As palavras, as coisas e o populismo
O populismo, como um significante vazio, é um conceito em disputa assim como qualquer outro. Não se trata de uma elegia, mas uma chamada a pensar –ou repensar– o sentido hegemônico que ele possui na sociedade
Os pobres são os que falam cegamente, ao rés do acontecimento, porque o próprio fato de falar é um acontecimento para eles. São os que “teimam” em escrever, falar dos outros e contar a si mesmos. A obstinação é o defeito comum dos que fazem o que não têm motivo para fazer. Os pobres falam falsamente porque não têm motivo para falar. Os pobres, na alegoria da ciência historiadora, representam o reverso do objeto “certo” de saber, as massas (…) Os pobres são os objetos da história que pretendem ser seus sujeitos ou historiadores, as massas na medida em que se desfazem e se decompõem em seres falantes.
Jacques Rancière[1]
Quando olhamos ao redor e discernimos os objetos que a vista alcança, temos a impressão natural de que tudo foi sempre assim. Quando escutamos uma palavra e projetamos uma imagem mental, achamos óbvia a sua representação. Mas será mesmo que tudo sempre foi assim?
A relação entre as palavras e as coisas é matéria extensamente estudada desde os primeiros registros filosóficos de que dispomos na humanidade. A partir do início do século XX, a linguística de Ferdinand de Saussure inaugurou uma nova etapa de entendimento a respeito dos significantes e significados que iria influenciar não só a antropologia moderna, como a própria psicanálise. O que seria isso?
Saussure procurou definir os limites do objeto que ele queria estudar. Esse objeto é a língua: uma parte da linguagem[2]. Vejamos, por exemplo, as placas de trânsito: a possibilidade de algo ser simbolizado por uma palavra é o que diferencia a língua de outras formas de linguagem. Isso nos traz um grande problema: quando você vê uma seta virada para esquerda numa estrada, há uma relação óbvia de que o signo da seta significa “virar à esquerda”. Por outro lado, não é óbvio que tal placa será representada, na língua, pelas palavras: “placa para virar à esquerda”.
Há, então, entre a palavra e a coisa, uma terceira dimensão: a ideia. A língua, ao significar algo, não faz nada além de dar uma ideia sobre alguma coisa, nunca sendo a coisa em si. Ou seja, ao descrever uma placa de trânsito com tais “palavras”, impõe-se uma ideia sobre essa placa. O mesmo objeto pode ser descrito de forma completamente diferente, por exemplo, quando um químico se refere a uma placa de ferro na beira de uma estrada. É o mesmo objeto, mas possui diferentes formas de ser idealizado.
O mesmo acontece com as próprias palavras de uma língua. Ao dizer “coisa”, pode-se fazer referência a algo no mundo, mas também é possível fazer referência à própria palavra c – o – i – s – a, formada por diferentes letras que se relacionam para indicar alguns sons que, combinados, vão indicar alguma ideia. Ironicamente, para um linguista, a palavra coisa pode ser muitas… coisas! Por isso Saussure vai dizer que o ponto de vista cria o objeto.
Para a linguística da década de 1920, a palavra teria que ser analisada como um objeto, uma coisa em si, em sua composição e estrutura, não importando o que ela vai significar, representar ou simbolizar. Ou seja, a linguística nasce através da exclusão do significado para analisar somente a palavra, por mais contraditório que isso possa parecer. Isso quer dizer que, para Saussure, o importante é a palavra– o significante–, e não o que ela significa – o significado.

Neste sentido, o significante – a palavra em si – é uma forma para tentar organizar vários significados. Isso quer dizer que ele só recebe um significado quando um consenso social é estabelecido, ou, em termos sociológicos: quando se consolida uma hegemonia. Os significantes são, então, uma tentativa de organizar o caótico mundo das ideias, sempre confuso e contraditório.
Por isso, não há estabilidade na significação das coisas e qualquer totalidade vai ser sempre uma tentativa, uma fotografia, uma apreensão do instante que, ao fim e ao cabo, será sempre falha, transitória e em disputa por outras tentativas de significação.
Então, quando um significante ganha o consenso de um significado, ele passa a servir como um diferenciador. É a forma que temos para dizer isso, e não aquilo. Quanto maior o consenso, mais se tem a ideia de que a palavra está se referindo a uma coisa, e não à ideia dela. Isso acaba criando uma ilusão de que a coisa que se quer dizer veio antes da palavra que é usada para expressá-la. Mas, na verdade, é justamente o oposto: é a palavra que permite que a coisa seja dita, vista e analisada.
Assim, quando essa palavra funciona como o nome de algum objeto, melhor dizendo, quando ocorre a colagem do significante – palavra – com a coisa que se supõe representar, vai modificar o próprio entendimento sobre esta mesma coisa.
Não à toa, o linguista Guy Deutscher mostrou a ausência da cor azul nos relatos de A Ilíada e A Odisseia. Em uma passagem de sua investigação, trazida por uma matéria da BBC, aprendemos que os gregos não faziam referência a qualquer tom de azul para representar o céu, mas, sim, a “tons rosados”. Sim, o azul, para os gregos, não existia, pois não existia tal significante.
É esta ideia que vai basear o que o historiador e sociólogo argentino, Ernesto Laclau, quis dizer ao categorizar os significantes como vazios: não há um significado que preceda ao significante. Assim, da mesma maneira que se verifica em objetos concretos, como uma placa, esse mesmo processo se dá, de forma mais complexa, relacionado a termos mais abstratos, como “classe” e “populismo”.
Ou seja: quando pronunciamos uma palavra e projetamos uma ideia que ela nos traz, estamos afetados por uma infinidade de sentidos que preenchem essa palavra num determinado contexto de espaço e de tempo, que são resultados de uma relação de poder.
Um bom exemplo é o conceito de “democracia”. Não adianta tentarmos evocar a verdadeira significação de democracia nos remetendo à sua origem grega de δήμος (povo) + κράτος (poder), como insistem alguns filólogos, ou denunciarmos a sua deturpação moderna por parte de estadunidenses que a utilizam como bandeira para suas incursões armadas por petróleo.
Simplesmente porque não existe significado verdadeiro para democracia. Existe uma disputa por sua significação que obedece a um sentido momentâneo e, óbvio, a uma força de poder.
Portanto, seguramente quando ouvimos que uma política –ou alguém– é populista, nós partimos de uma ideia de significação que nunca será igual para um, ou para outro, mas terá apoio em um senso comum. Ou melhor: manterá um significado hegemônico.
Façamos um exercício: qual é o sentido hegemônico para o conceito de populismo? Ele possui um valor mais positivo ou negativo no senso comum? Façamos o mesmo para socialismo. O que hegemonicamente representa esta palavra? Um sistema onde todos dispõem das mesmas condições materiais para sobreviver, acesso universal à saúde, educação e lazer? Ou significa o eixo do mal, corrupção, ditaduras e cerceamento de liberdade de expressão?
Se percebermos bem, veremos que o sentido é hegemônico, mas não total, nem entre aqueles que se dizem socialistas. Se fosse assim, não existiriam tantas tendências, dissidências e partidos evocando para si a real interpretação do que é ser socialista.
Aquilo que foge à totalidade, Laclau vai denominar de heterogêneo[4]. Seria o equivalente ao Real lacaniano, o que não pode ser simbolizado e que escapa à tentativa de totalização de um conceito. É aquilo que fica de fora quando se consolida a ilusão de que uma palavra está nomeando alguma coisa. Porém, é justamente por estar de fora dessa ligação da palavra com a coisa, que este heterogêneo irrompe.
Vamos lembrar da placa de trânsito: apesar de funcionar como uma simbolização que tenta totalizar uma imagem deste objeto, vai sempre produzir suas ramificações em outros objetos, outros pontos de vista. São justamente os heterogêneos que escapam à significação: um processo inevitável e inerente à linguagem.
Sobre o populismo, o sociólogo vai, então, alertar para dois tópicos: o primeiro pode ser entendido a partir da forma pejorativa como ele vem sendo descrito na academia e na mídia; o segundo é pensa-lo como um mecanismo de agregar sentidos em torno de um projeto político popular: ser hegemônico; ou seja: buscar aquele consenso que prende a palavra a uma coisa, evitando outras ideias em disputa.
Portanto, podemos ter notícias do primeiro tópico ao remontarmos a maneira pela qual os conceitos de “povo” e “massa” foram representados modernamente nas pesquisas de Gustave Le Bon (1841-1931), Hippolyte Taine (1828-1993) e Gabriel Tarde (1843-1904) que determinaram aquilo que logo foi conhecido como “psicologia das massas”.
Todos possuíam um traço em comum: eram homens do século XIX, interessados em salientar como o ser humano restava desprovido de sua razão e individualidade quando misturado em grupos. Importante notar o contexto histórico e geográfico de que estamos falando: trata-se da Europa oitocentista, onde o positivismo e o racionalismo despontavam como base da ciência ocidental, que influenciaria nossos ilustrados latino-americanos até hoje.
Em um livro publicado na década de 1980, a historiadora Susanna Barrows diz sobre este período que:
A partir das teorias populares da evolução construíram uma hierarquia da civilização humana; na medicina, tomaram como modelo a psicologia anormal e as mais contundentes metáforas do comportamento das massas. As multidões –assim como descreviam os homens franceses do final do século XIX– eram assemelhadas aos alcoólatras ou às mulheres (grifo nosso) [5]
Outro historiador, Nicolas Shumway, em sua pesquisa sobre a história argentina, descreve da seguinte maneira a elite porteña do mesmo século XIX:
Provinham das classes superiores, que viviam de renda e educavam seus filhos na Europa. Mantinham os olhos postos no Norte, lendo autores franceses e ingleses e acreditando – como José Arcádio Buendia, a personagem de Cem anos de solidão, romance de Gabriel García Marquez – que a cultura precisava ser importada. E sentiam vergonha das províncias argentinas, atrasadas, lideradas por caudilhos e habitadas por gauchos mestiços e analfabetos. Naturalmente, como leitores de ideias europeias, usavam termos grandiosos para falar da eventual formação de uma república democrática e prestavam homenagem às noções de igualdade e fraternidade universal do Iluminismo. Mas sua democracia era antidemocrática, com líderes que eram mais príncipes-filósofos que representantes delegados do povo[6]
Não é tão difícil notar uma semelhança da noção de “povo” e de “massas” do final do século XIX com o que se entende hegemonicamente hoje em dia por populismo no imaginário acadêmico e na narrativa da grande mídia.
A estigmatização das classes populares que, como diz Jessé Souza, constitui o “alfa e o ômega”[7] do conservadorismo brasileiro, é também um traço latino-americano que explica, em grande medida, o surgimento do peronismo na Argentina, como o petismo, o lulismo ou o varguismo, no Brasil.
Foram vozes subalternas relegadas ao silêncio, primeiro por reis e imperadores, e depois por uma ciência positivista que, em nome de uma ideologia liberal pretensamente neutra, seguiu coroando tecnocratas como os únicos personagens habilitados a escrever a história.
O muxoxo e o ranço de uma elite acadêmica e midiática ao falar sobre os líderes populares de seu país diz tanto sobre o Brasil quanto os males de um caudilhismo criados a reboque de outra (?) elite que relegou povos e regiões inteiras à sua própria sorte.
Nesse sentido, há uma noção bem consolidada de que aqueles que completaram a jornada escolar e tiveram acesso às benesses educacionais – restrita a pouquíssimos em nosso continente – são seres “iluminados”, nunca orquestrados e nem tutelados por nenhuma ideologia restritiva de discernimento da realidade.
O interessante nessa ideia, diria Jessé, “é que ela parte do princípio nunca demonstrado de que as outras classes sociais não são manipuladas por ninguém como, por exemplo, a evidente manipulação midiática da classe média brasileira”[8]. Vide a adesão em massa da elite nacional às autoajudas financeiras, às meritocracias, ao economicismo (na direita e na esquerda) e a toda sorte de crenças intelectualmente frágeis.
A provocação é válida para olharmos ao redor e repararmos o quanto os conceitos que nos parecem óbvios, e inseridos no senso comum, são resultados de processos históricos, onde as palavras estão sempre sendo enunciadas por quem tem mais poder de instituir a narrativa.
Se refletirmos a partir de outra perspectiva, podemos entender que o populismo vai muito além do seu valor pejorativo comumente relacionado a “demagogia”, “clientelismo” e “atraso” – adjetivações típicas de uma ideologia liberal e positivista.
O populismo, como um significante vazio, é um conceito em disputa assim como qualquer outro. Não se trata de uma elegia, mas uma chamada a pensar –ou repensar– o sentido hegemônico que ele possui na sociedade.
Se o relacionarmos ao processo de agregar demandas e anseios de um povo, historicamente sem voz, poderemos ter a oportunidade de construir a narrativa de um ponto de vista que surge e se consolida em meios populares. E não mais tentar depositar a razão – ou levar a “luz” – a uma população, como um professor inglês da era vitoriana.
O resultado desse afastamento do conhecimento popular pelas esquerdas foi o que fez crescer lideranças populistas à direita, às vezes se vinculando a um fascismo cruel, como é o caso do bolsonarismo, que conseguiu articular tantos significantes para representar a culpa por uma sociedade extremamente desigual.
O próprio termo bolsonarismo já é uma vitória significativa, no duplo sentido que a expressão se apresenta: é a conquista de uma narrativa de consenso –uma significação hegemônica– por parte de uma direita que agora pode ser reconhecer e é, ao mesmo tempo, uma vitória contundente e inegável dentro de um cenário político nacional.
Mais do que nunca, é preciso ouvir. Não ouvir como quem faz um favor aos seus súditos, mas de fato construir conjuntamente com pautas que façam sentido com os anseios populares, mesmo que sejam estranhas ao conceito de “classe” que a esquerda leu nos livros (às vezes com mais de um século de existência).
Precisamos aprender, e aceitar, que a falha que existe entre as palavras e as coisas é irreparável. Mas o fato de ser irreparável, não que dizer que não possa ser hegemônica: esse é o projeto possível e necessário. Fora do inconsciente, fora do Real, sobra a ilusão de um significante eterno, de um idealismo que não produz restos e é estéril.
Quem vai definir se era contra moinhos ou gigantes que Dom Quixote lutava é quem conta a história, aquele que tem o poder –ou a hegemonia– da palavra. Se Miguel de Cervantes quisesse, poderia ter feito Sancho Panza se dar conta de que era ele que enxergava mal e fazer dele o louco.
Fora dos livros, não há um autor que decida a vida e a morte das personagens como se fosse um Deus. No mundo em que vivemos, há a prerrogativa de uma palavra que é pronunciada e mantida por um jogo de poder. É por ela, sobretudo, que devemos lutar: uma disputa por hegemonia com capilaridade popular.
______
Victor Moreto é historiador pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutorando em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Pesquisa a produção de discursos na grande mídia no contexto das eleições de Maurício Macri e Jair Bolsonaro e sua relação com os significantes “populismo”, “petismo” e “kirchnerismo”.
Frederico S. Guimarães é graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente investiga a relação entre discurso ideológico e as significações dos termos “populismo” e “fake news”.
[1] RANCIÈRE, J. (2014). Os nomes da história: ensaio de poética do saber. São Paulo: Editora Unesp, p. 27
[2] Estamos considerando linguagem, aqui, como qualquer forma de comunicação.
[4] “Lo heterogéneo es aquello que carece de ubicación diferencial dentro del orden simbólico (es equivalente al real lacaniano)” em LACLAU, E. (2005). La razón populista. Buenos Aires: FCE, p.139.
[5] BARROWS, S. (1981). Distorting Mirrors, Vision of the Crowd in Late Nineteenth-Century France, New Haven-London: Yale University Press, p.43 (tradução livre)
[6] SHUMWAY, N. (2008). A invenção da Argentina: história de uma ideia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Editora da UnB, p.77
[7] SOUZA, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, p.136
[8] Idem. p. 138