As dores daquelas que lutam pela terra
No livro Mulheres assentadas: mães de todas as lutas, jornalista apresenta histórias de quem sofre e resiste para semear novas possibilidades de vida
Às margens da rodovia Comandante João Ribeiro de Barros, que liga as cidades de Bauru e Jaú, no interior do estado de São Paulo, está o assentamento Horto de Aimorés. Quem dirige sobre o asfalto bem cuidado facilmente ignora a realidade que se sustenta por trás da barreira de eucaliptos vista no trajeto. No livro-reportagem Mulheres assentadas: mães de todas as lutas, publicando pela editora Feminas, a jornalista e escritora Tamiris Volcean convida o leitor a adentrar esse espaço, feito de terra vermelha, sol e suor.
Além do Horto de Aimorés, a autora realizou sua pesquisa em mais dois assentamentos: Zumbi dos Palmares, no município de Iaras (SP), e Boa Esperança, em João Ramalho (SP). A imersão nessas terras permitiu a colheita dos relatos e observações para a semeadura de uma narrativa sensível e incômoda.
Assuntos comuns ao cotidiano das mulheres são apresentados no livro com uma camada a mais de brutalidade. Violência doméstica, abandono e jornadas duplas ou triplas machucam ainda mais quando não há água ou alimento para refrescar a pele e acalentar o estômago.
Numa das passagens, Tamiris apresenta o relato de Cleonice, moradora do Horto de Aimorés. O cotidiano de cuidado com os filhos, a fome e o trabalho intenso com a terra levaram-na a descobrir tardiamente mais uma gestação. Quando sentiu as dores do parto, estava sozinha. Chegou ao Hospital Estadual de Bauru graças a uma carona conseguida na beira da rodovia. Sem ser consultada pela equipe médica, foi submetida a uma cirurgia cesariana. A violência obstétrica seria o início de uma série de agressões. Ao informar ser moradora do assentamento, a mulher passou a ser negligenciada pelos profissionais.
“Saiu do hospital com a criança no colo e a mesma roupa do dia anterior, os pontos da cesárea latejando em seu ventre e o olhar perdido de quem questiona por que sua maternidade recebe menos cuidado do que todas ao seu redor”.
Em outro trecho, a jornalista nos permite acessar a lembrança traumática de Cleusinha, moradora do assentamento Boa Esperança, dos tempos em que ela vivia sob a lona de um acampamento e esteve entre as vítimas de uma ação policial. A mulher “se lembra de ter visto uma mãe aos prantos em frente à lona murcha porque o berço conseguido a tanto custo para o seu bebê estava escangalhado”. As ações violentas de retirada dos acampados das terras improdutivas não respeitam histórias individuais. São incapaz de enxergar as mãos de mulheres que transformam terra vermelha em vida. Enfrentando essa brutalidade, Tamiris usa a literatura para afirmar: essas mulheres existem, resistem e lutam.
Com as histórias escolhidas para essa obra, a autora espalha sementes para a colheita de novas narrativas sobre sujeitos que somam à violência do patriarcado as dores de quem insiste em buscar seu espaço para plantar e ver brotar a justiça social.
Carolina Bataier é jornalista e escritora, autora do livro de crônicas O pôr do sol dos astronautas (Editora Letramento). Tem interesse por temas relacionados a direitos humanos e cultura popular e publicou trabalhos em diversas mídias de relevância nacional.