As origens da Insurreição
A revolta líbia não nasceu espontaneamente. Ela foi preparada tanto pelas reformas do regime de Kadafi, dirigidas no sentido de centralizar cada vez mais o poder, quanto pelas corajosas iniciativas de militantes, que criticaram o governo apesar do altissimo risco de punições.Rachid Khechana
Em entrevista concedida à rede de televisão Al-Arabiya, no dia 19 de fevereiro, Seif Al-Islam, filho de Muammar Kadafi, declarou que, com a ajuda de seu pai, pretendia realizar profundas reformas no sistema político. Ele também anunciou que, uma semana após a eclosão do levante, o “guia” encontrou-se com alguns de seus opositores e prometeu reformas radicais implicando a constituição, a convocação de eleições livres e a promulgação de novas leis. Seif Al-Islam só esqueceu de dizer que a abertura que ele próprio tentou realizar em 2003 fracassou em 2008. Oito anos atrás, o filho do guia propôs um projeto de reforma da constituição, chegando a fixar um prazo: 1º de setembro de 2008. As medidas em vista previam a promulgação de 21 leis fundamentais, uma delas sobre investimento e código penal, outra sobre procedimentos civis e comerciais.
Tais reformas, garantia Seif Al-Islam, compunham uma tentativa de tirar a Líbia de seu isolamento internacional. Mais que isso, elas seriam acompanhadas do chamado à construção de uma sociedade civil na qual floresceria toda sorte de organizações independentes: sindicatos, federações, ligas, associações jurídicas e uniões profissionais. O objetivo seria conferir ao regime uma legitimidade constitucional que viria substituir a legitimidade revolucionária e tribal, na qual se apoia o coronel desde sua ascensão ao poder. Mas essas leis nunca foram submetidas à aprovação do parlamento, o Congresso Popular Geral. Na verdade a iniciativa parece não ter passado de uma manobra. Seu objetivo? Ganhar tempo e melhorar a imagem do regime nas capitais ocidentais. O juiz encarregado de redigir a constituição declarou que sua principal fonte foi o “Livro Verde” – manual de pensamentos do guia –, garantindo que sua missão não era mudar a natureza do regime, mas reunir textos oficiais já existentes. O prazo fixado para a organização de eleições e o estabelecimento de uma constituição – 1º de setembro de 2008 – não foi respeitado.
Para compreender essa procrastinação, é preciso voltar na história e entender os fundamentos do pensamento do coronel Kadafi. Quando os Oficiais Livres tomaram o poder, em 1º de setembro de 1969, a Líbia – muito rica em petróleo e gás – tinha 2,5 milhões de habitantes, uma sociedade tribal composta por 75% de beduínos. Apenas três cidades apareciam então: Trípoli, Benghazi e Misurata. As principais mudanças operadas pelos novos governantes foram a abolição da monarquia, a instauração da República Árabe e a consagração do “poder do povo”, num congresso realizado em março de 1973. Em 1972, a Lei nº 17 baniu o pluralismo político e proibiu a criação de partidos políticos, como afirma o lema: “Todo membro de partido é um traidor”.
A União Socialista Árabe – que depois se tornou “movimento dos comitês populares” – formava então a espinha dorsal do sistema e, paradoxalmente, tinha raízes de orientação socialista, embora o coronel Kadafi defendesse a exploração de uma “terceira via” entre capitalismo e comunismo. Segundo o pesquisador tunisiano Taoufik Mestiri, Kadafi teria sido influenciado pelo pensador francês Jean-Jacques Rousseau:1 essa seria sua referência para instaurar na Líbia uma “beduinocracia”. O sistema seria caracterizado pela ausência de Estado, presidente (substituído por um “guia”) e partidos (substituídos por comitês populares que dirigem a administração), e pela implementação de comitês revolucionários (assim como comitês de controle, que surgem para resolver litígios entre comitês populares e comitês revolucionários).
O funcionamento dessas estruturas permanece completamente obscuro: ninguém sabe como seus membros são nomeados. Kadafi é permanentemente protegido por sua tribo, a El Ghdedfa. Assim, quando o coronel insiste em viajar ao exterior com sua famosa tenda, é uma forma de lembrar a sua tribo que, mesmo fora do país, ele nunca a abandonou. Parece um capricho pitoresco, mas trata-se de uma mensagem forte para os beduínos, que o escolheram não como presidente, mas como líder.
Durante seu mandato, o coronel Kadafi migrou do arabismo para o nacionalismo e o tribalismo, contestando a civilização urbana. Ele fez da khaima (tenda) seu domicílio, e afastou todos os ministros citadinos. Em 1977, o líder aboliu a direção colegiada do Conselho de Comando da Revolução (CCR), que tomou o poder em 1969. Ele não apenas reprimiu os oponentes progressistas, islamistas e nacionalistas, mas também excluiu um a um seus companheiros de armas, os Oficiais Livres. Progressivamente, os filhos de Kadafi foram substituindo todos aqueles que ocupavam posições de confiança junto a seu pai. Após o fracasso de sua “abertura”, o coronel Kadafi surpreendeu com a nomeação de seu filho, Seif Al-Islam, em outubro de 2010, como “coordenador dos poderes populares”. Essa função faz dele um chefe de Estado virtual, dirigindo os principais ramos do poder: o Congresso Popular Geral (parlamento), o Comitê Popular Geral (governo) e as forças de segurança.
A iniciativa coincidiu com a demolição, em abril de 2010, do complexo penitenciário de Abu Salim, nos arredores de Trípoli. O objetivo da operação era apagar todos os vestígios da carnificina que a prisão conheceu: ali, segundo organizações não governamentais, foram assassinados 1.200 presos políticos em 1996. Nesse clima político sufocante, a simples ideia de realizar uma manifestação pacífica é passível de pesadas penas de prisão. O ativista político Jamal Al-Hajji e seu companheiro Frej Humid foram condenados pelo tribunal de segurança do Estado a respectivamente 12 e 15 anos de prisão por planejar, com mais dez acusados, uma manifestação pacífica, em Trípoli, com o objetivo de relembrar a morte de manifestantes em violentos confrontos com as forças de segurança, em fevereiro de 2007. Esse tribunal também condenou a 25 anos de prisão o opositor Idriss Bufayed, em 2007, por conspiração contra o governo e espionagem em benefício de um país estrangeiro, por ter contatado um diplomata norte-americano lotado em Trípoli.
Exasperadas pelas extorsões e pela falta de liberdade, as elites começaram a levantar a voz e criticar abertamente o ditador, seus capangas e a tutela do poder. Em uma conferência realizada na cidade de Benghazi em agosto de 2010, Amel Laabidi, doutora do departamento de Ciência Política da Universidade de Gar Yunes (Trípoli), criticou o peso do pertencimento tribal no campo da política. Em setembro de 2010, o ex-presidente da ordem dos advogados Mohamed Ibrahim Al-Allagui fez críticas ao poder absoluto dos comitês populares, reclamando que eles fossem submetidos à lei e que fosse instaurado o pluralismo político. Em artigo publicado no dia 10 de setembro de 2010 pelo jornal Oya, Ezzat Kamel El Makhur, filha do ex-ministro das Relações Exteriores, defendeu o direito de os cidadãos formarem sindicatos independentes.
Diante dessa efervescência, o poder ora se divide, ora se une, especialmente quando seus interesses estão em jogo. A agressão contra o jornalista Mohamed Larbi Essarit, ocorrida em Benghazi no final de setembro de 2010, é um grande exemplo. Conhecido por seus escritos críticos, ele foi gravemente ferido e hospitalizado, mas a despeito de seu estado a polícia o levou para interrogatório. A Fundação Kadafi Internacional, dirigida por Seif Al-Islam, através de sua associação para os direitos humanos, apressou-se em isentar as forças de segurança de qualquer responsabilidade no caso.
Esse autismo do poder, a apropriação pela família Kadafi de todos os centros de decisão e dos postos estratégicos no serviço militar, o controle da população e o amordaçamento da imprensa fecharam as portas a qualquer mudança pacífica, empurrando o povo para a insurreição.
Rachid Khechana é jornalista da Al-Jazira, responsável pelo Magreb.