As falácias do Dr. Pastore
Dentre as proposições falaciosas na análise do economista Affonso Celso Pastore, ressalta-se a explicação para a baixa taxa de juros nos Estados Unidos. Esta seria produto da estrutura etária da população e do ciclo de vida: em curtas palavras, uma sociedade envelhecida poupa mais, o que pressionaria a taxa de juros para baixo. Afora o fato de ter ignorado inteiramente a teoria keynesiana de determinação da taxa de juros, fundada na preferência pela liquidez dos detentores de riqueza e na oferta de moeda da autoridade monetária, e voltar para velha e imprestável teoria dos fundos emprestáveis, recuando um século na teoria econômica, a tese ignora os fatos de maneira radical. Confira no novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
Num recente debate sobre a política monetária brasileira promovido pelo Tribunal de Contas da União, o economista Affonso Celso Pastore, além de várias afirmações discutíveis, compartilhadas pela ortodoxia, saiu-se com a seguinte falácia: seria um absurdo fazer um Quantative Easing (QE) no Brasil com o objetivo de controlar, mesmo que temporariamente, as taxas longas de juros. Nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, o fato das taxas de juros serem muito baixas faria com que a distorção introduzida pelo QE não fosse relevante. Seria apenas mais um recurso para administração da liquidez. Sem dúvida, uma afirmação heroica diante da magnitude da emissão monetária feita pelo Federal Reserve (Fed), para comprar títulos públicos e privados com o objetivo de controlar a taxa de juros longa. Assim, a magnitude, extensão e duração do programa, não deixam dúvidas sobre o seu significado. Em 2008, imediatamente antes da falência do Lehman Brothers, os ativos do Fed, montavam US$ 900 bilhões. As várias etapas do programa levaram o valor dos seus ativos para cerca de US$ 4,1 trilhões dos quais 3,8 trilhões em títulos, ao final de 2019, antes da pandemia. Ou seja, a ampliação foi de cerca de 5%, para 25% do PIB.
Dentre as proposições falaciosas na análise do economista, ressalta-se a explicação para a baixa taxa de juros nos Estados Unidos. Esta seria produto da estrutura etária da população e do ciclo de vida: em curtas palavras, uma sociedade envelhecida poupa mais, o que pressionaria a taxa de juros para baixo. Afora o fato de ter ignorado inteiramente a teoria keynesiana de determinação da taxa de juros, fundada na preferência pela liquidez dos detentores de riqueza e na oferta de moeda da autoridade monetária, e voltar para velha e imprestável teoria dos fundos emprestáveis, recuando um século na teoria econômica, a tese ignora os fatos de maneira radical. A evidência inegável é que diante da crise financeira e do brusco deslocamento da preferência por liquidez, inclusive com um sell-off de títulos nos mercados secundários, não fora as compras do Fed, as taxas de juros longas teriam explodido. Argumentar que esta foi apenas uma intervenção de liquidez significa ignorar que o programa já dura mais de uma década.
Outrossim, os dados sobre a poupança pessoal, medida como percentagem da renda disponível nos Estados Unidos, considerando uma longa série história desde o ano de 1960, mostram de forma inequívoca que esta aumenta até meados dos anos 1970 quando atinge o pico de 13%. Certamente, como resultado da melhoria da distribuição de renda e da proteção social. Ou seja, salários crescentes, fundos de pensão corporativos, seguro saúde etc. Desde os primórdios da financeirização e da globalização, a taxa de poupança cai sistematicamente, atingindo valores ínfimos no imediato pré-crise financeira, algo em torno de 3%. Essa história também é conhecida: piora na distribuição de renda com salários estagnados e mercantilização da proteção social, em particular da previdência. Note-se que a taxa de poupança pessoal só volta a subir, e mesmo assim para níveis de cerca de metade do período de Bretton Woods, após a crise financeira. Uma explicação adicional de caráter cíclico para esse comportamento é a que vincula a poupança (fluxo anual) à poupança financeira (estoque) das famílias. Na fase de boom a valorização dos ativos induz ao gasto de uma parcela maior da renda, ocorrendo o oposto no burst.
Voltando ao nosso tema central, a primeira e mais óbvia conclusão é a de que os dados estão em flagrante oposição com a tese de Pastore. A poupança pessoal ou das famílias não subiu, caiu. Mas, mesmo antes de concluir o óbvio caberia ainda imaginar que o economista cometeu uma imprecisão e quis se referir à poupança como um todo: a poupança familiar diminui, mas em contrapartida a poupança corporativa, isto é, lucros retidos, teria aumentado. De novo, os dados não deixam dúvida e estão em acordo com a nova governança das empresas de maximização do valor acionário, na qual o objetivo é distribuir o máximo de dividendos, ou utilizar os lucros para recomprar ações (buybacks). Os dados da poupança privada, incluindo famílias e corporações, mostram o mesmo comportamento da poupança pessoal nos Estados Unidos, um declínio tendencial, com o mesmo perfil cíclico, ou seja, uma recuperação pós crise, mas insuficiente para a volta ao patamar pós financeirização.
De acordo com a tese de Pastore, ou alguma variante dela, flexibilizada para incluir poupança das empresas, seria de esperar que consoante à redução da poupança privada, a taxa de juros nos Estados Unidos tivesse se elevado consistentemente. Surpresa!!!?? Ela cai sistematicamente ao longo dos últimos quarenta anos, coincidindo, portanto, com a queda da taxa de poupança. Como se pode ver pelo gráfico abaixo após a subida a partir de meados dos anos 1960 e que dura até o início dos anos 1980, em parte devido a inflação, as taxas de juros longas nos Estados Unidos caem sistematicamente. Mas, quais as razões para essa queda, que de acordo com a teoria ortodoxa esposada por Pastore constituiria verdadeiro enigma? E a “poupança, externa”, não teria relevância? Afinal, os velhos do mundo todo poderiam estar investindo nos Estados Unidos! Como veremos a seguir há alguma verdade, mas não toda, nem a mais importante, na tese de que o resto do mundo financia os déficits correntes dos Estados Unidos. Mas aqui, já estamos muito distantes da tese do Dr. Pastore
A partir da constatação de que as taxas de juros longas nos Estados Unidos se reduzem continuadamente desde o início da globalização, cabe propor que o papel desse país como potência dominante e do dólar como moeda-reserva internacional têm um papel nisso tudo. Moeda-reserva e mercados financeiros amplos e resilientes constituem um fator de atração de capitais do resto do mundo. E não se trata aqui, como propuseram Bernanke, Krugmann e outros, apenas de financiamento de recorrentes déficits em transações correntes. Esse movimento de absorção de capitais do resto do mundo por meio de fluxos de líquidos tem a sua importância como mostra o gráfico a seguir. Os Estados Unidos são deficitários, na conta corrente, desde meados dos anos 1970. E esse déficit é crescente, atingindo a marca inusitada de 6% do PIB no período imediatamente pré-crise financeira, o que tem sido um fator relevante de aumento do seu Passivo Externo Líquido. Apesar do ajuste realizado no após crise, esse país ainda permanece deficitário. E cabe notar que a redução do déficit para a faixa dos 3% do PIB se deve não só à queda do ritmo de crescimento do PIB e do déficit comercial, mas também à queda dos juros promovida pelo Quantitative Easing. Em outras palavras, o país utiliza-se recorrentemente de financiamento externo e converteu-se num grande devedor líquido do resto do mundo, mas usa o seu poder hegemônico para emitir moeda e deprimir as taxas de juros das suas dívidas.
Como já advertido por economistas importantes, dentre os quais aqueles do Bank of International Settlements (BIS) liderados por Claudio Borio, seu economista-chefe, a determinação da taxa de juros vai muito além da relação poupança-investimento, seja no plano doméstico ou internacional. Nesse último, o aspecto relevante é a absorção de capitais por meio dos fluxos brutos (financing), que corresponde ao movimento de diversificação de portfólios dos rentistas mundo afora e está completamente descolado do financiamento das transações correntes. Porém, há muito mais que isso: a elasticidade do sistema de crédito norte-americano permite que a especulação – compra de títulos nos mercados secundários – alavancada no crédito promova as bolhas de preços de ativos e quedas de juros, recorrentes. Tudo garantido pelo Fed e pelo privilégio exorbitante do país detentor da moeda-chave. Quando a bolha estoura o Fed socorre o sistema, evitando a quebradeira e a subida dos juros, emitindo moeda e comprando dívida podre. E a pergunta que não quer calar: onde entra a poupança nesse jogo?
Voltando ao caso do Brasil, a discussão na citada reunião girou em torno da possibilidade aberta pela “PEC da guerra” para o Banco Central adquirir títulos públicos e privados no mercado secundário durante a pandemia e evitar eventuais overshooting nas taxas de juros. A negativa dessa possibilidade foi quase unânime entre os participantes e a tese que ancorou essa posição foi a da taxa de juros mais baixas nos países centrais, fundada na elevada taxa de poupança. Ora, se como demonstrado acima há pouca aderência dessa tese com a realidade, quais fatores de fato impediriam o Brasil de realizar um quantitative easing?
Certamente, o Brasil não possui o mesmo raio de manobra dos países desenvolvidos e muito menos dos Estados Unidos, o emissor da moeda reserva. Este, durante a pandemia, dobrou a parada. A ampliação do QE levou a um crescimento dos ativos totais do Fed de US$ 4,1 trilhões para US$ 8,7 trilhões, dos quais US$ 8,3 trilhões são títulos, predominantemente públicos. Vale dizer, uma ampliação da compra desses ativos em US$ 4,5 trilhões ampliando seu valor para cerca de 42% do PIB. Não foi outra a postura dos bancos centrais dos países desenvolvidos, o que reduziu as taxas de juros de forma generalizada. Nesse contexto, o BC do Brasil poderia ter aproveitado a oportunidade para realizar o seu QE, mesmo menos intenso e mais temporário, evitando o repique das taxas longas. Mas não fez nada. Preferiu arranjar uma explicação ad hoc para o aumento das taxas de juros: os riscos fiscais, que por sua vez se atenuaram, como bem reconhece o BC nos seus relatórios e apresentações de dirigentes.
Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.