As origens destrutivas do agronegócio no Brasil e a miséria da sua “gestão produtiva”
Na miséria da ideologia do agronegócio e na crise do sujeito e do Estado modernos expressas no bolsonarismo, a guerra (da produção desesperada) parece se centrar propriamente nas armas de fogo e no fogo que arde nas florestas e campos
Uma guerra não se faz só com armas de fogo, mas também com o fogo das ideias, com convencimento. Convencimento que o Iluminismo alçou a uma categoria de cientificidade supostamente neutra, por meio sobretudo da Economia Política que naturalizou a divisão do trabalho e a acumulação de capital.
Nela, se apaga a origem destrutiva do capitalismo que se deu pela revolução das armas de fogo e por guerras, promovidas pelo complexo proto-industrial estatal militar (Kurz) dos nascentes Estados nacionais europeus, para no lugar disso contar fábulas idílicas sobre a natureza humana e justificar o capital como recompensa pelo esforço individual do trabalho dos ancestrais brancos civilizados. A origem do capitalismo ali brota espontaneamente do trabalho e das trocas feitas no passado pelos “pioneiros” da civilização, sem violência ou imposição, e se expressa numa evolução das técnicas e das ideias que culminam na indústria inglesa e no liberalismo.
Uma requentada versão dessa “ideologia dos pioneiros” circula hoje em propagandas de TV e mídias. Em meio à batalha judicial para decidir sobre a validade de um marco temporal (ou não) para as demarcações de terras indígenas, a montadora Ford soltou uma propaganda da picape Ranger 2022, explicitamente voltada para seus consumidores ligados ao assim chamado “agro”. Diz a peça publicitária “Gerações”: “Em nome da nossa conexão com a terra, com as raízes, com o agro, com o passado e com o futuro, a gente sempre esteve nessa terra e vai continuar nela”. As imagens que passam ao fundo são de famílias brancas felizes e de fazendeiros rodando em caminhonetes por suas belas fazendas. A mimetização da força da caminhonete, agora conectada à internet, com os personagens brancos proprietários culmina na expressão: “Ranger, a picape raça forte do Brasil”. A conexão com a internet transborda, portanto, para um discurso de uma alegada conexão atemporal dos seus donos com a terra, e assim essencializa/naturaliza (as personificações d)o agronegócio, apagando a história de territorialização do seu capital e, de quebra, hierarquizando as raças.
Uma arma contra esse discurso, que exalta o agronegócio vitorioso e que é no fundo racista e evolucionista, é retomar criticamente processos históricos.
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Falar em “avanço do agronegócio no Brasil” pode encaminhar muitas conversas. Mas inevitavelmente estamos falando da expansão do capitalismo, nas particularidades históricas dessa territorialidade do Estado nacional que aqui se formou.
Essa formação, como sabemos, decorre da colonização do Antigo Regime, sustentando uma produção de mercadorias tropicais para o mercado europeu, por meio da grande lavoura e da grande mineração realizadas em territórios conquistados violentamente das populações indígenas e por meio do trabalho explorado de populações escravizadas (indígenas e africanas).
A “gestão produtiva” da colonização se dava principalmente por meio do “exclusivo metropolitano”, monopólio da Coroa que se desdobrava nas concessões reais de sesmarias e lavras a súditos cristãos, que encaminhavam verdadeiras campanhas militares de conquista, escravização e produção violenta de mercadorias para os mercados metropolitanos. Decorrência da revolução das armas de fogo, a colonização tinha, portanto, a marca também de missão conquistadora de corpos e mentes pela captura e pela cristianização; processualmente, assim, iria as hierarquizar segundo um discurso de raças na sociedade que formava.
A conexão do “agro” com a terra se deu posteriormente a e por meio dessa conquista, como decorrência dessa imposição, o que mostra a falácia da narrativa propagada: “a gente sempre esteve nessa terra e vai continuar nela”. A “gestão produtiva” da conquista e da escravização expropriou populações do acesso a essa terra e as colocou como trabalhadores; fossem eles escravizados, fossem dependentes agregados dentro das sesmarias que não lhes pertenciam.
Falamos, pois, da constituição violenta de territorialidades visando uma colonização que realizava, em seu sentido profundo, a acumulação primitiva de capital na Europa, mas que deixaria ao final, como síntese, um Estado que se autonomizava do capital europeu, tendo que lidar com a “gestão produtiva” do seu próprio território em formação e com a miséria de sua população.
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O século XIX coloca, portanto, o desafio de uma nova sistematização da colonização, para o nascente Estado nacional, a lidar com sua autonomia relativa de “gestão territorial” e com as pressões de um mundo em ebulição pelas revoluções de fins do XVIII (industrial e liberal-política). O “pacto oligárquico” que mantém, no entanto, a unidade territorial brasileira passava pela cessão do “monopólio de uso da violência” para os proprietários de capital, por meio da Guarda Nacional, o que levaria ao “coronelismo”, expressão de certa fusão entre poder econômico e poder político-militar, com forte caráter patriarcal.
Com isso, serão torcidos por essa particular instituição os preceitos da “colonização sistemática”, de E G. Wakefield, que embasam a Lei de Terras e a proibição do tráfico de 1850. Na transição “planejada” do escravismo para o trabalho “livre”, cumpria limitar o acesso à terra para evitar que os trabalhadores “livres” se apossassem de terras “livres”, e assim perigosamente abandonassem a liberdade “liberal” de trabalhar para o capital.
Na prática, as terras devolutas não chegaram a ser discriminadas das particulares e nem vendidas em leilões públicos, como previsto, mas foram sendo sistematicamente griladas. Nos esquemas coronelistas, porém, à sua maneira, a essência da Lei se cumpriu: vedar à população o “livre” acesso aos meios de produção (sobretudo, à terra).
A “gestão produtiva” do coronelismo produziu, por mais de cem anos, a expansão do “agronegócio” (que ainda assim não se reconhecia) de maneira controlada pelas famílias proprietárias, não sem conflitos entre elas. Controlando, portanto, o acesso à sobrevivência de uma população que já não mais seria escravizada, mas cuja “livre” mobilidade do trabalho se mediava por relações patriarcais com os proprietários (e seus braços armados) para ter terra, trabalho e moradia. Ressalto, portanto, que a “produção da miséria” tem aí alguma transformação em relação ao escravismo. A expropriação do corpo se transferia para a da terra, embora não tivesse ainda se monetarizado totalmente ou completado uma autonomização entre as categorias (terra, trabalho e capital).
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Desde 1930, emergem importantes tendências que transformarão as relações sociais de produção no país, que poderíamos interpretar como configurando uma nova territorialidade do Estado nacional. A tensão que emerge entre as regiões coronelistas e uma esfera ou escala federal-nacional de intervenção estatal se desdobra numa série de instituições (universidades e institutos técnicos, códigos eleitorais e novas juridificações como as Leis Trabalhistas etc.) que se associam a e promovem um desenvolvimentismo industrializante.
Francisco de Oliveira, em Elegia para uma re(li)gião, fala da “integração nacional” (fortemente expressa na Marcha para o Oeste) e do planejamento regional como dinâmicas atreladas àquele desenvolvimentismo industrializante nacionalista, que “abrem” política e economicamente a região coronelista. Não estaríamos falando de uma nova “gestão produtiva” tecnocrática do território nacional, na qual a Ciência tem papel fundamental, que reposicionará a “produção da miséria”? Não estaríamos diante de uma relativização da centralidade do “agronegócio” e do “mundo rural” frente à ascensão de um novo padrão então “desejado” de modernidade: industrializado, urbanizado, monetarizado, juridificado e consumidor de mercadorias?
![do agronegócio](https://diplomatique.org.br/wp-content/uploads/2021/10/gbb-e1634751835182.jpg)
Uma nova “gestão produtiva” do “avanço do agronegócio” se tornará hegemônica no pós-guerra e sobretudo dos anos 1960 em diante, com a industrialização de setores da agricultura do Centro-Sul e com os preceitos da assim chamada Revolução Verde. Uma agricultura consumidora de mercadorias industrializadas (tratores, arados, fertilizantes e pesticidas químicos etc.) e produtora de matérias-primas para as indústrias processadoras. Uma agricultura financiada pela dívida pública e que deve “gerar divisas” por meio das suas exportações, numa “gestão tecnocrática” de rolagem da dívida externa que financiava aquela mesma industrialização.
A constituição desses complexos agroindustriais modifica as relações sociais de produção no campo. Famílias de trabalhadores que moravam nas propriedades rurais e produziam sua sobrevivência em conjunto com a produção das mercadorias agropecuárias virão chegar novas técnicas, novas tecnologias a questionar sua produtividade e terão seus conhecimentos e práticas contestados pelos saberes científicos de técnicos e agrônomos. Técnicas e tecnologias poupadoras de trabalho, reiterando o mantra do aumento da produtividade e rompendo também a concepção de família como unidade produtora, tendendo a individualizar seus membros como trabalhadores assalariados e consumidores. Produtividade essa, porém, que subordinava a agropecuária às agroindústrias e que raramente saldava os créditos rurais subsidiados com juros reais negativos bancados pela dívida pública. Essa modernização endividada tinha consequências sociais e ambientais catastróficas que a exaltação da modernidade e do desenvolvimento da nação tratavam de minimizar.
A produção de uma nova forma de ser da miséria se consagraria com a migração em massa do campo para as cidades, o que representava em geral a impossibilidade crescente de ter acesso a meios de produção ainda que mediados. Para os que ficavam no campo, minoria da população desde os anos 1960, cumpria produzir alimentos para os que o deixavam, mas as teias que levavam essas mercadorias até os centros consumidores se apinhavam de intermediários e atravessadores, ávidos por extorquir as pequenas margens possíveis de um mercado de consumidores assalariados precariamente. De todo modo, não podemos mais aqui falar de uma mesma miséria daquela reproduzida nas regiões coronelistas, uma vez que a metropolização “libertava” da dominação coronelista aprisionando nas relações mais abstratas das trocas de dinheiro e mercadorias, ainda que certo espaço comunitário e acesso a terras para moradias precárias pudessem se refazer no “padrão periférico” de nossa urbanização, durante certo período, reiterando a possibilidade de um precário patriarcado produtor de mercadorias industrializadas.
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A crise das dívidas dos países do Terceiro Mundo, nos 1980, indicou certa limitação histórica para as políticas de modernização retardatária do pós-guerra. Para o “avanço do agronegócio” representou o fracasso de um modelo que tinha o Estado como moderador e financiador quase único. Sem as benesses de um crédito rural farto e fácil muitos setores do “agronegócio” colapsaram, o próprio mercado de terras teve talvez sua primeira retração substancial de preços, nos 1990.
Na “onda liberalizante” da época surgiram as quimeras das reestruturações produtivas e da profissionalização das gestões, que trouxeram jovens yuppies formados em administração para substituir os fazendeiros agrônomos da velha geração (muitas vezes pais daqueles jovens). Munidos de “arrojadas” dinâmicas de “qualidade total” e dos computadores que chegavam com suas planilhas de Excel e projeções de Powerpoint, ajudaram a romper definitivamente os restos de laços de solidariedade entre patrões e empregados, e entre gestores e os lugares da produção, e abriram caminho para o agribusiness se encantar com o capital financeiro e romper com a lógica de contabilidade patriarcal que ainda restava. A miséria da “gestão produtiva” também aqui se apoiava nas consultorias de professores e pesquisadores formados na universidade pública, antenados com as novíssimas modas do management.
Porém, o cenário sócio-político e econômico ainda não era dos mais propícios para a sociedade e a ideologia do agronegócio se firmarem, embora a crise urbana e a da indústria já chegassem para ficar, como expressões derradeiras da crise do trabalho, progressivamente expulso dos processos produtivos.
Num plano acima, o governo acatava o Consenso de Washington e promovia centralizações no setor bancário (com o PROER – Programa de Estímulo à Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, de 1995) e uma nova engenharia financeira que estatizava boa parte da dívida do crédito rural ao passo que estipulava legislações que securitizavam as dívidas e lançavam novas possibilidades de emissões de títulos em mercados secundários. Tendo por base as Cédulas de Produtos Rurais (NPRs), com securitizadoras dividindo a gestão dos riscos, os bancos privados e as financeiras viriam em breve a se interessar pelos rumos do agronegócio. Antes disso, porém, teria vida bem curta a política de manutenção de uma moeda forte, em boa parte fragilmente sustentada pela geração de divisas pelas exportações de commodities, o que reiterava o papel estrutural do agronegócio na rolagem da dívida externa do país, que galopava.
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Para concluir chegamos nessa fase mais recente da miséria da “gestão produtiva” do “avanço do agronegócio”. Ainda no rescaldo das crises financeiras asiáticas, os anos 2000 se iniciam com a quebra da bolsa de empresas de tecnologias, a Nasdaq, pondo dúvidas sobre o potencial da Nova Economia de produzir dinheiro como num passe de mágica até o infinito.
A migração de capitais monetários superacumulados para os mercados imobiliários e de commodities marca um período de inflação de preços dessas mercadorias. No Brasil, essa avalanche monetária que produz a bolha das commodities coincide, por um lado, com a ascensão ao poder do Partido dos Trabalhadores e, por outro, com o desdobramento daqueles instrumentos de securitização das dívidas e novas intermediações financeiras.
Fábio Pitta, em livro recente sobre a crise brasileira, mostrou como entre a entrada de dólares, financiando firmas do agronegócio tanto pela dívida pública, por meio do SNCR e do BNDES, como pela entrada de novos capitais do mercado financeiro, por meio da abertura de capitais em bolsa e pela inflação das ações dessas empresas, moveu a expansão da produção e da produtividade de commodities agrícolas e minerais, fazendo avançar a fronteira agrícola sobre os Cerrados e a Amazônia e mecanizando e informatizando processos que reforçaram aspectos os mais deletérios desse avanço: a destruição ambiental e a crise social do trabalho. Por sua vez, essa expansão retroalimentou a subida do preço dessas ações, num movimento em que o capital fictício antecede e é também o ponto de chegada, indiferente à substância social do próprio capital.
Essa mesma dinâmica lastreou, de certo modo, as políticas ditas “sociais” do período tanto no campo como na cidade, promovendo uma transformação da gestão da miséria, que passou a enfrentar seus limites após a crise de 2008. No geral, assim, essa reprodução se revelaria, de um modo geral, numa escalada de cadeias de endividamento, cuja “gestão produtiva” vem se mostrando extremamente precária pelo menos desde 2013/2014, sobretudo com a retração dos preços internacionais das commodities.
Desde o golpe que tirou o Partido dos Trabalhadores do poder, em 2016, as promessas de uma gestão “liberal” da crise social e econômica parecem querer desvincular as políticas de compensação e de mitigação da miséria das políticas de “gestão produtiva” do “avanço do agronegócio”. O “asselvajamento do patriarcado” neste colapso particular da modernização no Brasil se agrava cada vez mais conforme a crise se aprofunda e não se resolve por meio de reformas (trabalhistas, previdenciária, fiscal, tributária, administrativa, etc.) que visam retirar do “peso” do Estado seus precários mecanismos de mitigação.
Na miséria da ideologia do agronegócio e na crise do sujeito e do Estado modernos expressas no bolsonarismo, a guerra (da produção desesperada) parece se centrar propriamente nas armas de fogo e no fogo que arde nas florestas e campos, numa conexão destrutiva em que não sobreviverá sequer a suposta Raça Forte, se não pudermos romper com suas “gestões produtivas” e criar um pensamento crítico abrangente contra o patriarcado produtor de mercadoria.
Cássio Arruda Boechat é professor de Geografia Econômica e Rural da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Mudança Social, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Ufrrj) e do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) da USP.