Com vocação popular, o bolsonarismo é maior que Bolsonaro
O Bolsonarismo é o movimento que melhor encarnou a desconfiança e a vontade disruptiva de superar uma ordem que se esgota a cada dia. E o fez não simplesmente em função de seu espírito reacionário e violento. Mas porque se propôs a entender e se comunicar com os sentimentos das pessoas comuns
Bolsonaro nunca foi, como muita gente sugere, um instrumento usado pela burguesia para controlar o poder político. Isso se é que podemos falar de uma burguesia, assim, no singular, em referência às classes dominantes no Brasil.
De todo modo, as forças do “mercado” tinham suas preferências nas eleições presidenciais de 2018. E Bolsonaro, definitivamente, não era uma delas. Apenas se tornou quando ficou evidente o fracasso dos representantes genuínos das elites econômicas naquele momento de decomposição da ordem.
Nem sequer a reconversão neoliberal do então deputado tinha como intuito principal atrair a confiança da Faria Lima. Ela servia, antes de tudo, a objetivo eminentemente eleitoral. Qual seja, conformar uma base social sustentada no brasileiro médio ressentido com os efeitos do lulismo.
Não por acaso, Bolsonaro passou a legislatura iniciada em 2014 atacando o Bolsa Família, as cotas nas universidades públicas e a PEC das domésticas. Junto às críticas aos avanços liberais nos costumes, o antagonismo em relação à dimensão redistributiva dos governos petistas serviu para alçar o ex-capitão a representante máximo de estratos médios quase órfãos de uma identidade que encontram no abismo material que os separa dos mais pobres.
Por mais paradoxal que possa parecer, no entanto, ele sempre teve um apelo popular. Em boa medida porque não é tão cristalina a fronteira simbólica entre o brasileiro ordinário e as classes trabalhadoras. Mas sobretudo porque, por motivos muitas vezes contraditórios entre si, a insurgência contra o sistema político que moveu setores médios também acometeu parte das camadas populares.
E aqui encontramos a essência de um populismo de direita que governa diversos países mundo afora: um sentimento reacionário que se volta, ao mesmo tempo, contra as elites e os mais oprimidos. Mas que conta, via de regra, com o apoio engajado de trabalhadores mais ou menos precários, que, além de enxergar no radicalismo de extrema-direita o pertencimento a algo maior (o verdadeiro povo, a nação), ainda depositam nele suas últimas esperanças de proteção e mudança social.

Nesse sentido, Bolsonaro destoa de outras expressões do populismo de direita. Embora encarne a representação e estimule a participação ativa do homem médio nos assuntos públicos, sua política econômica sempre foi profundamente anti-popular. Trump, por exemplo, diminuiu a tributação sobre o capital, mas passou seu governo aplicando medidas protecionistas para, teoricamente, preservar empregos norte-americanos. Na Polônia, a extrema-direita vem aumentando seguidamente o valor do salário mínimo. Na Itália, a esdrúxula coalizão do Movimento 5 Estrelas com a Liga de Matteo Salvini criou um amplo programa de renda básica.
A pandemia, porém, mudou tudo. De maneira mais ou menos acidental, Bolsonaro acabou por se dar conta dos ganhos de uma política redistributiva e de desenvolvimento. Isso no momento em que o mercado, de cuja estabilidade depende o governo, vem ampliando sua margem de tolerância em relação aos gastos públicos.
Daí a gravidade do presente momento. O bolsonarismo pode estar se tornando um fenômeno eminentemente popular. Com autonomia relevante, inclusive, em relação a uma burguesia com a qual nunca teve grande compromisso. Uma espécie de bonapartismo com traços fascistas, que, como dizia Walter Benjamin, preserva as relações de produção enquanto permite que as massas expressem sua natureza.
Uma natureza que é conformada, nos dias que correm, por um profundo sentimento de mal-estar e de revolta com uma ordem liberal que não só deixa de atender às necessidades e às demandas da maioria como é absolutamente impermeável ao seu controle.
Movimentos como o bolsonarista traduzem o conflito que havia desaparecido de instituições e práticas políticas marcadas pela conciliação de atores supostamente antagônicos. No Brasil, cansamos de ver, a despeito de alternâncias democráticas de poder, as mesmas caras em sucessivos governos.
É verdade que, ao associar-se ao Centrão e esvaziar a Lava Jato, Bosonaro sugere uma acomodação à ordem corrupta que ele prometia combater. Mas isso não parece importar. Ele segue sendo o que de mais diferente o sistema político produziu nos últimos anos. O principal instrumento, não da burguesia, mas dos governados para mudar alguma coisa que já não funciona.
O bolsonarismo é maior que Bolsonaro. Não faltam lideranças para assumir o espírito de insurgência que ele conseguiu representar. Basta ver a popularidade instantânea de manifestações recheadas de indignação e ofensas às elites vindas de meros desconhecidos. Como é o caso do deputado federal por Minas Gerais André Janones, último fenômeno das redes.
O Queiroz, infelizmente, não vai matar o movimento que melhor encarnou a desconfiança e a vontade disruptiva de superar uma ordem que se esgota a cada dia. E o fez não simplesmente em função de seu espírito reacionário e violento, mais ou menos afeito a uma cultura preconceituosa e autoritária. Mas porque se propôs a entender e se comunicar com os sentimentos das pessoas comuns. Aquelas que, segundo o filósofo Jacques Rancière, não têm nenhum título específico que lhes outorgue o direito de governar. Coisa que a esquerda que se reivindica representante dos interesses dessas mesmas pessoas não vem fazendo.
Como ilustração, poderíamos tomar a postura humana, prudente e racional de personalidades e organizações progressistas brasileiras durante a pandemia do coronavírus. Frente aos absurdos cotidianos de Bolsonaro, optou-se pela alternativa mais distante possível. A saber, o confinamento mais rigoroso, a obsessão mais ardente com o uso das máscaras, o controle muitas vezes moralista dos outros. Outros, via de regra, trabalhadores que não podiam, ou não queriam, ficar em casa, usar máscara e se privar de menores ou maiores prazeres. A realidade se impôs. E boa parte da esquerda preferiu combatê-la.
Por fim, a relação entre a esquerda e o povo não foi, não é e nunca será automática. Se em momentos de crise como a que vivemos a primeira esperar que o último alcance seus bons princípios, a imprudência reacionária de movimentos como o bolsonarista vai até ele e ainda é capaz de lhe oferecer algum conforto simbólico e até material.
Não se trata de pregar um voluntarismo esquerdista e pretensamente revolucionário. Trata-se apenas de atentar para o fato de que deixar as massas para a extrema-direita e cerrar fileiras com a classe média esclarecida é, sim, uma escolha.
Philippe Scerb é mestre pela Sciences Po Paris e doutorando em Ciência Política pela USP.