As origens da extrema-direita
Dois meses após o atentado de Düsseldorf, a Alemanha resolveu, finalmente, punir com rigor os extremistas de direita: condenando os autores de agressões, proibindo manifestações nazistas e ameaçando intervir em organizações como o NPD e os RepublicanosChristian Semler
Este foi um verão de inquietude, que, muitas vezes, degenerou em pânico. O atentado a bomba, no início de agosto deste ano, em Düsseldorf, contra imigrantes russos, alguns deles judeus, desencadeou uma reação política em cadeia.
Embora não tenha sido reivindicado por ninguém, numerosos indícios permitem atribuir a autoria a grupos de extrema direita. Ao medo de que a utilização de explosivos anunciasse uma nova etapa da violência dos grupos neonazistas — a passagem ao terrorismo armado — misturava-se, nas elites, o medo de que o atentado prejudicasse a “imagem da Alemanha” , no Ocidente.
Imediatamente, os holofotes se voltaram para um drama que se desenrolara um mês antes: o assassinato de um africano em Dessau, nesta nova Land de Saxe-Anhalt onde a União Popular Alemã (DVU) havia obtido, nas últimas eleições regionais, um sucesso espetacular. Presos próximo ao local do crime, os assassinos pertenciam aos meios ultra-nacionalistas da cidade. Em seguida, a atenção dos responsáveis políticos e da mídia se concentrou novamente sobre a ex-República Democrática Alemã (RDA). Já antes, no início dos anos 90, a ação crescente da extrema direita fora objeto de todos os comentários, depois do incêndio criminoso do centro de refugiados de Rostock-Lichtenhagen.
Desde então, a violência política se manifestou tanto no Oeste quanto no Leste. E, nos últimos anos, tendo diminuído sensivelmente o número de mortos, o assunto acabou por desinteressar a opinião pública. A situação chegou a tal ponto que jornalistas riam do “alarmismo” de seus colegas que continuavam a cobrir o fenômeno de maneira permanente, e não de forma conjuntural. Evocar com insistência algo tão hediondo não corresponde mais à imagem que as elites políticas gostam de dar de si mesmas, nem à consciência de si de uma sociedade civil esclarecida.
Começando pelo fim
Depois de Dessau e Düsseldorf, tudo mudou. Até mesmo um chamado à “ação” — uma melhor presença policial, uma justiça mais ágil, leis mais severas — mobilizou dirigentes verdes e sociais-cristãos da Bavária, que até então não tinham tido nenhum problema com seu Estado forte. No coro dos especialistas postos em alerta e dos “conselheiros”, um grupo se fazia notar por sua ausência quase total: o dos escritores e artistas de esquerda. Ocuparem-se de temas da política simbólica, como a batalha pelo Memorial Berlinense do Holocausto, tinha sem dúvida esgotado suas forças. [1] Ou então, observando as raras tomadas de posição, como a do escritor Peter Schneider, engajado pelos direitos dos imigrantes, colocando em destaque o pano de fundo econômico e psicológico dos atos de violência extremista, parecer-lhes-ia muito banal, muito dogmaticamente de esquerda?
Duas questões, no entanto, colocavam-se à opinião pública, inclusive àqueles que não têm nada de especialistas em politologia. A primeira: em que o extremismo de direita alemão é específico e se distingue da onda dos populismos de direita, cuja bandeira reúne, em toda a parte na Europa, os perdedores da “modernização”? A segunda: o que diferencia o extremismo de direita do leste e do oeste alemão? Qualquer pessoa que observe as declarações dos dirigentes dos partidos, não importando a sua cor política, depois de Dessau e Dusseldorf não pode deixar de se surpreender por sua incrível unanimidade em abstrair as atividades de direita de seu contexto social. O sociólogo Wilhelm Heitmeyer, um dos maiores conhecedores do assunto, escrevia recentemente: “Se começamos pelo fim de um processo, evidentemente não estamos mais procurando compreender em que estágio as convicções misantrópicas e a violência tomam corpo”. [2]
Reforçando a segregação
Se há um dirigente político que não “começa pelo fim”, é o presidente do Parlamento, o social-democrata Wolfgang Thierse, cujo conhecimento dos meios de extrema direita do leste se funda em anos de observação pessoal. Ele defende, como certos pesquisadores em ciências sociais, a tese segundo a qual o radicalismo de direita nasceu “no centro”. Esta afirmação comporta duas dimensões. Politicamente, significa que, no tempo do chanceler Helmut Kohl, mas também no de seu sucessor, os representantes do “centro” — através de palavras de ordem como “O barco está cheio” ou “os que pedem asilo abusam do direito de asilo” — foram os primeiros a criar o clima de hostilidade para com os estrangeiros, doravante propício aos extremistas. A campanha, realizada no começo dos anos 90, para preparar a restrição ao direito de asilo teve — estudos empíricos o confirmam — efeitos negativos sobre a aceitação pela opinião pública da integração dos imigrantes. Da mesma forma, o nacionalismo völkisch [3] explora a hegemonia persistente do jus sanguinis (direito do sangue) no direito alemão. Pois este último impede a solução, por meio de um cidadania a meio termo, de anacrônicos conflitos de reconhecimento.
Daí o surgimento, nas grandes cidades do Oeste com forte presença de estrangeiros, como Frankfurt, de um novo perigo: no seio de novas subclasses, as lutas pelo reconhecimento e a partilha das migalhas ocorrem sobre uma base cada vez mais étnica, reforçando desta forma a segregação racial. A esperança de muitos “multiculturalistas” — que a multiplicação de contatos entre autóctones e imigrantes reforça a compreensão mútua — poderia, se a concorrência ajudasse, se transformar em seu contrário: o reforço dos estereótipos. Este terreno é trabalhado pela extrema direita.
A supervalorização da germanidade
No decorrer dos anos 80 e 90, os partidos de extrema direita — o DVU e os Republicanos (Reps) — aproveitaram-se plenamente destes desgovernos do “centro”. Mas, se os Reps, grupo típico do “chauvinismo do bem estar” alemão, se revelaram incapazes de dominar a situação na ex- RDA, o DVU conseguiu entrar no Parlamento das duas novas Länder, sem, aliás, aí desenvolver a menor ação significativa. O cenário mudou radicalmente com a reorientação nacional-socialista do antigo Partido nacional-democrata (NPD), que conseguiu se adaptar ao clima nacional, anti-democrata e anti-ocidental da Alemanha oriental e garante de agora em diante um teto aos grupos abertamente neonazistas, chegando até à integração dos seus líderes na sua própria direção.
No oeste do país, como também em outras partes da Europa, a xenofobia era e ainda está amplamente disseminada; entretanto, apenas uma minoria, significativa mas isolada, descambou para idéias claramente racistas, como a supervalorização étnica da germanidade e a exaltação de um comunhão de sangue. Mais que nunca um abismo separa as opiniões racistas e a aprovação, a fortiori o apoio às ações violentas contra os estrangeiros.
Um depósito de ódio
Nada de comparável na ex-RDA. Ela conhece um racismo de massa, apesar da proporção de estrangeiros ser bem menor que no Oeste: [4] “Quanto menor o número de estrangeiros, maior o ódio” . A segunda diferença se refere à cultura política. De acordo com observações empíricas, nos novos Länder, o nacionalismo völkisch tem raízes muito mais profundas: ele expressa a sensibilidade majoritária das regiões rurais, mas também de numerosas pequenas cidades. É claro que as pessoas não aceitam o conjunto da ideologia da extrema direita, mas fragmentos dela, dos quais elas não percebem subjetivamente o caráter fascista, se é que não o negam diretamente. Desta forma muitos adultos apoiam, desculpam ou aceitam em silêncio as agressões cometidas pelos jovens de extrema direita contra os estrangeiros, os “tiques”( nome dado aos militantes de esquerda), os homossexuais ou os sem tetos. Mas eles contestam a ideologia subentendida nestas ações. “Nosso jovens não são, apesar de tudo, nazistas”, afirmam. Aplicada à sociedade do leste alemão, a idéia segundo a qual “o extremismo de direita nasce do centro” assume desta forma um segundo aspecto, o social.
Bernd Wagner, especialista particularmente arguto em matéria de radicalismo de direita na ex- RDA, invoca uma cultura já solidamente estabelecida na juventude. Esta reagrupa um conjunto heterogêneo, núcleos organizados de neonazistas às gangues de jovens delinqüentes, passando pelos nazis-skins e os círculos apolíticos mas influenciados pelo racismo. O extraordinário depósito de ódio no qual eles se alimentam é evidentemente mais forte que a diferença entre, de um lado o jovem nazista, robusto e disciplinado, de outro o skin banhado numa sub-cultura, totalmente estranho ao fantasma da tomada do poder.
Um cenário pavoroso
Habilmente, os grupúsculos explicitamente neonazistas se adaptam a estas realidades. Eles operam em grupos autônomos bem enquadrados, preferem as redes e apostam nas ações descentralizadas. Sua renúncia a toda organização nacional burocrática os torna menos vulneráveis à repressão; trabalha também a rejeição aos partidos por inúmeros jovens. Nesta cultura da juventude se manifesta, segundo os termos de Bernd Wagners, um “processo expontâneo” que escapa a qualquer influência.
O vocabulário neonazista designa todo clube de jovens, rua ou bairro que passa às mãos da extrema direita como “zona nacional liberada” — expressão implícita do arsenal da esquerda radical, como o conceito de hegemonia, que se refere a Antonio Gramsci. [5] Concretamente, os delinqüentes decidem quem pode entrar e quem não pode. Este pavoroso cenário, que se tornou realidade em muitos lugares, naturalmente alimentou, neste verão, a exigência de uma presença policial reforçada em todos os novos Länder.
O “reconhecimento negativo”
As tentativas para explicar o progresso e a consolidação desta cultura na Alemanha oriental bem como a tolerância, até mesmo o apoio dos adultos a ela são ainda incipientes. Certamente, não nos faltam indícios: a ausência, no leste, de uma sociedade civil eficiente — isto é, que poderia gerir pacificamente seus conflitos — do tipo daquela formada, no oeste nos anos 60; a herança autoritária da RDA, cujo antifascismo ritual era apenas um verniz; o pouco hábito com os estrangeiros, que o antigo regime confinava e que por isso não participava da vida cotidiana…
Muitas peças do quebra-cabeças que se completam mais do que se contradizem. Porém, elas somente se tornam inteligíveis se recolocadas no contexto de insegurança gerado pela “reviravolta” de 1989, começando por estas carreiras interrompidas e estas perspectivas de emprego arruinadas — em uma sociedade marcada pela centralidade do trabalho. Os “Ossis”, [6] e em primeiro lugar os jovens, tiveram repentinamente o sentimento de que “não tinham mais necessidade deles” , como destaca o especialista da imigração Eberhard Seidl. [7] A recusa pelas elites dominantes dos pedidos de integração das pessoas do Leste contribuiu para abrir as portas ao “reconhecimento negativo”: aquele oferecido pelo extremismo de direita com seu programa aparentemente revolucionário. Esta nova consciência de si parece difícil de quebrar, ainda que as condições de existência dos jovens tendesse a melhorar e que os programas de ajuda à formação profissional prometidos pelo Estado tivessem tido sucesso.
Um remédio miraculoso
Por ocasião de sua viagem aos novos Länder, em fins de agosto passado, o chanceler Gerhard Schröder declara sua vontade de lutar em três frentes: repressão, formação profissional dos jovens e estímulo à coragem cidadã. Mas o debate público que se seguiu ressaltou principalmente a repressão e especialmente a proibição do NPD. O Conselho Constitucional, no entanto, hesita em tomar tal decisão por razões pragmáticas.
Na verdade, não somente o ex-NPD poderia se reconstituir rapidamente com uma fachada legal como também sua interdição correria o risco de jogar na clandestinidade grupos até então controláveis e infiltráveis. À esquerda, medo de que o crescimento que tal medida acabe preparando o trabalho dos dirigentes conservadores, que vêem na repressão o remédio miraculoso aos problemas existentes entre alemães e imigrantes. O destino do NPD divide, aliás, o conjunto dos partidos políticos: chama especialmente a atenção, do lado dos partidários da interdição, a estranha convergência entre dirigentes verdes e conservadores. De qualquer forma, a questão permanece em estudo.
Rede de iniciativas antinazistas
No caos de verão, felizmente, levantaram-se vozes que há muito tempo enfrentam o extremismo de direita. No tempo do “socialismo real”, Bernd Wagner tomava ao pé da letra o antifascismo oficial e se opunha, como policial, aos grupos radicais em gestação.
Citemos também Anneta Kahane, do Escritório Regional do Trabalho de Berlim para questões dos estrangeiros. Como eles, outros especialistas apoiam os grupos de trabalho, as “mesas redondas” e outras alianças que enfrentam, na prática, a ameaça de hegemonia dos neonazistas. Cada loja mantendo “Entrada de emergência” e servindo de refúgio aos estrangeiros perseguidos pelos brutamontes, cada escola exibindo o título de “Escola sem racismo”, cada reconquista de clube de jovens reconstitui um pequeno pedaço de sociedade civil e uma nova rede de iniciativas antinazistas.
“Militantes da sociedade civil”
Alguns governos no leste calculam há anos a importância do desafio. Desta forma o Brandenbourg criou a unidade policial Mega, que disputa com os neonazistas o controle das “zonas nacionais liberadas”. Entre órgãos de repressão do Estado e iniciativas populares independentes se instaura, aqui e acolá, uma forma de cooperação na qual o Estado renuncia a tutelar ou a instrumentalizar os cidadãos engajados. Mas estes progressos sobreviverão à constituição, neste Land, de uma “grande coalizão” entre sociais-democratas do SPD e democratas-cristãos do CDU?
Os “militantes da sociedade civil” sa