Até que o Mágico de Oz perca a voz todo mundo já se calou
Militares, magistrados e a opinião pública. Quais os efeitos no jogo político da participação de instituições que não tem o veto e nem a adesão do voto?
Desde o governo de Michel Temer (PMDB – SP), os militares voltaram à cena política brasileira não mais como uma referência do passado. Ganharam um marcador próprio como atores presentes no jogo político. Depois disso, o processo andou em escalada: o tuite do general Vilas Boas antes do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP) no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, foi o ponto alto até bem pouco tempo, quando assumiu o Ministério da Saúde um general da ativa, Eduardo Pazuello.
Não é preciso abordar o descalabro da condução da pandemia no Brasil. Fato é que Pazuello deu nome e rosto ao que antes era tratado, entre essa e aquela referência, como “militares”. É daí que se deriva o ponto-chave desse artigo: a materialização de uma imagem na comunicação política. O nome de uma categoria dito assim sem um personagem é um véu de proteção. Por isso, lembramos do Leão, do Homem de Lata, do Espantalho e da Dorothy, mas o Mágico de Oz é uma expressão dispersa sem referência visual. Até os sapatinhos vermelhos de Dorothy nos vêm à mente no seu tom cintilante, mas o Mágico nos escapa aos olhos. A alegoria infantil avança em um argumento já tratado por muitos analistas: o desgaste da imagem dos militares.
Vou além: os militares não apenas se enlaçam ao governo Bolsonaro como, de certa forma, em uma aparente contradição, descolam-se dele ao serem reconhecidos não mais como um apoio de bastidor. Enquanto escrevo esse artigo, a categoria passa a ocupar páginas e páginas, links e links, tuites e tuites. Nos últimos dias li sobre bolsas de doutorado para os integrantes da instituição (vale comparar com os investimento nas agencias de fomento nacionais como Capes e CNPq), também escutei dois podcasts mencionando os cargos que ocupam no governo, uma entrevista com o José Murilo de Carvalho sobre o tema, o próprio Temer opinou sobre o assunto noutro texto e assim por diante. Nesse sentido, repito que Pazuello deu um rosto e um nome, temporários que fossem, a um processo mais perene. À esquerda, à direita e ao centro, eis o tema.
Esboço esse quadro geral para fazer uma comparação com o que ocorreu com o Sistema de Justiça, mais precisamente com o Judiciário. O “governo dos juízes”, se pensarmos no projeto político da Lava Jato, era uma sombra até ontem. Sérgio Moro, que também personificou esse movimento, pode estar fora do jogo político, mas o estrago para a magistratura permanece. Aí avanço na comparação: a característica fundante do Judiciário é ser um poder contramajoritário. Longe de mim imaginar que isso signifique imparcialidade ou mesmo que a Justiça não sofra influência da opinião pública. Não é isso. Mas há limite e regulação. Ao cruzar a fronteira das aspirações da política representativa a Justiça fere sua própria razão de ser. O Mágico de Oz perde a voz.
Análise semelhante pode ser feita pensando nos militares. Há, contudo, um agravante. Se a magistratura até bem pouco tempo era uma “ilustre desconhecida”, o mesmo não se pode dizer das Forças Armadas. O passivo da ditadura cívico-militar continua aí tanto para os saudosistas de plantão que pedem a volta verde-oliva como para os tantos que ainda purgam a procura de uma reparação que não houve. Nunca é demais lembrar o quão tardia e limitada foi a Comissão Nacional da Verdade brasileira. No fundo, de todos os exemplos dados, fato é que não fizemos uma Justiça de Transição. A fratura exposta do regime autoritário ganhou um curativo que agora se esgarça a olhos vistos. Isso influencia no nosso ponto-chave: especificamente, pode-se dizer que a imagem dos militares na comunicação política tem um passado. Se estivéssemos no mundo do marketing diríamos que um “rebranding” da marca tanto esbarra nas consequências irremediáveis do jogo político como traz à superfície diversos fantasmas e valores que estavam debaixo do tapete e agora ganham os holofotes.
Esse é um complicador ao fato de que, tal como a Justiça, as Forças Armadas são instituições estatais e não eletivas. Ao se associar a um projeto político, tutelá-lo ou mesmo gestá-lo invariavelmente se cruza uma fronteira de aderência que, a longo prazo, é difícil apartar. Saímos do passado e vamos ao presente: quando a Justiça passou a ser associada a um projeto político esvaziou-se a sua essência, ela passou a ser cobrada por isso. O mesmo acontecerá com “os militares” que deixaram de ser algo distante para serem associados ao desempenho econômico, à gestão da pandemia, à política externa brasileira… tudo que é governo.
Alguns dados dão base ao argumento. Uma pesquisa XP/Ipespe divulgada nesta sexta, 11 de junho, mostra que, em 2018, antes da posse de Jair Bolsonaro como presidente, o índice de confiança dos brasileiros nas Forças Armadas era de 70%. Em junho de 2021, esse índice caiu para 58%. Não seria demais imaginar que o Mágico de Oz falará mas sua autoridade “distante e inabalável” perderá o encanto.
A questão é, em termos técnicos, como instituições não eletivas passam, com o auxilio precioso de personagens, nem sempre muito hábeis, a se tornarem elas próprias “atores” políticos. Ressalta-se: ao ocuparem o espaço da política representativa sem o escrutínio dos votos tanto ajudam a corroer a democracia como mostram que havia uma lacuna prévia. A busca por heróis de toga ou de farda é indicativo.
Contudo, aqui olho para a comunicação e não para o desenho institucional. E no jogo regular opinião publica muda de lado e as consequências sempre chegam. Vale lembrar que a inflação acumulada no Brasil no ano de 1982 foi de 99,71% e que, 1984, esse número subiu para 223,90%. Não tenho índices dos anos 1980 para comparar com a pesquisa XP/Ipespe de hoje, mas imagino que diante da crise econômica a confiança institucional não estivesse, digamos, em alta.
Recordamos disso hoje, em retrospecto de um desgaste incontornável. Mas, também é verdade que nos regimes de exceção a opinião pública é sufocada. Nem mesmo uma comparação com uma história infantil é possível. Todos se calam. Esse é um dos fatores que explicam como Sarney se tornou o nome e o rosto associado à inflação. O personagem estava lá e àquela altura já era possível dizer algo.
Contudo, as questões mal resolvidas voltam. Então, cá estamos nós, mais de 30 ano depois recuperando a fantasia de instituições “salvadoras” frente à lacuna da política representativa. Não tenho dúvida que as consequências sempre chegam. A questão é o preço e tempo gastos até a tragédia se converter em um desgaste em relação ao qual se possa falar e escrever.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga). Seu trabalho se volta para a