As relações Estados Unidos – Brasil e a pandemia da Covid-19
Como a relação histórica da política externa dos EUA para a América Latina se relaciona com o posicionamento brasileiro no que diz respeito à crise da Covid-19?
A ordem internacional liberal que se estabeleceu após 1945, com a liderança dos Estados Unidos[1], baseia-se em uma agenda que se expressa pela defesa da democracia representativa e pelo fortalecimento dos países na economia internacional, no marco da economia neoliberal.[2] Nesse debate, desde 1945, apesar de haver alterações entre multilateralismo e unilateralismo nas estratégias dos Estados Unidos quanto a sua política externa, essas não passam de mudanças táticas dentro do que concerne a grande estratégia do país: manter sua hegemonia regional e buscar a hegemonia no sistema internacional. Em relação a América Latina, especialmente na segunda metade do século XX, a região passou por ingerências da superpotência sobretudo quanto aos regimes políticos e sistemas econômicos, cujas consequências refletem-se nos posicionamentos e práticas dos países latino-americanos até o contexto político atual, em que a região sofre com a crise da Covid-19.
Em face deste cenário, questionamos: como a relação histórica da política externa dos EUA para a América Latina se relaciona com o posicionamento brasileiro no que diz respeito à crise da Covid-19? Considerando o período de março de 2020 até maio de 2021, atribuímos a inação do governo de Jair Bolsonaro como estratégica no que se refere ao enfrentamento da crise sanitária de Covid-19. Argumentamos que a inação do governo brasileiro representa, por um lado, a “doutrina do choque”, conceito da pesquisadora Naomi Klein, possibilitando a implementação de políticas neoliberais em larga escala enquanto a atenção está direcionada ao impacto da Covid-19 no país. Por outro lado, essa inação representa o consenso com a ordem liberal internacional e a histórica liderança estadunidense na região, expressa pelas posições internacionais brasileiras em relação à Covid-19 em alinhamento ao presidente estadunidense, Donald Trump, durante o período analisado.
Política externa estadunidense e América Latina
No que concerne a América Latina, a construção da hegemonia estadunidense historicamente deu-se pelo uso da força, atrelada, em especial nos últimos anos, ao consenso.[3] Especificamente a perda da região latino-americana para a liderança soviética no mundo bipolar (1945-1990) significaria a fraqueza dos EUA internacionalmente, visto o potencial da América Latina no período de ser base de ameaças não hemisféricas. Assim, a contenção do comunismo na América Latina se tornou o foco da política externa estadunidense durante esse período. Preocupados com a influência e ocupação do bloco soviético na região e atravessados pelos interesses de grandes corporações estadunidenses, esta política externa manifestou-se desconsiderando a agência latino-americana em relação aos seus regimes internos e posicionamentos internacionais em detrimento da garantia de uma estabilidade anticomunista.[4]
Na década de 1970, período em que as intervenções por parte dos EUA estavam mais aprofundadas, houve a ingerência estadunidense por meio, especialmente, da Central Intelligence Agency (CIA) para a “acolhida” forçada do neoliberalismo em muitos estados latino-americanos. Neste processo, com liderança estadunidense, o Chile foi a primeira experiência neoliberal no mundo, iniciada em 11 de setembro de 1973, com o golpe de estado de Augusto Pinochet ao governo de Salvador Allende, presidente socialista eleito democraticamente.[5]
O golpe e o governo de Pinochet foram apoiados pelos EUA e se apresentaram como uma amostra extrema do que Naomi Klein chama de “doutrina do choque”. Segundo a autora, Milton Friedman, o líder estadunidense do pensamento neoliberal, atuou como conselheiro do ditador chileno Pinochet. Friedman aconselhou uma reforma econômica bastante rápida com corte de impostos, livre comércio, serviços privatizados, corte nos investimentos sociais e desregulamentação “enquanto os chilenos se encontravam em estado de choque logo após o violento golpe de Estado […]; foi a estratégia mais extrema de apropriação capitalista jamais tentada em qualquer lugar”.[6]
O golpe no Chile, orquestrado e patrocinado pela CIA e por elites chilenas que se sentiam ameaçadas pelos ideais de igualdade social propostos por Allende, foi uma expressão das ingerências estadunidenses para manutenção de sua hegemonia na região[8]. Desde 1945, a história demonstra, mesmo em governos com posicionamentos políticos distintos, como Donald Trump (republicano) e Barack Obama (democrata) e com expressões de política externa, respectivamente, unilateral e multilateral, o cerne da grande estratégia estadunidense se manteve o mesmo: manter sua posição hegemônica e permanecer como a única potência extrarregional na América Latina[1].
Por esta razão, a análise do comportamento dos EUA no que diz respeito ao relacionamento com o Brasil está inevitavelmente inserida na condução das relações daquele país com a América Latina. Isto ocorre, pois, a despeito das distinções e especificidades dos países da região, quando se trata de segurança e política externa, os EUA tendem a observá-los de maneira homogênea, já que, de acordo com sua visão estratégica, nenhum dos estados latino-americanos apresenta oposição capaz de ameaçar sua posição dominante[10]. Nesse sentido, mesmo com a busca do Brasil por uma política externa dotada de alguma autonomia, em poucos momentos da história foi possível observar uma postura de recusa ao alinhamento com os EUA, algo que situou o país fora do escopo de pautas estratégicas da potência hegemônica, que, por sua vez, passou a considerar o gigante do sul como um parceiro na manutenção de sua esfera de influência regional[10].
A esse respeito, Pecequilo[11] destaca que períodos de alinhamento, como os anos do imediato pós-Guerra Fria e como o experienciado atualmente durante o governo Bolsonaro, especialmente na figura do ex-ministro de relações exteriores Ernesto Araújo, não tendem a gerar ganhos ou reconhecimento. Para a autora, é possível observar, a partir da história da política externa do Brasil, que posições que visaram maior autonomia e reposicionamento estratégico, como a barganha de Getúlio Vargas (1939-1945) ou a política externa de alto perfil de Lula (2003-2010), resultaram em maiores benefícios e capacidade de barganha[11].
No entanto, nos períodos recentes, observa-se o contrário: um alinhamento irrestrito e não calculado do Brasil com os EUA se apresenta no contexto da crise sanitária de Covid-19. No plano internacional, por exemplo, o alinhamento brasileiro se expressou de forma significativa a partir do ato discursivo de Trump de retirada do país da Organização Mundial da Saúde (OMS), sob o argumento de a instituição “reagir à Covid-19 de forma negligente e conivente com os interesses do regime chinês”[ii]. Alguns dias depois, Jair Bolsonaro acusou a instituição de trabalhar “com viés ideológico” em virtude de a OMS suspender os ensaios clínicos com hidroxicloroquina, decisão tomada pela avaliação de estudos de larga escala que descartaram a eficácia da substância[iii].

Ademais, a crise diplomática estabelecida com o estado chinês também permite observar a tentativa brasileira de alinhamento irrestrito com a ordem liberal liderada pelos EUA. Durante o ano de 2020, alguns episódios protagonizados pela família Bolsonaro, como os ataques públicos que classificavam a China como país “inimigo da liberdade” e a culpavam abertamente pela pandemia da Covid-19, provocaram um mal-estar nas relações com o país asiático[iv]. Além disso, o ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, insinuou em suas redes sociais que a China poderia se beneficiar da situação pandêmica, algo que reverberou imediatamente nas relações diplomáticas entre os países e levou a uma manifestação da embaixada chinesa no Brasil, que repreendeu de forma contundente as acusações consideradas difamatórias e alertou sobre a necessidade de colaboração internacional para superação da pandemia da Covid-19. A postura chinesa diante do estardalhaço diplomático provocado por indivíduos diretamente conectados à figura de Jair Bolsonaro demonstrou pragmatismo, ao contrário do que pode ser observado no Brasil, cujos líderes não mediram esforços no alinhamento político com Trump e sua conhecida aversão à China[v].
Por fim, outro exemplo do alinhamento da política externa brasileira com os EUA neste período deu-se no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Brasília atrasou as negociações na Organização, não apoiando a proposta de outros países do Sul Global como Índia e África do Sul, que reivindicavam a suspensão temporária global das patentes. Alinhado aos EUA, durante seis meses a posição brasileira foi contrária à liberação de patentes, o que levou ao posterior isolamento do país quando deu-se a mudança de posição dos EUA apoiando a liberação[vi]. Após essa mudança, o país latino-americano, por meio de nota conjunta do Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Saúde, de Economia e de Ciência, demonstrou uma disposição ambígua em apoiar as negociações[vii]. Novamente, as posições do Brasil demarcaram a omissão diante da crise sanitária de Covid-19 e, dada à defesa da propriedade intelectual privada na OMC, também a opção pelo lucro em detrimento da vida, alinhando-se não só aos EUA, mas também às grandes corporações.
Balanço da pandemia da Covid-19 no Brasil: da razão neoliberal à política externa
O cenário da pandemia da Covid-19 no país foi e permanece catastrófico. De acordo com o Imperial College, em dados divulgados em março de 2021, cada 100 brasileiros infectados espalhavam a doença para outras 123 pessoas. Essa transmissão intensa que promoveu o elevado número de pacientes em Unidades de Tratamento Intensivo e óbitos impulsionou o estudo e descoberta da variante brasileira, tornando o Brasil, durante o início de 2021, o epicentro da pandemia no mundo, conforme alerta da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana de Saúde[viii]. Não só resultado da instaurada crise sanitária, econômica e ambiental no plano interno; da negligente atuação em fóruns internacionais e dos expostos constrangimentos diplomáticos, o pano de fundo da tragédia brasileira é resultado de uma crise biopolítica, conforme apontado por Sandra Caponi[21], que se refere a “aparente oposição entre economia e vida”. Essa crise, segundo Caponi, é utilizada de forma estratégica no contexto neoliberal, fortalecida no momento de pandemia, para expor a população brasileira à morte.
É possível, portanto, retomar o exemplo de doutrina do choque dado por Naomi Klein. A estratégia do “capitalismo de desastre”[7] expressa-se no Brasil por uma pandemia com 587 mil mortes, em que houve uma contínua inação e posicionamentos do presidente e seus ministros de negação da pandemia e resistência à compra das vacinas e insumos. Durante o período analisado neste texto (março 2020 – maio 2021), o governo brasileiro recusou 11 vezes a compra de vacinas. Esse posicionamento aparenta ser estratégico para enfraquecer a oposição por meio da doutrina do choque, que se expressa pelas mortes na crise sanitária, ao mesmo tempo em que possibilitou a aprovação de contrarreformas neoliberais com a liderança, entre outros, de Paulo Guedes, atual Ministro da Economia e ex-aluno da Escola de Chicago, escola de pensamento neoliberal.
Nesse sentido, Caponi apresenta fatores que auxiliam a compreender por quais motivos estados e governantes no cenário pandêmico atual repetem o falso dilema entre vida versus economia. Sua hipótese é a razão neoliberal, que dialogando com a abordagem de Naomi Klein, é antecedente a pandemia da Covid-19. Trata-se da lógica de defesa de manutenção do mercado, independente de vidas, retrato de um sistema neoliberal que “não só produz serviços e bens de consumo, […] também produz modos de ser sujeito”[12] em que o sujeito coloca sua falsa liberdade como absoluta, sem nada a dever ou pedir do Estado.
A exemplo do caso brasileiro, menciona-se a campanha do governo federal, lançada em março de 2020 nos canais oficiais, intitulada “O Brasil não pode parar”, incentivando os governadores dos estados com medidas de “isolamento vertical” – contrárias às indicadas cientificamente. Por desacreditar o conhecimento técnico-científico das principais autoridades nacionais e mundiais, a campanha foi suspensa por liminar no mesmo mês. O episódio, no entanto, além de ser questionado em maio de 2021 na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Covid no Brasil, demonstra o projeto necropolítico por meio da estratégia de proteger a economia expondo à população à morte[12]. Assim, a crise biopolítica constitui-se como o cenário em que o governo brasileiro atua internamente com um projeto necropolítico em relação à população e às políticas de contenção da Covid-19, e com ações, mesmo antes da pandemia, de rompimento com a agenda de política externa inaugurada em 2003[13].
Ademais, cabe ressaltar as práticas liberalizantes e o desmonte dos aparatos estatais legais de proteção ambiental, exercidas pelo então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles. Em reunião ministerial em abril de 2020, Salles alegou a necessidade de “passar a boiada” e de fazer uma “baciada” de mudanças nas regras ligadas à proteção ambiental, utilizando-se do papel regulatório dos ministérios e aproveitando a crise da Covid-19. Em setembro, no âmbito do Conselho Nacional do Meio Ambiente, Salles revogou duas resoluções importantes de proteção de restingas e manguezais em áreas de preservação, possibilitando uma maior penetração do mercado imobiliário nesses locais[ix]. Outra iniciativa a ser citada no âmbito ministerial foi o anúncio do plano de privatização de doze empresas estatais, apresentado pelo secretário do Ministério da Economia, Salim Mattar, em julho de 2020[x]. Essas ações foram estratégicas na representação do consenso da política externa brasileira com a ordem liberal internacional estabelecida pelos EUA e serviram para a implementação de políticas neoliberais no contexto da doutrina do choque.
Brasil nas mãos de Bolsonaro: da inação estratégica à sujeição ao governo Trump
Tratamos especificamente do período compreendido entre março de 2020 e maio de 2021. Na maior parte deste período (março 2020 – janeiro 2021), Donald Trump ocupava a presidência dos EUA, momento em que as declarações públicas de Jair Bolsonaro deixavam explícita a condição de alinhamento irrestrito com aquele país. Desde o início de seu mandato como presidente, Trump representou abertamente a tomada do cenário político por magnatas e, em consequência, da sobreposição de interesses comerciais privados às necessidades públicas. A fatalidade da pandemia da Covid-19, que atingiu o último ano de seu governo, contribuiu para escancarar o ímpeto neoliberal que foi central durante os quatro anos em que ocupou a presidência dos EUA. Por esta ótica, observar as práticas encampadas no Brasil por Jair Bolsonaro, reflete de maneira objetiva uma sintonia com o projeto neoliberal levado a cabo no norte do continente, algo acentuado durante o primeiro ano do período pandêmico.
Ressaltamos que a inação e negligência interna brasileiras frente a Covid-19 e a política externa alinhada aos EUA durante a crise sanitária foram estratégicas. A negação da pandemia, por meio da recusa de compra de vacinas e propagandas anti-isolamento do governo federal, juntamente a posicionamentos internacionais contra a liberação de patentes e de acusação difamatória à países distribuidores de insumos, como a China, representaram a doutrina do choque e um projeto de expor a população à morte, facilitando as tentativas de privatização de empresas brasileiras, em um momento em que a atenção voltava-se para a pandemia de Covid-19. Ao mesmo tempo, externamente, o Brasil rompeu com a agenda previamente estabelecida, alinhando-se de maneira irrestrita com a ordem liberal internacional vigente, representada pela liderança estadunidense na região. Considerando essa discussão, a agenda de pesquisa que abre-se com este texto exploratório de conjuntura aponta a necessidade de analisar as diversas políticas neoliberais implementadas, ou em vias de implementação, enquanto morriam quase 600 mil brasileiros e brasileiras.
Por fim, com este texto reivindicamos memória e justiça para as 587 mil vítimas da pandemia de Covid-19 no Brasil.
Alessandra Jungs de Almeida é doutoranda e mestra em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]
Júlia Loose é doutoranda e mestra em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]
Lisa Belmiro Camara é doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestra em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados. E-mail: [email protected]
[1]Poty, Italo B. Ordem Liberal Internacional e Grande Estratégia Americana (1991-2017): mudanças e continuidades. Revista Conjuntura Austral, v. 12, n. 57, jan./mar. 2021.
[2] Federici, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.
[3] Vidal, Camila Feix; Brum, Luan Correa. Por uma outra forma de (re)pensar as Relações Internacionais: hegemonia e criação de consenso. Revista Conjuntura Austral, v. 11, n. 56, out./dez. 2020.
[4] Schoultz, Lars. Estados Unidos: Poder e Submissão. Bauru: Edusc, 2000.
[5] Harvey, David. Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
[6] Klein, Naomi. Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A., 2007.
[7] Jaeger, Bruna; Brites, Pedro. O Brasil e a Grande Estratégia dos EUA: aspectos históricos conjunturais. Revista Brasileira de Estudos de Defesa, v. 6, n. 1, pp. 217-240, 2019
[8] Winn, Peter. A Revolução Chilena. São Paulo: Unesp, 2004
[11] Pecequilo, Cristina. Do alinhamento e autonomia ao engajamento e contenção: o repensar das relações bilaterais Brasil-Estados Unidos. Revista Esboços, v. 21, n. 32, pp. 92-114, 2015.
[12] Caponi, Sandra. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estudos Avançados, 34 (99), pp. 209-223, 2020.
[13] Fuccille, Alexandre; Solano, Esther. Brasil: Política Exterior en cuatro movimientos. Revista Política Exterior, n. 196, 2020.