As vinhas da ira
Nas últimas semanas, brasileiros que desconheciam a realidade da persistente escravidão contemporânea sobressaltaram-se com relatos de terror
Na premiada obra de Steinbeck (1939), retratada em filme homônimo – e igualmente premiado – de John Ford (1940), trabalhadores pobres, migrantes, expulsos de sua terra, saem em busca de promessas de um futuro melhor por meio do trabalho no outro extremo do país, onde haveria riqueza e fartura, simbolizadas pelas uvas do título original (The grapes of wrath).
Nas últimas semanas, brasileiros que desconheciam a realidade da persistente escravidão contemporânea sobressaltaram-se com relatos de terror, que diziam respeito às condições a que eram submetidos trabalhadores trazidos da Bahia para a colheita de uvas em Bento Gonçalves. Um despertar atemporal, como o de Lázaro de outra obra prima do cinema de temática similar (Lazzaro Felice, 2018): os relatos das condições inaceitáveis de trabalho no caso remetiam a um passado que insiste em se fazer presente, como se o tempo não tivesse corrido para as pessoas envolvidas naquelas relações de trabalho, exploradores e explorados, para os quais a era dos direitos (e correlatos deveres) e a consagração dos direitos humanos no século XX parecia não ter chegado.
Os fatos relatados tiveram significativa repercussão na imprensa e nas redes sociais. Um supermercado no Rio de Janeiro suspendeu a venda de produtos de uma das vinícolas para as quais os trabalhadores prestavam serviços. Do outro lado, um executivo de empresa do setor teria dito em redes sociais que tais reações seriam oportunismo, má-fé e lacração. Uma entidade local representativa do setor produtivo defendeu as vinícolas e relacionou o caso à “falta de mão de obra” e a um “sistema assistencialista” que tornaria “inativa” uma “larga parcela da população” – sem nem uma palavra de solidariedade às vítimas.
Não precisa muito mais para concluir que os fatos relatados no caso não estão dissociados do modo de pensar e agir de muitos envolvidos na atividade econômica do setor. É preciso fazer chegar aos que ainda atuam com tal mentalidade nos negócios as luzes da modernidade e o primado da universalidade dos direitos humanos.
A devida diligência em direitos humanos tem sido tema recorrente de leis editadas nos últimos anos em países como França e Holanda. A União Europeia encontra-se em fase avançada nos debates pela adoção de uma Diretiva sobre Devida Diligência para a Sustentabilidade Corporativa, que deve estabelecer obrigações para grandes companhias em relação aos impactos adversos de suas atividades nos direitos humanos e no meio ambiente, inclusive aqueles criados por seus parceiros comerciais. A medida deve abranger não só empresas com sede na União Europeia, mas também aquelas que atuem na região.
No Brasil, não há dúvidas quanto à responsabilidade civil-trabalhista de empresas beneficiárias dos serviços pelas graves violações de direitos humanos ocorridas no trabalho prestado a seu favor, sobretudo quando se trata de violações que, pela gravidade, não podiam desconhecer. Porém, para além da necessária responsabilização pelos danos ocorridos em cada caso, é possível aperfeiçoar e reforçar os instrumentos legais e de política pública de combate a essas práticas.
Por exemplo, nossos instrumentos de transparência, como o cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas às de escravo (ou lista suja), podem ser aperfeiçoados e utilizados com maior efetividade para trazer consequências econômico-financeiras imediatas, não só para os empregadores, mas para os diretamente envolvidos no âmbito das respectivas cadeias produtivas. E o setor financeiro e os grandes compradores dos produtos finais da indústria – como o supermercado da notícia acima – têm a obrigação de adotar mecanismos contratuais e outras medidas internas para minorar os impactos adversos de suas respectivas atividades nos direitos humanos.
Sobre o livro de Steinbeck, cheio de símbolos, diz-se que o título faz referência a um hino religioso inspirado, por sua vez, em uma passagem do Apocalipse. Pode-se dizer, em resumo, que a ira causada pela opressão e injustiça seria o motor da esperada redenção dos oprimidos. No Brasil de 2023, espera-se que a indignação da sociedade leve a avanços e à atuação concertada da sociedade e dos representantes do Poder Legislativo e Executivo em prol do aperfeiçoamento da política pública de combate ao trabalho escravo, inclusive quanto a medidas de transparência e correlatas obrigações de devida diligência em direitos humanos pelas empresas. Nada melhor do que lembrar as palavras de Steinbeck sobre sua própria obra, quando disse que queria “por uma etiqueta de vergonha nesses bastardos gananciosos”.
Thiago Gurjão é procurador do Trabalho. LL.M. (Master of Laws) em Direito Internacional pelo Geneva Graduate Institute.