao direito do consumidor consagrado pelo Parlamento em 1993, por um “profissional”, detentor de uma competência da qual ele deve fazer um uso ativo e leal. Garantindo pela informação as condições do consentimento livre e esclarecido do consumidor promovido à dignidade de indivíduo soberano (prazos de reflexão e de retratação para o comprador, obrigações de consultoria e de informação por parte do vendedor), a sociedade de mercado parece ainda mais legítima.
Contestador ou agente econômico racional? O conflito político sobre o consumidor teve por efeito paradoxal de se impor como um dado objetivo da sociedade de consumo. Tudo se passa como se os adversários reconhecessem, para além de seu desacordo, a existência de uma nova ordem social fundada sobre a proteção concorrencial e a troca maciça de mercadorias, umas para deplorar, outras para felicitar. A noção propõe uma vista sintética de nossas sociedades centradas em um atributo julgado essencial, o do consumo, que presumidamente diz respeito a todo mundo: ele substitui o sujeito político que delibera coletivamente as orientações econômicas e sociais por um sujeito econômico que otimiza suas compras. Instrumento de despolitização, ele anuncia um mundo onde os “antigos” abismos, como as oposições sociais, dariam lugar a uma nova questão: como as sociedades modernas deverão resolver “nossos” problemas de “crianças mimadas”.
*Louis Pinto é sociólogo. Autor de L’invention du consommateur. Sur la légitimité du marché [A invenção do consumidor. Sobre a legitimidade do mercado], Presses Universitaires de France, Paris, 2018.