As primeiras fissuras na fortaleza do livre-comércio
Esta era uma das grandes promessas de Donald Trump: se eleito, ele partiria em pedaços o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) e o substituiria por um novo tratado. Divulgado em setembro, o texto renegociado tem recuos preocupantes, mas também muitos avanços sociais. É, assim, um primeiro golpe na ordem comercial internacional
Após treze meses de negociações, uma versão revista do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade Agreement, Nafta) foi publicada em 30 de setembro de 2018.1 Não há nenhuma grande surpresa para ninguém: os governos do norte-americano Donald Trump, do canadense Justin Trudeau e do mexicano Enrique Peña Nieto não romperam com o modelo comercial que prevalecia desde o início dos anos 1990, favorecendo as empresas em detrimento das populações. O novo texto, no entanto, contém diversos avanços significativos que, se ratificados pelo Congresso em 2019, poderão pôr fim a alguns prejuízos graves e persistentes causados pelo antigo tratado a milhões de cidadãos da América do Norte.2 Para aqueles que, além dos sindicalistas e ecologistas, combatem o livre-comércio há um quarto de século, isso já seria uma grande vitória, cujas consequências se estenderiam para bem além do subcontinente.
Assinado em 1992, o Nafta inaugurou um processo cínico: utilizar as negociações comerciais para conceder novos direitos e poderes aos investidores, favorecer algumas áreas em situação de monopólio, abolir normas sanitárias e medidas de proteção aos consumidores e ao ambiente etc. – em suma, intervir em territórios que pouco têm a ver com as trocas comerciais para vender o pacote à opinião pública sob o rótulo de “tratado de livre-comércio”.
Várias vezes imitado, esse modelo se disseminou por todos os continentes com outros nomes (“acordo de parceria econômica”, “acordo de parceria para o comércio e o investimento”…). Sua revisão pelos Estados Unidos emite um sinal ao resto do mundo. Ela reflete igualmente a nova postura dos partidos políticos norte-americanos em torno do problema do livre-comércio. Por muito tempo, os críticos mais virulentos vieram da esquerda, dos postos avançados da luta contra o Nafta original em 1994 ou da “batalha de Seattle” contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1999. A partir de agora, os golpes serão reverberados pelo campo republicano. Foi ele que sepultou a Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), ardentemente defendida por Barack Obama. E reformou o Nafta.
Uma invenção de Ronald Reagan
Para chegar à presidência, Trump explorou a fundo a cólera das classes populares contra o dumping social, as relocalizações (a transferência de indústrias para o exterior) e a desindustrialização. Adversário de longa data do Nafta, ele sempre fez uma leitura nacionalista desse tratado, bem distante das críticas progressistas formuladas por Bernie Sanders durante as primárias democratas de 2016. Segundo Trump, o Nafta, “o pior acordo já assinado” pelos norte-americanos – frase que emprega indiferentemente para todos os tratados que deseja questionar… –, só teria beneficiado os mexicanos ansiosos por explorar a fraqueza dos Estados Unidos. Ouvindo-o, seria de crer que o México pretende prejudicar os trabalhadores norte-americanos. Nada mais falso. O Nafta foi uma invenção do presidente Ronald Reagan, que concluiu sua primeira versão em 1988 com o Tratado de Livre Comércio Estados Unidos-Canadá. O México entrou na dança graças ao presidente republicano George W. Bush, signatário do texto em 1992. E o democrata Bill Clinton não poupou esforços para vê-lo aprovado no Congresso.3 Contrariamente às afirmações de Trump, que visam lançar os trabalhadores do norte contra seus camaradas mexicanos, o Nafta é um acordo made in America, concebido como uma máquina de guerra que ameaça os assalariados dos dois países.
A nova designação do acordo – Tratado Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, na sigla em inglês) – não altera um dado fundamental: o texto continua inscrito no quadro que engloba os 163 membros da OMC, à qual pertencem os três países signatários. Contudo, em certos pontos importantes, ele se distingue de seus antecessores e poderia, assim, servir de ponto de apoio para influenciar as políticas comerciais em nível global. De início (e esta é uma aquisição importante), o mecanismo de Regulamentação das Disputas entre Investidores e Estados (RDIE), que permite às empresas processar, nos “tribunais de arbitragem”,4 os governos cujas decisões possam restringir seus lucros, vê seu campo de aplicação drasticamente reduzido. Esse mecanismo desaparece nas relações entre os Estados Unidos e o Canadá. Ottawa e os militantes ecologistas podem festejar: faz vinte anos que, com apenas uma exceção, todas as indenizações pagas a empresas em casos ligados ao ambiente decorrem de queixas de companhias norte-americanas contra as políticas públicas canadenses.5
Com relação ao México, o mecanismo de RDIE cede espaço a uma abordagem nova. Os grandes princípios que os governos deveriam garantir – igualdade de tratamento a empresas estrangeiras e nacionais, “segurança do investimento”, liberdade para a empresa transferir seu capital – desapareceram, assim como a menção ao “direito de investir”. Enquanto a regulamentação de litígios na versão Nafta permitia aos investidores contornar os tribunais nacionais apelando para árbitros, o novo dispositivo exige que eles e os Estados tentem primeiro acertar seus contenciosos diante de jurisdições e entidades administrativas dos países envolvidos. Só depois de esgotados todos os recursos locais, ou quando nenhuma decisão tiver sido tomada no prazo de 2,5 anos, é que os investidores poderão exigir indenizações perante um tribunal de arbitragem. E isso unicamente se a queixa contemplar o fato de “um investimento ser nacionalizado ou diretamente expropriado por uma transferência de título formal ou uma penhora pura e simples”. E também no caso de ações “discriminatórias” contra um investimento já feito. De resto, os investidores só receberão indenizações por prejuízos comprovados, excluindo-se os danos “intrinsecamente especulativos”. É uma maneira de acabar com as indenizações astronômicas pagas no passado para compensar a suposta perda de lucros futuros.
Em vista dessas medidas, o lobby patronal norte-americano Business Roundtable, o think tank ultraliberal American Enterprise Institute e o comitê editorial do Wall Street Journal consideraram o novo texto “pior” que o antigo.6 Há, contudo, uma falha: um dispositivo destinado a proteger as nove empresas norte-americanas que partilharam treze contratos durante a privatização parcial do setor de petróleo e gás pelo governo de Peña Nieto. Está previsto que as transnacionais continuarão protegidas pelo dispositivo de RDIE caso o México preserve outros acordos comerciais que permitam esse mecanismo.
Afora essa reserva, o golpe desfechado contra os tribunais de arbitragem significa um recuo significativo do poder dos investidores diante dos Estados. Como o golpe vem de um governo particularmente devotado às empresas – e isso se vê pelos substanciais cortes de impostos que Trump lhes concedeu –, os futuros presidentes dificilmente poderão dar um passo atrás. E os numerosos países que procuram, há anos, escapar ao regime de RDIE encontrarão aí uma fonte de inspiração.
Entretanto, nada impede de fato que as transnacionais norte-americanas continuem a transferir suas fábricas, a pagar aos mexicanos salários de miséria ou a se livrar de seu lixo tóxico na natureza. Para evitar isso, seria necessário que o acordo contivesse regras sociais e ambientais sólidas, aplicáveis rapidamente e sem contestação possível. Não é o caso. Embora algumas normas tenham sido aprimoradas – o Comitê Consultivo do Trabalho, composto por sindicatos, acena com progressos “modestos, mas significativos”7 –, os instrumentos para aplicá-las não existem ou permanecem vagos.
O USMCA incorpora sobretudo novas garantias nas áreas do direito de greve, bem como nos casos de violência contra sindicalistas e trabalhadores imigrantes. Ao passo que as normas sociais e ambientais figuravam em anexos do Nafta e não tinham nenhum caráter coercitivo, agora elas aparecem no corpo do texto – o que lhes atribui, teoricamente, esse caráter –, como sucede em todos os acordos assinados pelos Estados Unidos a partir de 2007. Todavia, a existência de mecanismos de coerção, embora necessária, não basta. Passados dez anos, as administrações democratas e republicanas jamais utilizaram esses instrumentos, que, no entanto, estão à sua disposição, nem mesmo para as violações mais flagrantes das normas do trabalho e do ambiente. Os sindicatos buscam atualmente uma maneira de fazer que as autoridades respeitem essas obrigações. Contra todas as expectativas, têm por aliado o representante norte-americano do comércio, Robert Lightizer, um republicano conservador conhecido por suas críticas vigorosas ao Nafta.
Diferentemente dos sindicatos, que tentaram influir nas negociações, os militantes ecologistas em grande parte se omitiram. Como Trump deixou bem claro seu desinteresse pelo assunto, eles sabiam que suas tentativas estavam fadadas ao fracasso. Um presidente cético quanto aos problemas climáticos não iria dar ouvidos a exigências que o próprio Obama rejeitou durante as negociações da Parceria Transpacífica: tornar o Acordo de Paris obrigatório, taxar os produtos importados em função das emissões de gases do efeito estufa… E não se enganaram.
O novo tratado não menciona em parte alguma a mudança climática, omissão notável num momento em que esse assunto inflama o debate público. Segundo o modelo da Parceria Transpacífica e contrariamente ao que os democratas eleitos haviam obtido nos quatro últimos acordos assinados por George W. Bush, o USMCA não exige que os Estados envolvidos adotem, preservem ou apliquem as leis nacionais de conformidade com os sete principais acordos multilaterais sobre o ambiente. Só se evoca a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção; quanto às novas cláusulas sobre a matéria, elas impõem pouquíssimas obrigações reais.
Os raros progressos no campo ecológico se explicam menos pela vontade de proteger o planeta do que pela ânsia de restaurar uma forma de soberania. Assim, os dispositivos do Nafta que obrigavam os Estados a exportar seus recursos naturais, ainda quando eles se empenhassem em conservá-los, foram eliminados. Diga-se o mesmo da obrigação de propor um livre acesso às redes de estradas da América do Norte a todos os veículos pesados mexicanos, norte-americanos e canadenses, sem considerações pela segurança e o ambiente. No curso dos anos 2000, os Estados Unidos tentaram limitar o acesso a seu território de caminhões emplacados no México. Um tribunal do Nafta tinha então autorizado o México a adotar medidas de retaliação, sob a forma de direitos alfandegários sobre US$ 2,4 bilhões em exportações norte-americanas.8 O acordo renegociado restaura o direito dos países de definir regras concernentes ao acesso às suas estradas.
É sem dúvida no campo do trabalho, porém, que o novo texto se mostra mais inovador. Uma cláusula subordina o acesso às vantagens do tratado comercial a exigências em matéria de remuneração dos assalariados: para que veículos entrem no mercado automobilístico norte-americano, 45% de seu valor deverá ser produzido por operários que recebam ao menos US$ 16 por hora. De modo geral, 75% do valor dos veículos terá de ser produzido na América do Norte – o Nafta previa 62,5%, e a Parceria Transpacífica, 45%. À falta de dados disponíveis, não sabemos se, nem em que medida, esses critérios provocarão aumentos salariais ou relocação de produção, nem se a cadeia de abastecimento será afetada. Seja como for, o Comitê Consultivo do Trabalho julgou que essas medidas poderiam incrementar a produção e o emprego. Mas, sobretudo, é preciso levar em conta que pela primeira vez, como pedem os sindicatos há muito tempo, os salários obedecem a “regras de origem” às quais as mercadorias precisam se conformar a fim de ser dispensadas dos direitos alfandegários.
Afora esses avanços e alguns outros, o novo tratado retoma vários dispositivos do Nafta. Repete muitas regras pouco equitativas em vigor na OMC, às vezes agravando-as, principalmente na esfera da proteção aos consumidores. A poderosíssima indústria agroalimentar conseguiu inscrever suas principais exigências, exceto uma, combatida por uma enérgica contraofensiva das associações: impedir os Estados de advertir os cidadãos do excesso de açúcar em alguns produtos. Poderíamos igualmente mencionar os direitos de monopólio concedidos aos laboratórios farmacêuticos (ver na próxima página) ou as novas regras para o “comércio digital”, que, entre outros problemas, proíbem os Estados de exigir armazenamento local de dados. Essas regras poderiam anular quaisquer esforços dos poderes públicos para proteger a vida privada e a segurança dos cidadãos. Além disso, as medidas sobre o copyright exigem que o Canadá prorrogue por vinte anos a duração atualmente prevista.
Mistura de medidas audaciosas e defesa do status quo, o USMCA será discutido pelo Congresso norte-americano em 2019 e sua versão atual pode sofrer emendas. Uma eventual vitória dos democratas para o Senado ou a Câmara, nas eleições de meio de mandato em 6 de novembro, lhes daria a oportunidade de impor condições antes de apoiar o texto. Poderiam, assim, tentar reparar suas falhas mais gritantes. Em todo caso, deveriam ocupar-se de melhorar certas normas sociais, introduzir cláusulas salariais e neutralizar os tribunais de arbitragem: essas aquisições serviriam de base a futuras campanhas, não apenas na América do Norte.
Desse ponto de vista, opor-se por reflexo pavloviano a todas as aquisições da renegociação alegando que ela ocorreu durante a presidência de Trump constituiria um erro político. Isso tranquilizaria os partidários do status quo neoliberal, que põem no mesmo saco a saída isolacionista do Acordo de Paris sobre o clima e a oposição ao livre-mercado. E fortaleceria também a ideia segundo a qual a defesa do Nafta é a única solução para o nacionalismo econômico de Trump, o que comprometeria 25 anos de trabalho dos militantes progressistas e sindicais. Jamais o modelo comercial erigido no início dos anos 1990 foi tão vulnerável. É hora de aplicar-lhe o golpe de misericórdia.
*Lori Wallach é diretora do Public Citizen’s Global Trade Watch, Washington, DC.