Assegurar o bem-estar coletivo
Apesar das especificidades de um país periférico, o Brasil melhorou no que diz respeito à atenção social, sem, contudo, romper com a natureza da exclusão. Se estabelecermos como objetivo acabar com a vulnerabilidade da população, a ação governamental não pode ser apenas setorial: deve assumir importância estratégica
A incapacidade de o antigo liberalismo combinar o melhor desempenho econômico com o avanço social produziu, em geral, duas distintas experiências de desenvolvimento nas sociedades urbano-industriais do século 20. A primeira, originalmente representada pela ruptura do próprio modo de produção capitalista, em 1917, com a Revolução Russa, abriu a perspectiva do socialismo real em vários países, sem as tradicionais desigualdades impostas pelas forças livres do mercado. A segunda experiência, fundada em significativas reformas civilizatórias nas economias capitalistas centrais, conduziu ao Estado de bem-estar social comprometido com a repartição menos desigual das oportunidades e riquezas geradas.
Nos países periféricos do sistema capitalista mundial, a transição do agrarismo para a sociedade urbano-industrial transcorreu sem a efetiva e consequente realização de revoluções ou reformas, o que implicou, em geral, prevalência do descolamento entre a melhora econômica e o avanço social. O Brasil, nesse sentido, constitui historicamente um dos principais exemplos internacionais de profunda diferenciação entre a modernização econômica e o atraso das condições de bem-estar social do conjunto da população.
A emergência da sociedade pós-industrial no começo do século XXI traz consigo oportunidades de construção do desenvolvimento em novas bases. Ao final da próxima década, o Brasil poderá deter, por exemplo, condições de bem-estar social equivalentes às já verificadas em países desenvolvidos, com a superação da pobreza extrema e da desigualdade na renda do trabalho acima de 0,4 no índice de Gini. Tudo isso, contudo, passa não apenas pela definição de maioria política compromissada com o crescimento econômico sustentável ambientalmente, mas também pelo aperfeiçoamento sistêmico do conjunto atual das políticas de segurança social.
Traços marcantes do desenvolvimento
Os países da periferia do capitalismo mundial não registram idêntica trajetória de avanços na proteção social e trabalhista, conforme observado nas nações desenvolvidas do século XX, mesmo quando apresentaram ritmo superior de crescimento econômico. Esse é, precisamente, o traço marcante da experiência brasileira de abandono do primitivismo da sociedade agrária desde as primeiras décadas do século passado.
Por causa disso, o entendimento acerca da construção e do desenvolvimento do sistema de bem-estar social requer considerar, inicialmente, a condição de pertencimento à periferia do capitalismo mundial. Mesmo com a internalização do processo de industrialização desde a década de 1930, as principais características do subdesenvolvimento não foram abandonadas, como a enorme assimetria econômica setorial e regional e a permanência de significativa parcela da população prisioneira de condições extremamente precárias de vida e trabalho1.
Como se sabe, o modo de proteção social no Brasil somente ganhou expressão fundamental a partir da Revolução de 1930. Ainda que não tenha representado de fato uma revolução burguesa no sentido clássico, conforme observado no centro do capitalismo mundial, ela impôs mudança substancial no jogo político interno que até então prevalecia – por mais de quatro séculos –, dependente das decisões plutocráticas das classes proprietárias rurais2.
A ascensão da burguesia industrial e a emergência das classes trabalhadoras urbanas constituíram novos atores responsáveis crescentemente pelo aparecimento de uma agenda política direcionada à regulação das livres forças do mercado. Em particular, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) terminou se comportando como um entrave diferenciado à hegemonia das classes proprietárias rurais, que não representavam mais que 3 mil famílias responsáveis pelo aprisionamento da política macroeconômica comprometida com o modelo primário- -exportador (taxa de câmbio, impostos e subsídios favoráveis à economia cafeeira).
Destaca-se, contudo, que o sistema de bem-estar social constituído a partir da industrialização tinha por natureza a meritocracia e o particularismo3 voltados tão-somente ao emprego assalariado com carteira assinada. Como a maior parte das classes trabalhadoras se encontrava no campo, apenas o empregado formal urbano foi beneficiado pelo salário mínimo e demais medidas da legislação social e trabalhista. Ao mesmo tempo, o avanço das contribuições diretas e da estrutura tributária regressiva indicou o quanto o sistema de proteção social passou a ser financiado pela renda dos pobres, sem maiores consequências na concentração brutal da renda e da riqueza do país.
Dessa forma, as restrições ao financiamento das políticas de proteção social e a natureza regulada de acesso do empregado formal urbano aos benefícios impediram que mesmo a incorporação gradual e contida de novos segmentos populacionais fosse acompanhada, simultaneamente, da melhora quantitativa e qualitativa dos serviços ofertados e dos valores pagos. O resultado disso foi, por um lado, a postergação na universalidade do sistema de bem-estar social e, por outro, a saída voluntária dos estratos de maior renda, mediante a inclusão de mais beneficiados (geralmente mais pobres), como na transformação do funil da educação primária estatal, na ampliação do ensino fundamental público e na passagem da saúde contributiva para a universalização pública do SUS (Sistema Único de Saúde).
Em síntese, a classe média abandonou tanto a educação fundamental e a saúde pública para buscar ofertas privadas de proteção social, como a defesa do Estado de bem-estar social equivalente ao verificado nos países desenvolvidos. Também o corporativismo de algumas categorias profissionais organizadas, a meritocracia da elite branca escolarizada numa sociedade de analfabetos e o particularismo de segmentos ocupacionais de alto rendimento contaminaram as possibilidades de maior articulação de interesses e ação política entre as classes operária e média, necessárias para uma profunda reforma no selvagem capitalismo brasileiro.
Por consequência, vários sinais de proximidade das políticas sociais com a privatização do Estado foram sendo observados. Seja de parte dos fundos públicos, seja pela gestão terceirizada das atividades de fornecimento de bens e serviços públicos, o setor privado terminou sendo um dos grandes beneficiados da trajetória mercantilizada do funcionamento do Estado de bem-estar social no Brasil4.
Democracia recente, Constituição e avanços
Desde o final da década de 1970, o movimento de redemocratização nacional impôs outra perspectiva para o encaminhamento do sistema de proteção social no Brasil.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu novas bases para o desenvolvimento do Estado de bem-estar social mediante a diversificação dos atendimentos, a sofisticação dos conteúdos das políticas públicas e a ampliação da cobertura nos benefícios e na prestação dos serviços, direcionados cada vez mais à universalização.
O resultado da constitucionalização dos direitos se expressou por meio da ressignificação dos princípios da justiça e solidariedade, permitindo que o gasto social avançasse relativamente ao Produto Interno Bruto e passasse a apresentar resultados de melhora importante no bem-estar geral da população5.
No ano de 2008, por exemplo, a força dos benefícios da Previdência e Assistência Social somada à elevação do valor real do salário mínimo evitou que quase 45% dos brasileiros se encontrassem na condição de pobreza extrema.
Em 1988, a pobreza atingia 41,7% da população e o índice Gini de desigualdade da renda do trabalho era de 0,62. Duas décadas depois, a taxa de pobreza caiu para 25,3% dos brasileiros (queda de 39,3% em relação a 1988) e a desigualdade da renda diminuiu para 0,54 (redução de 11,7%). Na área da saúde destaca-se a queda de 62% na taxa de mortalidade infantil (de 50,8 óbitos por mil nascidos vivos, em 1988, para 19,3 em 2008), o que favoreceu a elevação da expectativa média de vida dos brasileiros em 10,6% (de 50,8 para 72,8 anos entre 1988 e 2008).
Também na educação se observa a elevação na frequência escolar, de 26,9% para 78,1% entre 1988 e 2008 para a faixa etária de 4 a 6 anos; de 84,1% para 98,1% na faixa de 7 a 14 anos, e de 52,4% para 83,7% na faixa de 15 a 17 anos, o que contribuiu para a ampliação da escolaridade média da população de 15 anos e mais de idade, de 5,1 para 7,4 anos desde a implementação da Constituição Federal de 1988.
Os avanços sociais observados em meio ao quadro de baixo dinamismo econômico estiveram diretamente relacionados ao rearranjo das políticas públicas capazes de permitir a expansão relativa do gasto social, de 13,3% do Produto Interno Bruto, em 1985, para 21,9% em 2005; inicialmente, pela modernização e concentração das políticas econômicas em torno de diversos instrumentos de gestão monetária, fiscal e financeira, voltados para o aperfeiçoamento da máquina pública.
Outros avanços foram alcançados na organização das finanças públicas (modernização da Receita Federal e da Secretaria do Orçamento Federal) por meio da capacitação de quadros e órgãos de fiscalização, acompanhamento, controle de processos e transparência no uso dos recursos (advocacia geral, ouvidoria, procuradoria, controladoria e conselhos de participação popular).
Simultaneamente, ocorre o compartilhamento e a descentralização das responsabilidades das ações sociais entre os entes da federação. A efetivação dos municípios ocorreu simultaneamente ao processo de verticalização setorial do conjunto das políticas sociais no Brasil.
Em síntese, a conformação de grandes complexos públicos crescentemente integrados operativamente em cada um dos setores das políticas sociais teve início ainda na década de 1980 com o Sistema Único da Saúde (SUS), passando por outras áreas, até recentemente alcançar a organização vertical do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Em cada um dos setores verticalmente organizados das políticas sociais houve avanços na especialização necessária das ações e do corpo funcional, acompanhado, geralmente, pela prévia fixação, quando não vinculada, de específica parcela dos recursos orçamentários para o financiamento de cada política social. Do contrário, as ações de atenção social perderiam efetividade, sobretudo no contexto de medíocre desempenho econômico ocorrido durante as duas últimas décadas do século XX.
Desafio atual
A complexidade e a emergência totalizante da questão social no Brasil, neste começo do século XXI, exigem um segundo movimento de constitucionalização do Estado em direção da maior eficiência e eficácia das políticas de segurança social: a redefinição de ações e a horizontalização do conjunto das políticas de proteção (previdência, assistência e saúde); promoção (educação, cultura e trabalho); e infraestrutura social (habitação, urbanismo e saneamento).
Isso, porque somente o imperativo da integração orçamentária e a intersetorialização das políticas públicas, articuladas por ações matriciais no plano territorial, permitirão enfrentar, em novas bases, as mudanças socioeconômicas transmitidas pela transição para a sociedade pós-industrial.
No Brasil, isso significa que nas duas próximas décadas, a população tende a diminuir em termos absolutos e a conviver com considerável envelhecimento etário. Em 2040, por exemplo, a população poderá ser de 205 milhões de brasileiros, 2 milhões a menos do esperado para 2030, o que faz com que a dependência demográfica deva aumentar diante da relativa redução da população jovem e expansão do segmento de maior idade.
Todas essas profundas mudanças demográficas estão sendo acompanhadas por alterações não menos importantes na situação familiar, que a cada ano eleva a presença de famílias monoparentais e chefiadas por mulheres ou idosos. Noutras palavras, assistimos à decrescente capacidade de os novos arranjos familiares proverem, por meio de decisões individuais, condições adequadas de vida, o que exige urgente redefinição do papel das políticas de atenção social. No Brasil de hoje, mais de 1/3 da população encontra-se excluída das políticas de proteção social.
O avanço da sociedade pós-industrial coloca o conhecimento na principal posição de ativo estratégico em termos de geração de renda e riqueza. Não obstante a melhora educacional dos últimos anos, o Brasil encontra-se ainda muito distante do necessário patamar de ensino-aprendizagem. Tem ainda a indecência de registrar um a cada dez brasileiros analfabetos, e a escolaridade média da população abaixo dos 8 anos obrigatórios segundo a Constituição Federal.
Na sociedade pós-industrial, o ensino superior passa a ser a base para o ingresso no mercado de trabalho, bem como a educação se torna uma medida imprescindível para a vida toda. No Brasil de hoje, menos de 13% do segmento etário de 18 a 24 anos encontra-se matriculado no ensino superior e, a partir do ingresso no mercado de trabalho, em geral, as possibilidades de continuar estudando pertencem fundamentalmente à elite branca. Para os 20% mais ricos, a escolaridade média supera os 10 anos, enquanto os 20% mais pobres mal chegam aos cinco anos. Na condição de negro, nem isso ocorre.
A persistência da dispersão de objetivos e a fragmentação das políticas sociais impõem elevado custo-meio de operacionalização, que poderia ser rebaixado sem maior comprometimento da efetividade e eficácia, além de inibir o clientelismo e o paternalismo que terminam por obstruir a perspectiva necessária da emancipação social e econômica da população beneficiada.
Somente no âmbito das ações para crianças e adolescentes contabilizam-se, por exemplo, a existência de quase 110 programas dispersos em diversos ministérios na esfera federal, sem contabilizar iniciativas semelhantes conduzidas por governos estaduais e municipais. Essa dispersão das ações sociais significa a fragmentação e sobreposição institucional que aumentam o custo-meio da operacionalização e compromete a eficácia e eficiência das políticas de segurança social6.
Por outro lado, nota-se que as iniquidades ainda existentes no tratamento concedido pelo conjunto das políticas não se localizam somente na natureza do gasto social, mas fundamentalmente na forma do seu financiamento. A prevalência da regressividade na estrutura tributária que sustenta as políticas públicas no Brasil onera proporcionalmente mais os pobres que os ricos. Por isso, o financiamento das políticas sociais continua a potencializar o patamar da desigualdade originária da distribuição primária da renda e da riqueza7.
Mesmo não tendo registrado o mesmo desempenho observado nas economias centrais, o Brasil perseguiu uma trajetória recente de avanços nas políticas de segurança social desde a Revolução de 1930 e, sobretudo, após a Constituição Federal de 1988. Apesar das especificidades de um país periférico, melhorou em várias medidas de atenção social, sem, contudo, romper definitivamente com a natureza da exclusão social. Se o objetivo da questão social for o enfrentamento da totalidade das vulnerabilidades da população, a ação governamental de médio e longo prazo exige não apenas e exclusivamente a ação setorial, mas, sobretudo e cada vez mais, a matricialidade das políticas de segurança social. É nesse sentido que a proposição da consolidação das leis sociais no Brasil assume importância estratégica.
A necessária institucionalização dos mais recentes êxitos das políticas sociais permitiria evitar o constrangimento da descontinuidade temporal das políticas públicas, ao mesmo tempo que possibilitaria modernizar e ampliar a capacidade do aparelho do Estado em racionalizar procedimentos e recursos.
Por fim, essas medidas permitirão a obtenção da maior efetividade, eficiência e eficácia do conjunto das políticas públicas voltadas para a segurança social, especialmente
quando a transição para a sociedade pós- -industrial se torna inexorável8.
Não obstante os históricos obstáculos e limites impostos ao avanço do sistema de bem-estar social, o Brasil possui, atualmente, a inédita oportunidade política de consolidar o rumo de um novo desenvolvimento, capaz de combinar melhora econômica com avanço social.
O futuro socialmente justo e economicamente sustentável torna-se possível a partir de uma maioria política que assuma o protagonismo de conceber, junto com o povo, o que historicamente lhe foi negado: o bem-estar coletivo.
*Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.