(Manifestação nas redondezas do estádio Castelão em Fortaleza antes do jogo do Brasil)
Embora apanhada de surpresa, como a maioria dos brasileiros, a mídia acabou tendo papel central no desenrolar das manifestações de rua ocorridas em todo o país.
Nos primeiros dois dias o tom era de repúdio total. Editoriais dos grandes jornais pediam uma ação enérgica das autoridades para pôr fim aos protestos. No rádio e na TV os jovens que saíam às ruas, sem atos de violência, eram chamados de vândalos.
A Polícia Militar de São Paulo atendeu aos pedidos da mídia e desfechou uma série de ações cruéis, combinando truculência com despreparo. Atingiu a todos que estavam na rua, inclusive jornalistas trabalhando.
A resposta foi dada também nas ruas de São Paulo, com passeatas que não eram vistas desde a queda do presidente Collor. De uma bandeira restrita ao preço das passagens dos transportes públicos, as manifestações ganharam corpo com os milhares de indignados que saíram às ruas para protestar contra a violência policial.
A partir daí a mídia mudou o tom. De vândalos os manifestantes passaram a ser protagonistas de um “belo espetáculo democrático”. Repetiu-se em 2013, no caso da Rede Globo, o procedimento adotado por essa empresa em 1984, quando escondeu quanto pôde o movimento pelas Diretas Já. Como agora, só entrou no clima quando não havia mais jeito. Mais uma vez tentou instrumentalizar o movimento. Colocou suas bandeiras nas mãos dos participantes, estimulando, por exemplo, os gritos contra a aprovação da PEC-37 (um enigma para a maioria da população) e um difuso combate à corrupção. Buscou nacionalizar as pautas numa tentativa bem-sucedida de fustigar o poder central. Claro que essa nacionalização foi seletiva, como ficou claro com os cortes impostos pelo Jornal Nacional à entrevista de Mayara Vivian, uma das integrantes do Movimento Passe Livre, gravada no dia 14 de junho. A parte do depoimento em que ela dizia defender a reforma agrária, a reforma política e o fim do latifúndio no Brasil não foi ao ar.
Avessa aos movimentos de rua, de repente a Rede Globo surpreendeu dando a eles um destaque inédito. Na quinta-feira, 20 de junho, mudou a grade de programação trocando novelas pela cobertura “ao vivo” dos acontecimentos. Para o telespectador acostumado à rotina invariável dos programas, a alteração soou como um alerta: algo muito grave estava acontecendo.
A emissora passou então a oferecer ao telespectador a sua narrativa, tratando as passeatas como mais um espetáculo televisivo, não muito diferente do que fazem seus telejornais todos os dias. Não por acaso, pouco depois das novelas serem substituídas pelas ruas, lá pelas 20h30, milhares de pessoas continuavam a sair das estações do metrô na Paulista, engrossando as manifestações e os coros contra os partidos, tudo “pacificamente”, como não cansavam de repetir os apresentadores da TV.
Na manhã seguinte, programas de entretenimento entravam na onda “cívica”, a ponto de a apresentadora Ana Maria Braga ensinar, como se fosse mais uma receita de bolo, como as mães deveriam orientar os filhos na confecção de cartazes a serem exibidos nas manifestações seguintes.
Havia nas coberturas também uma certa esquizofrenia. Entusiastas das manifestações “pacíficas”, as emissoras, no entanto, não se cansavam de mostrar atos de vandalismo, sem nunca tentar descobrir de onde eles partiam e com que intenções. O importante era o espetáculo das chamas e da destruição, capaz de conquistar alguns pontos a mais de audiência.
Aí está a chave explicativa de tanta excitação das emissoras. A Globo só quebrou sua grade de programação depois de perceber que, desde os primeiros atos de rua, a Record já havia feito isso, conquistando mais alguns pontos no Ibope.
A emissora da Igreja Universal, por sua vez, reagiu na voz de Marcelo Rezende, um narrador que beira o desequilíbrio emocional, ou pelo menos interpreta um personagem desse tipo. Histriônico, como sempre, ele iniciou uma campanha cívica tentando incluir como bandeira do movimento o repúdio às copas futebolísticas, cujos direitos de transmissão pertencem à Globo. As manifestações de rua se prestavam a mais um papel espúrio: o business, puro e simples.
Temerosa de uma inflexão à esquerda do governo, no final de junho a mídia deu uma nova guinada. O acolhimento aos manifestantes e as propostas políticas apresentadas pela Presidência da República fizeram piscar o sinal de alerta do conservadorismo, vocalizado especialmente pelos jornalões.
Até a velha ladainha dos congestionamentos de trânsito causados pelas manifestações foi levantada por um colunista da Folha. O Globo chega a ver riscos para a democracia, caso o plebiscito proposto pela presidente Dilma Rousseff venha a ser realizado, deixando claro que, para os interesses da família Marinho, as pressões populares haviam ido longe demais.
Num claro movimento para aproveitar a oportunidade de ressuscitar a oposição, as televisões abriram espaços generosos para figuras carimbadas desse campo político. Fernando Henrique Cardoso no Canal livre, da Bandeirantes, num domingo, e José Serra no Roda viva, da TV Cultura, na segunda seguinte, são apenas dois exemplos. É a TV em sua tentativa permanente de manter a condução do processo político, exercendo o papel do “Príncipe Eletrônico”, na feliz imagem cunhada pelo sociólogo Octavio Ianni.
Laurindo Leal Filho é sociólogo e jornalista, é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).