As raízes econômicas da crise ucraniana
Eleito em 25 de maio para a presidência da Ucrânia, o oligarca Petro Porochenko deverá dar uma resposta às tentações separatistas das regiões russófonas, assumindo as consequências sociais do programa concebido pelo FMI.
É possível ver na crise política ucraniana o desfecho dramático de uma trajetória financeira que se tornou insustentável ao longo dos últimos meses de 2013. Em julho de 2010, o governo assinava um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em troca do empréstimo de US$ 15,5 bilhões, ele se comprometia principalmente a elevar a idade de aposentadoria de 55 para 60 anos – ao passo que a expectativa de vida permanece dez anos inferior à europeia – e a dobrar os preços internos da energia. Seis meses depois, o acordo era interrompido: o governo recusava-se a aumentar as tarifas do gás.
O país lançou-se então numa estratégia. A atividade econômica passava a ser sustentada apenas pelo consumo dos lares, alimentado pelo endividamento privado, e por uma alta das despesas sociais destinada a acalmar os descontentamentos (+16% em 2012). Presa em produções de fraco valor agregado, apesar das alternâncias políticas, a economia ucraniana sofre com a ausência de uma verdadeira consolidação institucional desde o fim da URSS. Mais de vinte anos depois, o país ainda não reencontrou o nível de produção que havia atingido na época soviética. A evasão fiscal, a corrupção e a predação prevalecem até nas mais altas esferas do Estado. Os setores informais teriam um peso entre 25% e 55% do PIB. Os dois desequilíbrios recorrentes da economia, o orçamento e as contas externas, não cessam de se ampliar, em meio ao endividamento em moeda estrangeira.
No outono europeu de 2013, o governo já sabia que US$ 3 bilhões deveriam ser imediatamente encontrados para fazer frente aos prazos de vencimento de 2014, ao que se juntava 1 bilhão de obrigações em euros. Além disso, a Naftogaz, operador público do gás do país, acumulava mais de US$ 3 bilhões em dívidas com seu fornecedor russo Gazprom. Até então, a inflação se mantinha fraca, em razão da atonia do crescimento, de uma política monetária restritiva e de boas safras. Mas o sistema financeiro permanecia frágil, e se intensificaram as pressões sobre a moeda nacional, a hryvnia, cuja taxa de câmbio vinha sendo superavaliada havia meses. Como na Rússia em 1998, antes da quebra da Bolsa, um muro do dinheiro começava a se formar diante da Ucrânia.
Esnobada e reviravolta
No final de outubro de 2013, uma missão do FMI foi enviada a Kiev. Ela impôs condições: ou o governo deixava a hryvnia flutuar, reduzia suas despesas, aumentava “imediata e significativamente os preços do gás e do aquecimento para as residências e adotava um calendário para as altas suplementares até que os custos fossem cobertos”,1 ou o programa de ajuda não seria assinado, privando a Ucrânia de US$ 10 bilhões a US$ 15 bilhões em divisas. A Comissão Europeia anunciou que adiantaria US$ 840 milhões adicionais em caso de acordo com o FMI.
As consequências potenciais de um aumento brutal dos preços da energia, tanto para a população como para a indústria do Donbass, podiam fazer o presidente ucraniano hesitar. Na mesma semana, ele encontrou o presidente russo, Vladimir Putin, em Sochi. Sem dúvida, eles já estavam discutindo uma solução alternativa àquela do FMI. Em 21 de novembro de 2013, Viktor Yanukovich suspendeu a assinatura do acordo de associação com a União Europeia.2 Essa reviravolta deu origem às manifestações em Maidan, a Praça da Independência de Kiev.
As linhas gerais da proposta russa só foram reveladas em 17 de dezembro, num movimento tático de Putin para retomar o controle. Seu plano previa um empréstimo de US$ 15 bilhões, uma redução de um terço no preço do gás vendido a seu vizinho e relaxamentos em relação à dívida da Naftogazcom a Gazprom, tudo isso incondicionalmente. Foi uma forma de esnobar o FMI e a União Europeia. Mas, após a derrubada do poder e a saída de Yanukovich, em 22 de fevereiro, os novos dirigentes ucranianos se voltaram para o FMI…
Essa versatilidade só pode ser compreendida quando se observa a inserção internacional da economia ucraniana a longo prazo. Para a Europa e a Ásia, ela exporta suas matérias-primas e seus produtos semiacabados; para a Rússia, seus produtos processados. No final dos anos 2000, dois projetos de integração regional tomaram forma e conduziram o país a um dilema: associação com a União Europeia ou união aduaneira com a Rússia? Os termos dessa escolha forçada ignoram a coesão econômica e social da Ucrânia, terço excluído dessa lógica binária.
Desde maio de 2009, a União Europeia propôs uma parceria à Ucrânia, à Bielorrússia, à Moldávia, à Armênia, à Geórgia e ao Azerbaijão. A oferta não se estendeu à Rússia, com a qual as negociações de parceria estratégica estavam estagnadas desde a “guerra do gás” de 2006. Para a Ucrânia, a reaproximação passa pela assinatura do Acordo de Livre-Comércio Completo e Aprofundado (Aleca).
Putin reagiu ressuscitando um antigo projeto de integração dos países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) – que agrupa ex-repúblicas soviéticas –, tendo em mente uma união euro-asiática.3 Seu plano progrediu rapidamente: desde 2010, a Rússia, o Cazaquistão e a Bielorrússia proclamaram a entrada em vigor da União Aduaneira. E a importância da Rússia em suas trocas exteriores (perto de 30%) é algo que a Ucrânia não podia ignorar. Em outubro de 2011, Yanukovich assinou o tratado de livre-comércio intra-CEI. Ele propôs em seguida uma configuração “3+1” aos países da União Aduaneira, mas continuou a dar prioridade ao Aleca. Essa valsa hesitante irritou os dirigentes russos, que rejeitaram sua contraproposta.4
Em 2013, a pressão aumentou em todas as partes. A Rússia desenvolveu uma retórica anti-Aleca. Segundo Serguei Glaziev, conselheiro do presidente Putin, a assinatura do acordo com a União Europeia seria um ato “suicida”, que acabaria por “matar a balança comercialucraniana”.5Com uma reação protecionista à União Aduaneira mostrando-se “inevitável”, as exportações para a Rússia de produtos agroalimentares e de bens de equipamento (ou seja, 50% do total) despencariam. Glaziev afirma: “A primeira opção [a União Aduaneira] vai assegurar as condições necessárias ao desenvolvimento sustentável da economia ucraniana e melhorar suas estruturas; a segunda [o Aleca] vai provocar sua degradação e sua bancarrota”.6
Os argumentos desse oráculo são tão frágeis quanto poderoso é seu eco na Rússia. O Kremlin alia o gesto à palavra: doces ucranianos (aqueles da empresa Roshen, que pertence a Petro Porochenko, eleito presidente em maio de 2014) e em seguida outros produtos foram declarados perigosos para a saúde dos russos. Os bloqueios aduaneiros que se seguiram asfixiaram os exportadores ucranianos.
De seu lado, os responsáveis pela União Europeia cantavam regularmente louvores ao livre-comércio e ao Aleca. Desde 2007, um relatório encomendado pela Comissão Europeia concluía oportunamente que “a abertura do mercado combinada à melhora da governança doméstica poderia conduzir a Ucrânia a um crescimento de dois dígitos”.7 Stefan Füle, comissário europeu para a política de vizinhança, prometeu aos ucranianos seis pontos anuais de crescimento suplementares em casos de associação com a União Europeia. Mas essas estimativas repousam sobre modelos cujas hipóteses,8 nunca questionadas, têm apenas uma ligação muito distante com as condições de funcionamento da economia do país.
O risco de um efeito dominó
O que pensam a esse respeito os empresários influentes na Ucrânia? Tal como a população, eles estão divididos. Desde 2013, os trabalhos do Instituto Polonês de Assuntos Internacionais preveem que os principais beneficiários do Aleca serão Porochenko, Andriy Verevskiy – cujo grupo Kernel exporta para a União Europeia – e Yuri Kosyuk,gigante do ramo de criação de aves, com a Mironivsky Hliboprodukt. Os perdedores seriam os oligarcas mais próximos de Yanukovich. Seu filho, Olexandr Yanukovich, Rinat Akhmetov e Dimitry Firtash conseguiam então 40% dos contratos com o regime. Sua renda política seria ameaçada pelas regras do Aleca.9
Difícil não ver, por trás da pobreza dos argumentos usados por uma e outra parte, a questão normativa desses projetos de integração. Em 2009, um de seus promotores mais zelosos, o ministro das Relações Exteriores sueco, Carl Bildt, destacava o interesse do Aleca, bem além de um simples acordo de livre-comércio: “Nós estendemos toda a legislação sobre energia e concorrência à Ucrânia, Moldávia e Sérvia, e isso provoca transformações totalmente fundamentais a longo prazo”.10
Ao exportar suas instituições, a União Europeia marca presença na concorrência por e para as normas, questão maior da globalização. De seu lado, a Rússia herdou um sistema normativo oriundo da URSS, que, cheio de lacunas, envelhecido e pesado, enquadra ainda as relações econômicas entre os países da CEI. Tendo em mente o contágio que provoca sua difusão, uma penetração das normas europeias na Ucrânia criaria o risco de envolver o conjunto pós-soviético em um efeito de dominó. A reação da Rússia tem a ver, portanto, com a luta pela sobrevivência de um sistema sobre o qual seu complexo militar-industrial ainda se apoia amplamente.
Os enfrentamentos agravaram a crise econômica em 2014. Ao mobilizar US$ 27 bilhões de empréstimo, dos quais US$ 17 bilhões adiantados em dois anos pelo FMI, o acordo assinado em maio deixa a economia respirando por aparelhos. Ainda que o ajuste seja mais progressivo11 que aquele negociado em outubro de 2013, ele iria provocar a partir de 2014 uma alta de cerca de 50% dos preços da energia e uma retomada da inflação, enquanto as relações com a Rússia ficariam sob ameaça de uma nova escalada protecionista. Por falta de um impulso orçamentário e apesar da depreciação da hryvnia, que limita a pressão da concorrência, a queda do PIB deveria atingir 5%. Pode-se prever o aumento dos movimentos sociais, particularmente no sul e no leste industriais, onde eles vão se misturar aos conflitos separatistas em curso.
Vencedor no primeiro turno da eleição presidencial, Porochenko adquiriu uma legitimidade que faltava ao governo provisório. Mas sua equipe deve lidar com desafios consideráveis. A curto prazo, é preciso reconstruir a credibilidade do Estado para ajudar a economia a sair da lógica da pilhagem,12 controlando ao mesmo tempo a viabilidade das contas externas. A longo prazo, é preciso reestruturar o sistema financeiro. É necessário converter uma das economias mais perdulárias do mundo (dez vezes mais energia consumida por unidade do PIB que nos países avançados) a um modo de desenvolvimento que coloca a eficiência energética e a tendência a uma melhora da qualidade das produções no coração do investimento.
Para atingir esses objetivos, importa conceder à Ucrânia o tempo necessário ao ajuste, mas também revitalizar suas relações com a Rússia. Sua inspiração institucional é agora europeia, mas sua orientação econômica deve permanecer multipolar: as trocas com a Rússia podem ajudar o país a sair do problema.
Julien Salingue é doutor em Ciência Política.
1 FMI, comunicado de imprensa n. 13/419, Washington, 31 out. 2013.
2 Ler Sébastien Gobert, “L’Ukraine se dérobe à l’orbite européenne” [A Ucrânia se afasta da órbita europeia], Le Monde Diplomatique, dez. 2013.
3 Ler Jean Radvanyi, “Moscou entre jeux d’influence et démonstration de force” [Moscou entre jogos de influência e demonstração de força], Le Monde Diplomatique, maio 2014.
4 “Convergences et divergences dans l’espace eurasiatique. Panorama économique” [Convergências e divergências no espaço eurasiático. Panorama econômico], em Jean-Pierre Pagé (org.), Tableau de bord des pays d’Europe centrale et orientale [Painel de avaliação dos países da Europa central e oriental], Les Études du CERI, n.202, Paris, dez. 2013.
5 “Russia weighing tougher Ukraine sanctions” [Rússia jogando mais duro com as sanções à Ucrânia], Ukrainian Journal, Kiev, 18 ago. 2013.
6 Serguei Glaziev, “Who stands to win? Political and economic factors in regional integration” [Quem fica para ganhar? Fatores políticos e econômicos em integração regional], Russia in Global Affairs, Moscou, 27 dez. 2013.
7 “Trade sustainability impact assessment of the free trade area in the framework of the enhanced agreement between the EU and Ukraine. Report for the European Commission, Directorate General for Trade” [Avaliação do impacto da sustentabilidade comercial da área de livre-comércio no âmbito do acordo realizado entre a UE e a Ucrânia. Relatório para a Comissão Europeia, Diretório Geral do Comércio”], Ecorys – Case, Roterdã, 5 abr. 2007.
8 A saber: todos os agentes têm a mesma racionalidade; todos os mercados são perfeitamente concorrenciais; todas as empresas funcionam em sua plena capacidade de produção; os fatores de produção são perfeitamente substituíveis; os desequilíbrios externos são imediatamente corrigidos.
9 Piotr Koscinski e Ievgen Vorobiov, “Do oligarchs in Ukraine gain or lose with an EU association agreement ?” [Os oligarcas na Ucrânia ganham ou perdem com um acordo de associação com a UE?], Pism Bulletin, n. 86 (539), Varsóvia, 19 ago. 2013.
10 “Address by H. E. Carl Bildt, the Swedish foreign minister, after receiving the inaugural Bela Foundation Award” [Discurso de H. E. Carl Bildt, ministro das Relações Exteriores sueco, depois de receber o inaugural Prêmio da Fundação Bela], The Bela Foundation, Bruxelas, 9 dez. 2009. Disponível em: .
11 “Ukraine”, IMF Country Report, n. 14/106, FMI, maio 2014.
12 Ler Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin, “Ukraine, d’une oligarchie à l’autre” [Ucrânia, de uma oligarquia a outra], Le Monde Diplomatique, abr. 2014.