Até onde vão os efeitos redistributivos do OP
O Orçamento Participativo tem como objetivo atrair setores sociais pobres para a vida política dos municípios. Mas apesar de abrir canais de participação direta a grupos com reduzido acesso à esfera pública, a iniciativa possui limitações para reverter as desigualdades que marcam as cidades brasileiras
O Brasil é marcado pela desigualdade: riqueza e pobreza, luxo e miséria fazem parte do cotidiano das nossas cidades. Como reduzir essas disparidades tornou-se questão fundamental para a esquerda e o movimento popular e até hoje é uma de suas principais preocupações.
A partir da redemocratização do país, a alternativa proposta foi a de construir inovações institucionais capazes de estender o processo democrático à população pobre, associando seus interesses ao funcionamento do Estado. Nesse cenário, o empreendimento que teve a maior capacidade de “inverter prioridades” foi o Orçamento Participativo (OP), uma forma de democracia participativa que privilegia os investimentos e a oferta de serviços públicos nas regiões mais carentes das cidades.
A democracia participativa enfatiza a presença dos cidadãos comuns nos processos de tomada de decisões, dando poder aos setores sociais não representados ou sub-representados pelas instituições políticas existentes. As pessoas aprendem com a participação política e a partir do debate e da troca de informações desenvolvem seus aspectos psicológicos e aprimoram o conhecimento sobre o tema em discussão1.
Expandir o processo democrático da esfera política para a econômica é um dos objetivos da democracia participativa. Primeiro, o processo democrático tem de abarcar o aparelho estatal, as empresas públicas e privadas, cooperativas, sindicatos e ONGs. Segundo, as decisões sobre os usos dos recursos naturais, da riqueza e do excedente social2 devem ser tomadas pela sociedade. Logo, processos de democracia participativa possuem um caráter redistributivo. No OP delibera-se como uma parcela excedente dos impostos será gasta nas cidades.
O OP instituído em Porto Alegre (RS) em 1989 foi organizado a partir de três elementos. Primeiro, uma estrutura na forma de pirâmide, constituída de assembleias regionais e temáticas, Fórum de Delegados, Conselho Municipal do Orçamento Participativo e, ainda, de órgãos municipais que fazem a mediação entre a Prefeitura e a população. Segundo, um regulamento que define as regras de participação da sociedade civil e do governo municipal, o papel de cada uma de suas instâncias e os critérios de distribuição dos investimentos. Terceiro, um calendário que define as atividades ao longo do ano.
As preferências da cidade são deliberadas em assembleias públicas, nas quais os cidadãos realizam suas escolhas e elegem seus representantes. Estes têm o papel de dirigir o processo de agregação das preferências, de distribuir os recursos entre as regiões, de indicar, a partir das escolhas das assembleias e de critérios técnicos, as obras que serão realizadas e de coordenar a elaboração do orçamento. Por fim, é publicada a lista de obras e serviços a serem realizadas no próximo ano.
A tabela abaixo revela a dimensão que o OP tomou nas grandes cidades brasileiras entre 1997 e 2008. Dos 106 municípios com população acima de 200 mil habitantes, 22 tinham OP entre 1997 e 2000, 43 entre 2001 e 2004 e 47 entre 2005 e 2008. Além do aumento do número de experiências a cada gestão, verifica-se que o percentual de cidades com OP cresce em proporção com o tamanho da mesmas.
O design do OP tem como objetivo atrair setores sociais pobres para a vida política dos municípios. Pesquisas sobre o perfil dos participantes do OP em Porto Alegre revelam que o integrante típico das assembleias é do sexo feminino e possui renda e escolaridade menores do que o morador mediano das cidades. Os delegados e conselheiros, por sua vez, possuem escolaridade e renda mais próximas da média, e a maioria é do gênero masculino. Esse parâmetro é similar em outras localidades que adotaram o projeto.
A população de menor renda participa por dois motivos. Primeiro em razão das demandas discutidas nas assembleias, que abrangem serviços públicos e obras de infraestrutura voltadas às camadas pobres: as pautas mais votadas são de melhorias nas condições de moradia e habitação. Segundo por que os regimentos dos OPs possuem regras de distribuição de recursos que levam em consideração as carências das regiões, beneficiando as áreas pobres das cidades.
A análise dos efeitos redistributivos do OP realizada para diferentes cidades no Brasil revela que as regiões mais pobres receberam maior volume de obras e serviços do que as mais ricas3. A Figura 1 mostra que o número de demandas concluídas e em andamento nas 16 regiões de Porto Alegre, entre 1990 e 2004, foi maior naquelas com menor renda média dos responsáveis por domicílios. Ou seja, o OP redistribui os impostos na forma de obras e serviços públicos para a população mais pobre.
Mas apesar de abrir canais de participação política direta a grupos sociais com reduzido acesso à esfera pública, o OP possui limitações para reverter as desigualdades que marcam as cidades brasileiras. Uma restrição são os recursos financeiros que as prefeituras gerenciam. Mesmo nos casos em que o OP delibera sobre o total dos investimentos municipais, o montante é diminuto frente às demandas da população. E na maioria das vezes, as experiências de OP têm reduzido papel na definição das receitas orçamentárias dos municípios. A essas questões deve ser somada a possibilidade de crise fiscal, que pode impedir o OP de ter um papel redistributivo.
Falta de vontade política
Outro limite é a vontade política do grupo que está à frente do executivo em relação ao processo, o qual se manifesta em um reduzido percentual dos investimentos deliberados pelo OP e até mesmo pela não execução das demandas decididas.
Um problema adicional é quem provê o conhecimento técnico para elaborar o orçamento e executar as demandas. Os funcionários públicos que possuem esse saber podem utilizá-lo para evitar decisões que contrariam os seus interesses ou do executivo local. Em várias experiências existem critérios técnicos que definem as condições necessárias para a execução de uma demanda, o que muitas vezes gera conflito permanente com as demandas da população, como ocorre em Porto Alegre.
Por fim, dois problemas de natureza intrínseca ao OP devem ser considerados. Primeiro, o OP possui pouca capacidade para deliberar sobre o planejamento das cidades: enquan
to este diz respeito a um empenho de médio e longo prazo, a elaboração do orçamento é uma tarefa de curto prazo; contudo, não seria difícil dotar o OP de um espaço para planejar o futuro do município. Segundo, os OPs vêm tendo um papel reduzido nas intervenções na atividade econômica das cidades − em particular, os programas de geração de renda e de emprego têm recebido escassa atenção, pois as demandas são centradas nas áreas de habitação, infraestrutura, educação e saúde. Porém, há um largo espaço que abrange desde programas de formação e qualificação profissional até a organização de cooperativas e de empresas municipais que deveriam ser objeto de consideração por parte dos OPs. Isso representaria uma participação mais efetiva da população pobre e do Estado na economia do município.
A análise do OP revela que a alternativa proposta pelos setores de esquerda e movimentos populares em busca de avanços democráticos para erigir um país mais justo e equitativo está correta. Cabe a esses setores sociais pensar e sugerir inovações que permitam maior controle social sobre a gestão do Estado, das empresas públicas e das empresas privadas. Isso possibilitaria a construção de um país digno para todos os brasileiros.
*Adalmir Marquetti é professor titular da PUC-RS e um dos organizadores do livro Democracia Participativa e Redistribuição: análise de experiências de Orçamento Participativo, São Paulo, Editora Xamã, 2008.