As vozes de Washington
Por que a Arábia Saudita promove, há décadas, jornais que influem em todo o mundo árabe, mas procuram mantê-lo fragmentado e dividido. História de uma operação ideológica montada para fortalecer o poder dos EUA no Oriente MédioMohammed El Oifi
Mona Eltahawy, editorialista egípcia que mora em Nova Iorque, escolheu o International Herald Tribune para denunciar a decisão do jornal Al-Chark Al-Awsat de pôr fim às suas colaborações [1]. Este jornal pan-árabe ? que tem como público-alvo todos os países árabes e não apenas um Estado em particular ? se apresenta como o “jornal internacional do árabes”, e é de propriedade do príncipe saudita Salman ben Abdelaziz, governador de Riyad, o homem que Mona Eltahawy suspeita de estar por trás da decisão de a demitir. A revolta, bastante incomum [2] para um editorialista árabe, foi julgada suficientemente grave para levar vários jornalistas ? em especial Jihad al Khazen [3] e Samir Attallah [4], dois dos principais pilares da rede jornalística saudi-libanesa ? a reagir e defender o jornal.
Depois da guerra do Golfo (1990-1991), a diplomacia saudita pôde, graças ao monopólio que os príncipes exerciam sobre o campo midiático pan-árabe depois da destruição de Bagdá, impôr sua própria grade de leitura sobre os acontecimentos na região. Hoje as coisas mudaram e esta iniciativa saudita perdeu a força. De um lado, a transformação do campo midiático árabe ? em especial com o lançamento do canal de televisão Al-Jazira, sediado em Doha (Qatar), em novembro de 1996 ? acabou com o monopólio saudi-libanês sobre os circuitos de informação pan-árabe. Por outro lado, a fragilização das posições diplomáticas de Riyad depois do 11 de setembro e o enquadramento imposto pelos Estados Unidos à política árabe e islâmica do reino a obrigaram a restringir-se como Estado-nação e sobre um discurso “A Arábia Saudita em primeiro lugar”, que entra em conflito com a vocação pan-árabe destas mídias.
O discurso neoliberal das mídias pan-árabes sauditas se radicalizou, depois do 11 de setembro, principalmente em torno de um grupo de jornalistas e de intelectuais ? que as más línguas chamam de “Kouttab Al-Marines” (jornalistinhas dos Marines). Eles defendem a estratégia americana no Oriente Médio, defendem a reforma religiosa e social no mundo árabe, mas se abstém de fazer apologia a mudanças políticas. A Arábia Saudita se aproveita duplamente desta radicalização. No nível interno, este discurso serve para se opor à contestação islamista e apoiar os diversos braços da política neoliberal próximos ao poder. No nível externo, permite atrair a benevolência americana apresentando os príncipes sauditas como produtores de um discurso de moderação favorável à política de Washington no Oriente Médio.
Alinhamento permanente aos planos dos EUA
A estratégia de imposição de uma ordem midiática saudita no mundo árabe remonta ao começo dos anos 1970. Na época, tratava-se de contrapor a propaganda nasseriana difundida pela rádio “A voz dos árabes”. O príncipe Salman Ben Abdel Aziz, governador de Riyad, foi um dos primeiros a perceber o problema. Sua principal aquisição foi o Al-Chark Al-Awsat. O jornal foi lançado em Londres, em 4 de julho de 1978, por duas irmãs sauditas: Hicham et Mohammed Ali Hafez, “com a participalção de Kamal Adham e de Turki Al-Faysal”, há muito tempo responsáveis pelos serviços de informação sauditas [5].
Sua linha editorial reflete fielmente as orientações da diplomacia de Riyad, e deste modo o militantismo do Al-Chark Al-Awsat em favor da guerra americana contra o Iraque em 2003 contrastava com a posição reservada do governo saudita sobre o assunto. As revelações do jornalista americano Bob Woodword [6] sobre os acordos entre Riyad e Washington para preparar a guerra, por intermédio do príncipe Bandar Bin Sultan, então embaixador do reino nos Estados Unidos, mostraram que a verdadeira política estrangeira saudita deveria ser lida nas paginas do Al-Chark Al-Awsat, mais do que nas declarações oficiais.
Al-Hayat é um jornal de origem libanesa criado em 1946 pelo jornalista de mesma nacionalidade, Kamil Mroué. Jornal conservador, ideologicamente afinado com as monarquias saudita e jordanense, favorável à aliança com o Ocidente, ele se opôs à política nasseriana e ao nascimento da República Árabe Unida, (união do Egito com a Síria) em 1958. Em 1966, seu fundador foi assassinado, aparentemente por ordem dos serviços secretos nasserianos. O jornal foi fechado em 1976 após o desencadeamento da guerra civil libanesa.
Jamil Mroué, filho de Kamel, relançou o jornal em 30 de outubro de 1988 em Londres graças ao apoio financeiro do príncipe saudita Khaled Ben Sultan, o filho do ministro da defesa, que em seguida torna-se o proprietário. Al-Hayat desempenhou um papel decisivo durante a guerra do Golfo (1990-1991) para “demonizar” o regime de Saddam Hussein e legitimar a intervenção americana. Ele abriu suas páginas à oposição iraquiana, especialmente curda e xiita. Esta especificidade, reforçada por sua direção de origem cristã-libanesa, leva os inimigos de Al-Hayat a estigmatizá-lo como o jornal “das minorias a serviço de um príncipe”.
No entanto, Al-Hayat continua sendo um jornal pluralista no qual coabitam jornalistas que se dividem grosso modo entre dois campos: os “arabófilos” e os “ocidentalistas”. Mas se o jornal demonstra uma visão aparentemente pan-árabe da atualidade, as tendências libanistas continuam dominantes; a exaltação do Estado-nação é muito frequentemente acompanhada de difamação apoiada dos sentimentos de solidariedade árabes.
Jornal “pan-árabe”; direção anti-arabista
Foi no seio da corrente “ocidentalista” que os norte-americanos buscaram as competências nas quais confiaram a direção de sua estratégia midiática em direção ao mundo árabe e especialmente ao Iraque. Assim, a direção da rádio Sawa e da televisão Al-Hurra foi confiada ao antigo diretor do escritório do Al-Hayat em Washington, o libanês Mouaffaq Harb. Já em 1998, quando os americanos lançaram, em Praga, a Radio Free Bagdad, eles teriam confiado sua direção a um outro jornalista do Al-Hayat, Kamaran Qura Dhari, um militante curdo iraquiano. De outra feita, em maio de 2004, pouco antes de sua partida, o administrador americano Paul Bremer nomeou, para a mais alta responsabilidade à frente da rádio e da televisão iraquianas, dois jornalistas do Al-Hayat: Jalal al Mashta e Kamaran Qura Dhari.
O lugar de honra que o Al-Hayat ocupa no campo midiático árabe desperta inveja, mas também críticas bem fundadas. A mais bem acabada é a do jornalista palestino Bilal Al-Hassan, antigo redator-chefe adjunto deste jornal. Al-Hassan destaca o paradoxo que é o jornal: um jornal pan-árabe cuja linha editorial é dominada, em parte, por jornalistas libaneses conhecidos por seu “anti-arabismo radical” e “uma exaltação excessiva das virtudes do Estado-nação em detrimento de qualquer idéia ou sentimento de solidariedade árabe e muito menos islâmico.”
O principal alvo de críticas é Hazem Saghié, libanês e mentor da escola neoliberal árabe “que considera que o colonialismo é uma bênção” [7]. Bilal Al-Hassan evoca assim “os gritos de indignação” em relação a esta corrente neoliberal que provém da própria publicação, em especial as de Abdel Wahab Badrakhan ? mas este foi obrigado a deixar o jornal e se prepara para participar do lançamento de um novo jornal financiado, como a Al-Jazeera, pelo Qatar ? e por Daoud Al-Shiryan. Este último acaba de ser nomeado como diretor-adjunto do canal pan-árabe Al-Arabiya (financiado pela Arábia Saudita), para “equilibrar” as tendências neoliberais do diretor atual, Abderahman Al-Rashed [8], um atigo redator-chefe do Al-Chark Al-Awsat ? o que ilustra a complexidade do sisteme mediático saudita.
Nos momentos decisivos, a tirania dos editores
No entanto a análise de Bilal al-Hassan ainda é incompleta, pois ele não evoca a influência que o príncipe Khaled Ben Sultan (sobrinho do rei Fahd, falecido em 1o. de agosto de 2005) exerce sobre a linha editorial do jornal [9]. Porque, se a oposição virulenta de Hazem Saghié em relação ao nacionalismo árabe expressa sem dúvida seu ponto de vista pessoal, ela se inscreve perfeitamente no contexto da luta do reino saudita contra esta ideologia. Do mesmo modo, o paralelismo que Saghié estabelece entre o islamismo e o nazismo [10] contribui com os esforços do reino pela deslegitimação e pela repressão da contestação islâmica interna. A função de Billa Al-Hassan como editorialista do Al-Chark Al-Awsat, propriedade do príncipe Salman Ben Abdelaziz, não se furta a este esquecimento.
A radicalização do discurso neoliberal nas mídias sauditas pan-árabes é ainda mais preciosa para a política americana no Oriente Médio uma vez que a sua própria estratégia de comunicação para o mundo árabe fracassou [11]. É esta conivência midiática saudi-americana que explica a predileção do Middle East Media Research Institute (Memri) [12] um instituto israelense de tradução da imprensa árabe, para os jornalistas que escrevem para a imprensa saudita, pois a difusão massiva das traduções da imprensa árabe realizadas por este instituto faz parte de uma estratégia bastante elaborada de manipulação de informação, com efeitos incalculáveis.
Beneficiando-se da proteção diplomática saudita, de sua generosidade financeira e de seus meios de difusão, esta imprensa pan-árabe saudita faz face à expressão das opiniões públicas árabes majoritárias [13]. Nos momentos de tensão, a visão minoritária de seus editorialistas é frequentemente apresentada ao mundo como sendo o ponto de vista árabe majoritário. Ora, é em total deslocamento com as opiniões políticas árabes que os editorialistas desta imprensa contróem um “mundo árabe imaginário” favorável à guerra americana contra o Iraque em 2003 e ao esmagamento do Hezbollah libanês pelo ex