No dia 26 de março de 1871, 229.167 eleitores parisienses foram às urnas para escolher o conselho comunal de “Paris, cidade livre”. Uma maioria revolucionária ganhou. Socialistas, blanquistas, republicanos radicais ou moderados compunham essa nova assembleia onde os trabalhadores manuais eram mais numerosos, ao lado de funcionários públicos, patrões artesãos, jornalistas e profissionais liberais, em sua grande maioria homens jovens. Privadas do direito ao voto, as mulheres estavam ausentes. Não havia cidadãs para legislar “A Social”. No entanto, elas eram ativas e engajadas – e, como diz Jules Vallès, “Grande sinal! Quando as mulheres se envolvem, quando a dona de casa incentiva seu homem, quando ela arranca a bandeira preta que cobre a marmita para plantá-la entre duas pedras no chão, é que o sol vai se levantar sobre uma cidade em revolta”.1
Uns dez dias antes, na noite de 17 para 18 de março de 1871, Adolphe Thiers, chefe do Executivo da República francesa, ordenou a retirada dos canhões da Guarda Nacional dos parques de artilharia dos Buttes-Chaumont, de Batignolles, de Montmartre… prudência governamental. Mas esses canhões tinham sido pagos pelos parisienses. A Guarda recusou. Às 5h30, a tropa se espalhou pelas ruas de Paris. As ordens militares se sucederam. “10h20. Muita efervescência no XIIe [arrondissement]. Os guardas nacionais bloquearam a Rue de la Roquette com duas barricadas; outros descem para a Bastilha. 10h30. Péssimas notícias de Montmartre. A tropa não quis agir. Os Buttes, as peças e os prisioneiros foram recuperados pelos insurgidos, que parecem não retroceder”.2 O toque de alarme agitou os bairros populares, de Belleville a d’Enfer. Em Montmartre, as mulheres e as crianças se opuseram vivamente aos oficiais do 88º de linha. Donas de casa tomaram as rédeas dos cavalos, cortaram os arreios, gritaram “Não atirem no povo!”, “Viva a linha!”.
O 88º fraternizou com a multidão. Louise Michel se precipitou, com a carabina debaixo do casaco: “Subíamos a passo apertado, sabendo que no topo havia um exército enfileirado em posição de batalha. Pensávamos em morrer pela liberdade. Éramos como que levantados da terra. Nós, mortos, Paris se levantou. As multidões, a certas horas, são a vanguarda do oceano humano. A colina estava coberta por uma luz branca, uma aurora esplêndida de libertação. […] Não era a morte que nos esperava nas colinas […], mas a surpresa de uma vitória popular”.3 Os generais Lecomte e Thomas, prisioneiros dos soldados insurgidos, são fuzilados na Rue des Rosiers. Para Louise Michel, a revolução tinha acontecido. Lecomte, impedido no momento em que, pela terceira vez, comandava o fogo, foi conduzido para a Rue des Rosiers, onde se uniu a ele Clément Thomas, reconhecido quando, vestido como civil, estudava as barricadas de Montmartre. Seguindo as leis da guerra, eles deviam perecer. […] Na noite de 18 de março, os oficiais que tinham sido feitos prisioneiros com Lecomte e Clément Thomas foram postos em liberdade”.4
Gaston Da Costa, então ao lado dos insurgidos, tentará em suas memórias separar o joio do trigo: “Até o momento em que a tropa perdeu a mão, eram as mulheres que dominavam. Na Rue des Rosiers, na hora do assassinato, elas tinham desaparecido, em sua maioria”. Mas ele não recua, ele, o homem da Comuna, diante da evocação de imagens frequentes para os adversários da Comuna: “No entanto, às esposas, às mães, sucedeu, nessa multidão muito misturada, que escoltou até as colinas os prisioneiros do Château-Rouge, a horrível falange das moças submissas e insubmissas […], saídas dos hotéis, dos cafés e dos prostíbulos […]. De braços dados com os homens da linha, acompanhadas pela legião dos apoiadores, elas surgiram como a triste espuma da prostituição sobre a onda revolucionária, e lá estavam se embebedando em todos os balcões, berrando sua alegria porca por essa derrota. […] Acrescente-se a isso algumas pobretonas desmoralizadas pelos ataques nocivos da miséria, que, na esquina da Rue Houdon, despedaçavam a carne, ainda quente, do cavalo de um oficial morto alguns instantes antes. Todas se espalhariam em Montmartre, passeando sua bebedeira, sua loucura cheia de ódio, e fariam uma abominável escolta do infeliz Lecomte e seus oficiais, quando eles subiram o Calvário dos Buttes”.5
Dez dias depois, em 28 de março, na Place de l’Hôtel-de-Ville, a Comuna foi proclamada “em nome do povo”. A festa foi grandiosa. O canhão soou para saudar o acontecimento, o toque de alarme estava mudo. Victorine Brocher escreveu: “Dessa vez nós tínhamos a Comuna! […] Depois de tantas derrotas, de misérias e de luto, houve um relaxamento, todos estavam felizes. […] Na frente dos batalhões em repouso, as mulheres da cantina do regimento com fantasias diferentes se acotovelavam às metralhadoras. […] Um membro da Comuna proclamou os nomes dos eleitos do povo, um grito surgiu unânime: viva a Comuna!”.6
As mulheres não tinham cadeiras na assembleia comunal. Elas se articulavam, organizavam seus comitês (de bairro e de vigilância), redigiam textos e manifestos, trabalhavam em ambulâncias e cantinas no seio dos batalhões de federados para a defesa dos fortes de Issy e de Vanves, e logo nas barricadas da semana sangrenta.
Em 12 de abril, no Jornal Oficial – da Comuna – foi publicado o chamado de um “‘Grupo de cidadãs’: Paris está bloqueada, Paris é bombardeada. […] É o estrangeiro que volta para invadir a França? Não, esses inimigos, esses assassinos do povo e da liberdade são franceses! Eles viram o povo se levantar gritando: ‘Nada de deveres sem direitos, nada de direitos sem deveres! Nós queremos trabalho, mas também o produto do trabalho… Chega de exploradores, chega de senhores! O trabalho e o bem-estar para todos, o governo do povo por ele mesmo, a Comuna, viver livre e trabalhando ou morrer lutando’”.
No dia 12 de abril, ainda no Jornal Oficial, a União das Mulheres pela Defesa de Paris e os Cuidados aos Feridos ressalta: “É dever e direito de todos lutar pela grande causa do povo, pela revolução. […] A Comuna representa o grande princípio proclamando a eliminação de todos os privilégios, de todas as desigualdades – por isso mesmo, ela se engaja a levar em consideração as justas reclamações de toda a população, sem distinção de sexo –, distinção criada e mantida pela necessidade de antagonismo sobre a qual repousam os privilégios das classes governantes”.
Ainda em 12 de abril, mas dessa vez em O Grito do Povo: “Que a Comuna abra então imediatamente às mulheres três registros sob estes títulos: Ação armada, Postos de socorro aos feridos, Fornos ambulantes. Elas se inscreveram aos montes, felizes de usar a santa febre que queima os corações”.
Nos clubes, abertos nas igrejas e, por vezes, exclusivamente femininos, a palavra estava liberada. Qualquer coisa era assunto para falas e debates: a defesa da revolução, a educação das meninas, a paridade dos salários, as leis sociais, a união livre, a covardia dos homens, o fim da exploração do trabalho. Em 3 de maio, na abertura do Clube da Revolução Social, na igreja de Saint-Michel Comble, em Batignolles, “sentia-se que, ao partirem para lutar pela Comuna, os maridos tinham deixado no lar um germe sólido das ideias revolucionárias”. A reunião terminou com o Canto da Partida e a Marselhesa, e como ordem do dia do próximo encontro: “A mulher pela Igreja e pela revolução”.7
Paul de Fontoulieu, com uma pluma mordaz molhada na água benta de Versalhes, descreve baseado no que ele ouviu falar: “Clube Éloi – Entre as oradoras, perdão pela palavra, […] a cidadã Valentin, moça pública que em 22 de maio queimou o cérebro de seu cafetão porque ele não queria ir para as barricadas. E a cidadã Morel, que tinha cinco condenações na ficha: ‘Peço, para concluir, que se joguem no Rio Sena todas as freiras, nos hospitais elas dão veneno para os federados’. Igreja Saint-Lambert em Vaugirard, Clube das Mulheres Patriotas – A reunião de Vaugirard foi presidida por uma austríaca, de sobrenome Reidenhreth, […] uma espécie de sabichona revolucionária que tinha sido condenada em Viena por delitos de ultraje aos costumes, fato do qual ela se vangloriava, inclusive, como se fosse um título de glória. […] A Trindade, Clube da Libertação – […] Apenas mulheres. A ordem do dia dizia: ‘Medidas a tomar para regenerar a sociedade’. Uma mulher de cerca de 30 anos: ‘A praga social, que é preciso antes de mais nada curar, é a dos patrões que exploram os operários e enriquecem graças ao seu suor. Chega dos patrões que consideram o operário uma máquina de produzir! Que os trabalhadores se associem entre si, que coloquem seu trabalho em comum e serão felizes. Outro vício da sociedade atual são os ricos, que só bebem e se divertem sem nenhuma dificuldade. É preciso extirpá-los, assim como aos padres e às religiosas. Nós só seremos felizes quando não tivermos mais nem patrões, nem ricos, nem padres’. Clube Saint-Sulpice – […] Uma tal de Gabrielle, filha de uma mulher submissa: ‘Os padres devem ser fuzilados; são eles que nos impedem de viver como queremos. As mulheres estão erradas em se confessar, eu bem sei. Peço então a todas as mulheres que peguem todos os padres e queimem a cara deles. Quando eles deixarem de existir, nós seremos felizes’. […] Louise Michel, a mais exaltada, a mais violenta de todas: ‘O grande dia chegou’, gritava ela no encontro do dia 17, ‘o dia decisivo para a libertação ou a servidão do proletariado. Mas coragem, cidadãos, energia, cidadãs, e Paris será nossa, sim, eu juro, Paris será nossa, ou Paris não existirá mais. Para o povo, isso é uma questão de vida ou de morte’”.8
Em 21 de maio de 1871, com a entrada de Versalhes em Paris, começou a Semana Sangrenta, “essas noites trágicas que sete vezes soaram”, segundo Victorine Brocher. “Sábado, 27. Uma fuzilada das mais intensas nos assaltou, um pânico se espalhou, a multidão chegou gritando: ‘Parte de Belleville foi tomada, a prefeitura está abandonada, há mortos e feridos no meio das ruas, estão atirando em nós por todos os lados; os federados e os voluntários lutam como leões. Nossa bandeira na frente, nos agrupamos para o combate supremo; havia destroços em todos os batalhões. […] Dia 28, à meia-noite, o último tiro de canhão federado partiu do alto da Rua de Paris; o canhão entupido com carga dupla exalou o último suspiro da Comuna expirante. O sonho acabado, a caça ao homem começou! Prisões! Massacres!”9
E Louise Michel conclui: “Eu parto com a indiferença do 61º cemitério de Montmartre, tomamos nossas posições. […] A noite caiu, éramos um punhado, bem decididos. Algumas bombas caíam a intervalos regulares; pareciam as badaladas de um relógio, o relógio da morte. Nessa noite clara, toda embalsamada pelo perfume das flores, as estátuas de mármore pareciam viver. […] Bandeira vermelha na frente, as mulheres passaram; elas tinham sua barricada na Place Blanche, ali estavam Élisabeth Dmitrieff, madame Le Mel, Malvina Poulain, Blanche Lefebvre, Excoffon. André Léo [pseudônimo da jornalista Victoire Léodine Béra] estava na de Batignolles. Mais de 10 mil mulheres nos dias de maio, esparsas ou juntas, combateram pela liberdade. […] As lendas mais loucas correram sobre elas, acusadas de causar incêndios – as mulheres lutaram como leoas, mas só vi a mim gritando fogo! O fogo diante desses monstros! Não as lutadoras, mas as infelizes mães de família, que nos bairros invadidos acreditavam estar protegidas por qualquer utensílio que demonstrasse que estavam indo buscar comida para seus filhos (uma lata de leite, por exemplo), eram olhadas como incendiárias, carregadoras de petróleo e empurradas contra as paredes! […] Versalhes estendeu sobre Paris um enorme lençol vermelho de sangue; apenas um pedaço não tinha ainda sido dobrado sobre o cadáver. As metralhadoras não paravam nas casernas. Mata-se como na caça; é um matadouro humano: aqueles que, quando morrem, permanecem de pé ou correm contra as paredes, são abatidos por diversão. […] Atraídas pela carnificina e seguindo o exército regular, vimos, quando a Comuna morreu, aparecer, um pouco antes das moscas de sepultura, as vampiras, elas também vindas de um passado longínquo, talvez simplesmente loucas, com raiva e embebedadas de sangue. Vestidas com elegância, passeavam pela carnificina, passando em revista os mortos, que elas fuçavam com a ponta da sombrinha e os olhos sangrentos. Algumas, confundidas com as incendiárias, foram fuziladas aos montes com os outros”.10
Eloi Valat é pintor e desenhista. Última obra publicada: Louises, les femmes de la Commune [Louises, as mulheres da Comuna], prefácio de Sarah Al-Matary, Bleu autour, Saint-Pourçain-sur-Sioule, 2019.
1 Jules Vallès, “L’Insurgé” [O insurgido]. In: Œuvres [Obras], Gallimard, Paris, 1990.
2 Ordens dos generais Vinoy e Valentin ao chefe do poder executivo. In: Marc-André Fabre, Vie et mort de la Commune [Vida e morte da Comuna], Librairie Hachette, Paris, 1939.
3 Louise Michel, La Commune [A Comuna], Stock, Paris, 1898.
4 Idem.
5 Gaston Da Costa, La Commune vécue [A Comuna vivida], Ancienne Maison Quantin, Paris,1909.
6 Victorine B. (Brocher), Souvenirs d’une morte vivante [Lembranças de uma morta-viva], Librairie Lapie, Lausanne, 1909.
7 Journal officiel de la République française [Jornal oficial da República francesa], Partie non officielle, 5 maio 1871.
8 Paul de Fontoulieu, Les églises de Paris sous la Commune [As igrejas de Paris sob a Comuna], E. Dentu, Paris, 1873.
9 Victorine B. (Brocher), op. cit.
10 Louise Michel, op. cit.