Até onde vai a participação cidadã?
Estima-se que quase 2 milhões de pessoas participem dos conselhos e conferências abertos à cidadania nos níveis federal, estadual e municipal. Mas de que têm servido todos esses espaços? Qual papel exercem de fato na democracia? Acaso têm contribuído para a redução das desigualdades sociais?
Em 2008, a atual Constituição Brasileira completa vinte anos. Muitos balanços podem e devem ser realizados. Mas um talvez seja essencial: a avaliação crítica da democracia participativa brasileira.
A Constituição de 1988 proclamou uma concepção universalista dos direitos sociais e definiu importantes mecanismos de participação, como o plebiscito, o referendo popular, a iniciativa popular de lei, a tribuna popular e a audiência pública.
Foram ainda criados ou re-significados muitos espaços institucionais de participação cidadã: espaços legalmente constituídos, nos quais Estado e sociedade civil tomariam decisões conjuntas sobre os rumos das mais diferentes políticas públicas.
Respaldadas na Constituição, várias forças sócias empenharam-se, ao longo dos anos, na criação e consolidação desses canais, engajando-se em iniciativas como os conselhos e conferências de políticas públicas, voltados à definição e fiscalização dessas políticas.
Se é fácil entender as motivações de tais experiências, o mesmo não se pode dizer de sua concretização. Argumentava-se, no momento da redemocratização, que não bastavam partidos e eleições livres. Era preciso criar um ambiente favorável, constituído por outras instituições, que assegurasse a ampliação do espaço decisório, trazendo para o exercício da política outros grupos sociais além dos políticos profissionais. A idéia central era garantir que tais setores organizados – sindicatos, movimentos populares e sociais – tivessem vez e voz.
Havia, então, uma generosa aposta em jogo: a de que, junto com os representantes do governo, a inclusão de atores da sociedade civil na definição das políticas públicas levaria a maior eqüidade e justiça social. Por meio de tais mecanismos – acreditava-se então –, as políticas públicas se tornariam universais de fato, garantindo maior cobertura e qualidade nos serviços prestados à população, diminuindo as enormes desigualdades sociais.
O modelo paradigmático da participação institucionalizada foi a criação da Lei Orgânica de Saúde, em 1990, como parte do Sistema Único de Saúde. Previa ela a participação da comunidade por meio de conselhos nos níveis federal, estadual e municipal. Foi também instituída, em todo os níveis da federação, a prática de conferências, que deveriam fornecer os parâmetros para as políticas públicas de saúde. Esse modelo seria seguido por outras áreas, como assistência social, criança e adolescente, cidades, e constitui, ainda hoje, o maior exemplo de participação institucional do Brasil.
Como resultado, apesar de pouco conhecidos pela população, temos hoje uma enormidade de espaços participativos consolidados, nas diferentes esferas de governo (federal, estadual e municipal) e em relação às diferentes políticas públicas.
Não há dados precisos e atualizados sobre a quantidade total de conselhos existentes no Brasil. Mas o IBGE apontava, em 1999, a existência de 23.987 conselhos municipais, vinculados a políticas sociais. Na área de saúde, os últimos levantamentos do Conselho Nacional de Saúde indicam a existência de conselhos em todos os municípios e estados brasileiros.
Com o governo Lula, tais espaços cresceram, especialmente no nível nacional. Dos 64 conselhos federais existentes, 11 foram criados durante o governo Lula e 9 restabelecidos1. No que diz respeito às conferências, entre 2003 e 2006, foram realizadas 38 conferências nacionais, várias delas antecedidas por conferências municipais e estaduais em todo o país. Segundo informações do próprio Governo Federal, estima-se que quase 2 milhões de pessoas tenham participado, durante esse período, de conferências em todos os níveis da federação.
Mas de que têm servido todos esses espaços? Qual é o significado de todas essas mobilizações? Qual papel exerce tudo isso na democracia brasileira? É possível dizer que outros atores sociais vieram à cena por meio desses espaços? Acaso provocaram eles mais igualdade, mais acesso e melhor qualidade dos serviços públicos?
Após estes vinte anos, é hora de um balanço. Vinte anos podem parecer um intervalo de tempo relativamente curto na história de um país. Mas o Brasil é um país jovem, onde tudo é relativamente recente. Ademais, vinte anos não constituem um tempo tão curto quando se trata de corrigir rotas. A pergunta que podemos nos fazer é: como aperfeiçoar os atuais mecanismos de participação? Sem descartá-los, nem mistificá-los como panacéia para todos os males, como tornar a democracia participativa mais democrática e mais participativa? E como fazer dela um instrumento para a conquista de maior justiça social?
Os setores sociais que se organizam em torno desses espaços percebem alguns desafios que merecem atenção.
A importância dos espaços conquistados
É inegável que mais atores participam hoje do debate público e que a agenda foi de alguma forma alargada por tal participação. Setores que antes estavam totalmente alijados do debate, como os usuários dos serviços de saúde, os portadores de patologias, os moradores de rua, os sem-teto e tantos outros, têm agora a possibilidade de discutir as políticas públicas. Além disso, ao contrário do que acontece muitas vezes no Congresso Nacional e na grande mídia, os conselhos e conferências são instâncias realmente voltada para a discussão pública das grandes questões de interesse nacional. Por exemplo, na última Conferência Nacional de Saúde, discutiu-se a descriminalização do aborto. Apesar de a Conferência ter se posicionado desfavoravelmente em relação à proposta, porque pesaram a tradição brasileira e a influência da Igreja Católica, o simples fato de o debate ter emergido, obrigando os vários atores a ser posicionar, já pode ser considerado extremamente positivo.
No que diz respeito à dinâmica e funcionamento dos conselhos, relatos apontam que, apesar das dificuldades, há outros dois ganhos importantes. De um lado, os conselhos têm funcionado como forma de obtenção de informações por parte de lideranças populares. O que não é de menor importância em uma sociedade como a nossa, na qual informações como quantidade de recursos orçamentários, equipamentos públicos disponíveis e quantidade e qualidade dos atendimento prestados à população são restritas a poucos. De outro lado, esses fóruns funcionam como tribunas de denúncia, especialmente no que diz respeito à violação de direitos e ao desvio de recursos públicos. Há vários casos de intervenção do Ministério da Saúde em municípios a partir de denúncias feitas pelos conselhos municipais.
Alguns desafios a considerar
A lista dos desafios, porém, é maior do que a lista das conquistas. Vamos destacar dois.
• Atração de novos protagonistas
Um dos objetivos centrais da criação dos espaços participativos era ampliar a representação característica da democracia formal e integrar na cena pública um novo conjunto de representantes da sociedade.
De fato, a sociedade civil brasileira está cada vez mais plural, e muitos setores têm procurado tanto buscar assento nos conselhos quanto participar ativamente das conferências. Mas é preciso olhar detidamente quem tem conseguido espaços nos conselhos e para representar quem e o quê.
Primeiro, há que reconhecer as grandes assimetrias de recursos, conhecimento e poder, que, de alguma forma, se reproduzem nesses espaços. Para citar um exemplo extremo, nos conselhos de assistência social existe a vaga para a categoria “usuário”, que dificilmente consegue ser ocupada realmente por um usuário, mas sim por entidades que trabalham com usuários. Frequentemente, moradores de rua procuram ter espaço nos conselhos de assistência e não conseguem. A questão que se coloca é como dar condições de participação, tratando diferenciadamente os desiguais, e permitindo o acesso e a atuação efetiva? Outra questão, correlata à anterior, diz respeito às entidades que têm expressão apenas no nível local. Como abrir espaço para essas organizações que não se estruturam nacionalmente?
Além disso, como lidar com interesses de grupos, entidades e igrejas, que, muitas vezes, colocam sua identidade corporativa acima da discussão sobre a política pública?
Por fim, sabemos que vários conselheiros têm vínculos também com partidos políticos. E trazem para dentro dos conselhos disputas que não necessariamente têm a ver com as políticas públicas. Como lidar com esses representantes, que exercem, por assim dizer, uma dupla militância, e se pautam, muitas vezes, por limitados interesses partidários e eleitorais?
É preciso mencionar ainda que, não raro, os representantes do governo nesses espaços são pouco representativos, dispõem de pouca informação, e têm pouco poder de fato para falar em nome de quem supostamente representam.
Duas alternativas – que obviamente não dão conta de todos estes desafios – têm sido experimentadas pelos conselhos. Primeiro, buscar mais formas de comunicar/divulgar o que se passa nesses espaços, para possibilitar alguma forma de controle. Assim, alguns conselhos produzem boletins informativos de suas atividades – prática que poderia ser mais disseminada. Segundo, criar fóruns autônomos, para aumentar a representatividade, a capacidade de mobilização e o poder de pressão política da sociedade civil.
• Democracia participativa ou representativa
Os espaços participativos foram concebidos como um contraponto à democracia representativa. Ou, na melhor das hipóteses, ambos se complementariam. De fato, o que observamos foi a subordinação da democracia participativa à democracia representativa.
Desde o início dos anos 1990 até o presente momento, tem sido possível observar a emergência de diferentes atores, portadores de diferentes projetos políticos, que enfatizam a participação como algo essencial. Entre eles, há os que pensam em um Estado mais enxuto, com as organizações da sociedade civil substituindo as instâncias estatais no exercício de várias funções; ou ainda defensores de propostas que reforçam apenas o caráter fiscalizatório, e quase policialesco, da sociedade civil, com o intuito propalado de coibir a corrupção nos poderes públicos. O resultado é uma confluência perversa, em que atores com interesses contraditórios, e projetos políticos até antagônicos, defendem a participação dos cidadãos2.
As expectativas sobre a participação têm sido frustradas. Como vimos, o Governo criou muitos espaços participativos, mas em geral os tratou como momentos
de “escuta forte”3. Tal postura foi compreensivelmente considerada insatisfatória por parte da sociedade civil4. Mas, em distintos momentos, ela se reproduziu. Recentemente, o Ministério da Saúde lançou mão das fundações privadas como nova forma de gestão. Sem ter passado pelo Conselho Nacional, a proposta recebeu pronunciamento contrário tanto na Conferência Nacional quanto no próprio Conselho. Resta saber quem terá mais força neste caso. Outro exemplo diz respeito ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Desde o seu lançamento, movimentos sociais e organizações estão preocupados com que esse programa respeite os planos diretores participativos, e as resoluções dos conselhos e das conferências das cidades realizadas nos últimos anos. Pois nada assegura que a participação seja efetivamente respeitada e levada em conta na implementação dos projetos presentes no PAC.
O que acontece no plano federal é cotidiano nas experiências participativas de nível local. O respeito ao conselho como instância deliberativa depende fortemente da vontade política dos governantes e da mobilização da sociedade civil. Se partirmos do pressuposto de que a criação de mecanismos participativos não substitui as instituições da democracia representativa, mas complementa-as, o desafio parece ser como promover uma nova arquitetura institucional, na qual o sistema representativo possa ser fortalecido e tencionado pela inclusão de mecanismos de participação cidadã5.
No Brasil, embora várias instâncias participativas, como os conselhos de políticas públicas, tenham sido definidas como peças-chaves do processo de descentralização das políticas – principalmente das políticas sociais –, elas não encontraram seu lugar na estrutura do Estado. Resultado disso, podem constituir-se, em muitos casos, como institucionalidade paralela, com pouco ou nenhum efeito democratizante sobre as instituições estatais.
Além do que, a experiência brasileira nos revela uma outra dimensão do problema. Em um contexto no qual a agenda política se encontra constantemente monopolizada pelas disputas político-partidárias, as instâncias participativas – principalmente no nível local – ficam contaminadas pelo jogo político próprio à formação das maiorias eleitorais.
Ao invés da complementaridade entre instituições participativas e representativas, parece muito mais adequada a afirmação de uma combinação subordinada6. Ou seja, a democracia brasileira, ao mesmo tempo em que inaugura uma ampla variedade de interfaces governo/sociedade, não os inclui como elementos de uma renovada arquitetura institucional, capaz de oferecer caminhos novos e alternativos à reforma democrática do Estado e à governabilidade.
A impressão é que as experiências participativas no Brasil, mundialmente reconhecidas, “correm por fora”, ficando na periferia do sistema, afetando pontualmente uma ou outra política setorial, a depender da vontade política dos governos e/ou do poder de pressão da sociedade organizada. Elas parecem não resultar de – ou induzir – uma estratégia mais profunda de articulação entre representação e participação. Em alguns casos, é possível dizer até que, mesmo quando o governo aloca recursos que resultam em efeitos redistributivos, tal procedimento não se distingue das estratégias conservadoras de manutenção do poder e de velhas práticas clientelistas.
Como aprofundar a democracia
Em 2006, a Plataforma da Reforma do Sistema Político Brasileiro, elaborada por várias organizações e redes da sociedade civil, apresentou algumas demandas importantes para o aprofundamento da democracia participativa. Vale destacar ao menos duas:
1. Criação de mecanismos de participação, deliberação e controle social das políticas econômicas e de desenvolvimento.
2. Acesso universal às informações, especialmente as orçamentárias, nos âmbitos da união, estados e municípios.
Um dos grandes desafios para a participação tem sido o acesso à informação. É impossível participar ativamente se as informações são restritas, assistemáticas, com baixa clareza e precisão. Talvez neste ponto, valha a avaliação sobre a Lei federal de Transparência e Acesso à Informação do México, de junho de 2002. Esta lei garante o acesso de toda pessoa à informação em posse dos poderes da União. Para garantir esta lei, foi criado um Instituto Federal de Acesso à Informação Pública, encarregado de difundir o exercício do direito à informação e resolver sobre a negativa de solicitações e de proteger dados pessoais em poder do Estado. Como sanção, os servidores públicos que não cumprem a lei, ou dão informações erradas ou incompletas, respondem a processos administrativos.
Tais medidas, estendendo à sociedade civil as grandes decisões econômicas e a informação, podem contribuir para o aprimoramento e a radicalização da democracia participativa.
*Ana Claudia Teixeira é cientista política e coordenadora do Instituto Pólis.