As razões do elevado número de infecções e mortes por Covid-19 no Brasil
Embora os 210 milhões de habitantes do Brasil signifiquem hoje cerca de 2.5% da população mundial, nada menos que 11% das mortes por Covid-19 ocorridas em todo o planeta foram registradas aqui.
Durante os “Encontros Malraux” realizados em Brasília em 1997 homenageando o autor de “A condição humana” (1933) e Ministro da Cultura do governo Charles De Gaulle (1959-1969), um dos conferencistas do evento – o francês Jacques Rigaud – manifestou o seguinte: “Nós marcamos um encontro com o Brasil e o Brasil faltou… outros chegaram. Nossa geração, nascida nos anos 1930, acostumou-se à ideia de que a América Latina e o Brasil eram a terra do futuro… amávamos tudo aqui. Mas o encontro não foi possível. Nós vos esperamos no Século XXI”[1].
Depois de passar este início de século por governos exitosos, com o Brasil ascendendo à sexta posição entre as principais economias mundiais e saindo estatisticamente do mapa mundial da fome, após o Golpe de Estado de 2016 o país passou a enfrentar um paradoxo ético insustentável. Ao mesmo tempo em que, entre outros avanços, foi aqui criada a tecnologia internacional mais avançada para extração de petróleo de águas profundas e igualmente se logrou alcançar uma das mais expressivas reversões mundiais da mortalidade infantil com base no seu sistema público universal de acesso à saúde aliado a um programa nacional permanente de vacinação, hoje o país convive, paradoxalmente, com um governo que nega a ciência.
Tal postura impactou diretamente no elevado número de pessoas infectadas pela Covid-19 (mais de 30 milhões de pessoas) e de mortes (665 mil em maio de 2022), que tornaram o Brasil o segundo país do planeta com o maior número de mortes consequentes à pandemia, logo atrás dos Estados Unidos. Embora os 210 milhões de habitantes do país signifiquem hoje cerca de 2.5% da população mundial, nada menos que 11% das mortes por Covid-19 ocorridas em todo o planeta foram nele registradas (2). Comprovando a sombria constatação feita por Rigaud há 25 anos, é exatamente sobre esta situação que se vai aqui tratar.
Entre um incontável número de erros, omissões e malfeitos, três grandes razões foram causadoras da catástrofe: 1) A propositada ausência de uma política nacional coordenada de combate e controle à pandemia; 2) A politização e o atraso deliberado na compra de vacinas, quando estas já estavam disponíveis no mercado internacional; 3) A insistência do governo em estabelecer como política pública nacional um esdrúxulo “tratamento precoce” para presumível controle ao problema, por meio do uso de medicamentos como a cloroquina/hidroxicloroquina (um medicamento antimalária) e a ivermectina (um antiparasitário), entre outros, ineficazes segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) na luta contra a Covid.
Como consequência, instalou-se um quadro de extrema emergência sanitária que escancarou a caótica situação político-social que o país atravessa até hoje, permeada pela completa ausência de campanhas públicas sistematizadas de informação à população em âmbito nacional. Todo esse quadro foi acrescido por criminosa e permanente produção de mentiras (fake news) que geraram desinformação, dúvidas e insegurança entre as pessoas que, confusas e fragilizadas, ficaram à mercê de grupos médicos gananciosos, políticos mal intencionados, religiosos corruptos e militares inescrupulosos com acesso ao poder.
Com relação à primeira causa acima mencionada, entre a chegada da pandemia ao país no início de 2020 até maio de 2022, nada menos que quatro ministros se revezaram à frente da pasta da Saúde. O primeiro, um médico ortopedista e ex-deputado governista que durante seus mandatos legislativos notabilizou-se por atacar permanentemente o Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), defendendo a aplicação dos valiosos e já escassos recursos financeiros públicos para os planos privados de saúde. A pressão do governo Bolsonaro foi tanta que mesmo sendo seu apoiador político de primeira hora, acabou abandonando o cargo com críticas por não aceitar as medidas que lhe estavam sendo impostas.
O segundo, um médico oncologista ligado à iniciativa hospitalar privada do Rio de Janeiro, se demitiu do cargo com menos de um mês de exercício, entre perplexo e assustado com a inusitada intervenção política e anticientífica que constatou no Ministério, exercida diretamente por obscuros assessores do Presidente da República, muitos deles oriundos de setores militares e empresariais, completamente alheios à área.
O terceiro foi um general da ativa do exército e especialista em almoxarifado e armazenamento, que resultou no principal condutor do caos sanitário que se instalou no Brasil, obedecendo cegamente às ordens presidenciais vindas de um verdadeiro ministério paralelo da saúde criado secretamente por Bolsonaro para definir os rumos ideológicos negacionistas que desejava imprimir no combate à pandemia. O referido militar teve que ser demitido quando uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) estabelecida no Congresso Nacional e composta por senadores desvendou negociatas criminosas sob seu comando com relação à compra de vacinas de fornecedores inidôneos[2].
O quarto ministro, que segue até os dias atuais obedecendo cegamente às ordens presidenciais em meio à grave crise sanitária instalada, é um médico cardiologista que tem registrado em seu currículo Lattes ser – desde 2010 – aluno de um obscuro programa de doutorado em bioética oferecido pelo Conselho Federal de Medicina (autarquia pública reconhecidamente apoiadora do atual governo) em parceria com a Universidade do Porto, Portugal, programa sequer reconhecido pelos organismos oficiais da área de educação superior do país.

Durante todo este período, jamais houve interesse do governo em organizar um plano Nacional de Controle da Pandemia, deixando aos 26 estados e Distrito Federal, com mais de 5.600 municípios, a responsabilidade pelo planejamento, organização e execução das ações sanitárias, sem um comando nacional unificado. Por outro lado, o caos administrativo instalado no Ministério da Saúde fez com que – depois de fortes pressões populares e da mídia, pois recursos para isso nunca faltaram – a distribuição das vacinas, medicamentos e insumos hospitalares começasse a chegar às cinco regiões do país, mesmo que em número muitas vezes insuficiente e com especificações farmacológicas equivocadas.
Com relação ao segundo ponto – o atraso deliberado na aquisição e distribuição das vacinas – o panorama ficou claro para a opinião pública nacional com o desenvolvimento da CPI legislativa já mencionada que denunciou que a compra de vacinas havia sido, além de corrompida e superprecificada, protelada ao máximo. Neste episódio, principalmente pastores ligados a igrejas evangélicas pentecostais seguidoras do presidente, juntamente com pseudocomerciantes e alguns militares, criaram empresas-fantasma que negociavam a compra de vários milhões de doses especialmente de vacinas indianas cuja qualidade e segurança sequer tinham sido aprovadas na época pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), organismo regulador da área no país[3].
Na referida CPI ficou comprovado que o governo assinou um contrato de compra da vacina Covaxin com a empresa farmacêutica indiana Bharat Biotech, intermediada por uma dessas empresas temporárias e denominada “Precisa Medicamentos”, por um preço cerca de 1000% mais caro que o oferecido seis meses antes[4]. Na mesma ocasião um ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde pediu aos vendedores a propina de um dólar por dose; a compra atingia cerca de 20 milhões de doses… O deputado governista Luis Miranda, que descobriu a falcatrua, informou à CPI que fez a denúncia diretamente ao presidente Bolsonaro, que não tomou nenhuma providência. As referidas denúncias feitas à Comissão impediram que os negócios fossem realizados.
Por outro lado, os dois grandes laboratórios nacionais produtores de insumos e vacinas – a Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro (de âmbito federal) e o Instituto Butantan de São Paulo (de âmbito estadual, onde o governador João Doria é atualmente opositor do governo federal…) – tiveram suas ações permanentemente prejudicadas por manobras políticas protelatórias. Enquanto as doses pioneiras de vacina começaram a ser distribuídas no Reino Unido em novembro de 2020 (Astrazêneca), as primeiras vacinas CoronaVac chinesas chegaram ao Brasil produzidas no Instituto Butantan somente três meses depois, no final de fevereiro de 2021, após superação de toda sorte de óbices apresentados pelo governo. Além das razões meramente políticas, a causa principal do atraso foi a permanente campanha pública antivacina comandada por Bolsonaro, que jamais aceitou sequer ser vacinado, com o objetivo de “servir de exemplo” aos seus fanáticos seguidores.
O terceiro ponto deste breve relato se refere a permanente defesa do governo ao uso padronizado em todo território nacional do mundialmente contraindicado “tratamento precoce” da Covid-19. A população brasileira foi bombardeada diariamente durante toda a pandemia, especialmente por meio das mídias sociais, por propaganda enganosa com relação aos “efeitos miraculosos” dos inócuos medicamentos já acima mencionados. Tal campanha expandiu pelo país todo, causando dois efeitos devastadores: o rechaço por expressiva parte da população às vacinas que começavam a chegar; e a demora dos pacientes em buscar atenção médica adequada nos períodos iniciais da doença. A revista “Bioética”, publicação científica oficial do CFM e estranhamente bem classificada como A2 pela Capes/MEC, em sua edição de outubro-dezembro 2021 abre seu número com um artigo que tem por título “Análise da pandemia e considerações bioéticas sobre o tratamento precoce” de autoria dos médicos Hélio Angotti e Mayra Pinheiro (que ficou conhecida nacionalmente como “capitã Cloroquina”), ambos ocupantes de altos cargos no Ministério da Saúde na época[5].
No seu livro “Ética Prática”, Peter Singer escreveu sobre a obrigação ética de salvar vidas que estão em perigo, pois nessas situações não há diferença intrínseca entre matar e deixar morrer uma vez que o resultado final será fatalmente a morte, mesmo em situações em que é possível impedir que esta morte ocorra sem o sacrifício de algo que tenha igual importância moral[6]. Nessa linha, ele reforça que o dever moral possível de ser feito visando evitar algo de ruim – a exemplo da morte – refere-se também aos governos no sentido da obrigação destes em cumprir com suas responsabilidades. Se a omissão evitável for responsável pela morte de pessoas, para o autor tal ato negligente equivale moralmente a um assassinato. Segundo dados do epidemiologista Pedro Hallal, ex Reitor da Universidade Federal de Pelotas, o Brasil “teve 80% de mortes que poderiam não ter acontecido”[7]. Estas mais de 400 mil mortes evitáveis decorrentes da Covid-19, portanto, especialmente de pessoas negras e mais pobres[8], são de responsabilidade direta do governo brasileiro, que poderia ter impedido que muitas delas fossem evitadas, sem sacrificar nada de importância moral comparável.
Muitas mortes ocasionadas pela epidemia no Brasil, portanto, podem ser caracterizadas como mistanásia, uma variedade semântica da eutanásia. A mistanásia é a morte desnecessária, cruel, miserável, diferente do genocídio, que é direto, intencional, programado[9]. A morte miserável ocorre quando as pessoas são abandonadas, enganadas. E, desde o começo, o que aconteceu no Brasil foi um abandono completo da população, pela absoluta inexistência de uma condução nacional orgânica no combate à pandemia[10][11]. Cada estado e cada município teve que organizar-se por conta própria. Durante toda pandemia, foi completa a ausência de informações fidedignas, sem qualquer campanha pública de orientação à população, como a obrigatoriedade do uso de máscara, a utilização rotineira de álcool gel e lavagem das mãos, a adoção de cuidados preventivos de não aglutinação de pessoas, etc.
Para encerrar, não é demais deixar registrado o papel escandalosamente lucrativo assumido pelo chamado complexo farmacêutico-industrial internacional[12], também conhecido como “Big Pharma”, atualmente situado entre os setores econômicos mais poderosos e rentáveis do planeta, imediatamente atrás da indústria bélica e da produção de drogas ilícitas[13]. Se o custo de um determinado medicamento já é muitas vezes inalcançável para representativa parcela da população mundial, imaginem-se os custos financeiros cumulativos, dia após dia, para o indivíduo portador permanente de uma doença crônica como diabetes ou hipertensão… Ou, o que dizer das vacinas, quando se está tratando da obrigação pública de proporcionar atenção a enormes contingentes populacionais de verdadeiros “usuários compulsórios”, como os 210 milhões de brasileiros, reféns de complexas negociações comerciais que envolvem altíssimos custos? Especialmente em razão do custo líquido de uma dose de vacina não ultrapassar o valor de um dólar, com tanta acumulação econômica por parte de menos de uma dezena de nações poderosas e ricas do mundo, o acesso de todas as pessoas às vacinas deveria – definitivamente – ser um direito humano universal.
Se as coisas seguirem como estão no Brasil deste ano 2022, os pensadores franceses terão que esperar para o Século XXII a chegada da “terra do futuro”…
Volnei Garrafa é professor Emérito e fundador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília; foi membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco/Paris (2010-2017).
Referências
[1] Volnei Garrafa, “Biotecnologia, ética e controle social”, Cadernos de Ciência & Tecnologia (Embrapa-Brasília); v.17, n.2, p. 171-177, maio/agosto 2000.
[2] Miriam Leitão, “Corrupção no atual governo”, O Globo; Rio de Janeiro, 14/04/2022
Volnei Garrafa, “Vazio legal e práticas antidemocráticas tornam Brasil refém da indústria farmacêutica”; Entrevista ao jornalista João Vitor Santos, Revista IHU On-line; Instituto Humanitas, Unisinos; 10/11/2021. Acesso: http://www.ihu.unisinos.br[3]
[4] Bharat Biothech, “Fabricante da Covaxin, rescinde contrato com a ‘Precisa Medicamentos’¨”. São Paulo: CNN Brasil, 23/07/2021
[5] Hélio Angotti Neto e Mayra Isabel Correia Pinheiro, “Análise da pandemia e considerações bioética sobre o tratamento precoce”, Revista Bioética, Brasília, Conselho Federal de Medicina; v. 29, n.4, p. 677-687, out-dez. 2021.
[6] Peter Singer, “Ética Prática”. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002
[7] Pedro Hallal, ”Mortes por Covid têm a digital do presidente”. Disponível em: https://tutameia.jor.br/mortes-por-covid-tem-a-digital-do-presidente/
[8] Bianca Muniz, Bruno Fonseca e Rite Pina, “Covid-19: mortes de negros e pobres disparam”. Disponível em: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/covid-19-mortes-de-negros-e-pobres-disparam/>. Acesso em: 14 maio 2020
[9] Leonard L. Martin, “Eutanásia e Distanásia”. In: Sergio Ibiapina C. Costa, Gabriel Oselka e Volnei Garrafa (editores), “Iniciação à Bioética”. Brasília, Conselho Federal de Medicina, pág. 302, 1998
[10] Karla P. C. Amorim e Volnei Garrafa, “Un análisis ético duro de las muertes por covid-19 en Brasil”. Revista Redbioética/Unesco, v.11, n.2, p. 25-32, 2020
[11] Volnei Garrafa, “É caso de mistanásia”. Entrevista à jornalista Helena Nader; Revista Crusoé, 15/10/2021.
[12] Adam Taylor, “Vacunas: la línea dura de Pfizer en los contratos secretos con los gobiernos para “maximizar ganancias”. The Washington Post y La Nación; 20/10/2021.
[13] Volnei Garrafa e Claudio Lorenzo, “Moral Imperialism and multi-centric clinical trials in peripheral countries”, Cadernos de Saúde Pública (Fiocruz), v. 24, p. 2219-2226, 2008.