Atuns com escolta paramilitar
Em outubro de 2009, a captura do atuneiro frigorífico gigante Alakrana e os 47 dias de sequestro dos 36 membros da tripulação causaram forte comoção e deram ampla visibilidade aos problemas enfrentados por essas embarcações, que operam principalmente na costa da Somália.Edouard Sill
Em 9 de abril de 2010, no aeroporto das ilhas Seychelles, um avião cargueiro da força área espanhola descarregou um lote de metralhadoras e de fuzis de ataque proveniente do estoque do Exército. Os destinatários eram funcionários de empresas espanholas de segurança privada, beneficiárias de novos contratos de proteção dos atuneiros, que pescam ao largo da orla da Somália. Essa entrega era a segunda desde 2009, após os novos ataques sofridos por alguns navios em 2010, que foram reforçados por metralhadoras adicionais. Com elas, comemorou, María Teresa Fernández de la Vega, então vice-presidente do governo, a pesca espanhola dispõe de “armas adequadas”, dotadas de um “efeito dissuasivo” contra a pirataria.
Em outubro de 2009, a captura do atuneiro frigorífico gigante Alakrana e os 47 dias de sequestro dos 36 membros da tripulação (dos quais 16 espanhóis) causaram forte comoção na península e proporcionaram uma ampla visibilidade para os problemas enfrentados nos últimos anos pelos atuneiros que operam nessa região.
Embora até hoje as abordagens por piratas nunca tenham causado vítimas diretas1, daqui para frente o estresse e os custos ocasionados por essa ameaça são levados muito a sério. Sem falar nos resgates que eventualmente precisam ser pagos para o navio ser libertado.
Ao contrário do que garantem os discursos antes tranquilizadores da Organização Marítima Internacional (OMI) e dos militares europeus da operação Atalanta que navegam na região, os armadores espanhóis denunciam um grande número de ataques. “Estamos sendo expulsos da nossa zona de pesca”, explica um capitão atuneiro. “Os piratas acabaram conquistando um raio de ação em mais da metade desta zona.” E isso “com toda impunidade2”.
Em setembro de 2009, o presidente daOrganização dos Produtores Associados dos Grandes Atuneiros Frigoríficos (Opagac) denunciou três ataques na região no espaço de duas semanas. Na realidade, eles se resumem na maioria dos casos à detecção de uma embarcação suspeita e ao acionamento dos protocolos de segurança, os quais incluem o abandono da rede de cerco3 e das presas, além de fuga em alta velocidade. Militares espanhóis sugerem até mesmo que a ameaça tenha sido exagerada intencionalmente pelos armadores, de modo a aumentar a pressão nas negociações com os ministérios envolvidos.
De fato, alguns atuneiros reconhecem que não respeitam as convenções de segurança habituais. Um capitão espanhol considerou recentemente como uma “piada” o fato de ter de pescar em dupla, e, portanto, compartilhar os cardumes de atum.
O Artza, que foi alvo de um ataque abortado em maio de 2010, se encontrava a 210 milhas marinhas (389 quilômetros) da orla somali – apesar de receber vários apelos para que mudasse a sua rota –, ou seja, muito perto da zona econômica exclusiva do país, onde a pesca por parte de navios estrangeiros é normalmente proibida.
Os patrões espanhóis da pesca se voltam para pedir ao Estado que garanta a proteção deles. “Se eu pago meus impostos, é para que o meu governome defenda”, resume Moisés Pérez, um dirigente da Companhia Europeia dos Tunídeos4. Nesse sentido, o poderoso sindicato que é a Confederação Espanhola da Pesca (Cepesca) e os dois consórcios, Opagac e a Associação Nacional dos Armadores de Atuneiros Frigoríficos (Anabac) demandaram ao governo espanhol o embarque de militares a bordo dos atuneiros, um sistema já adotado pela França e pela Bélgica.
Em outubro de 2009, o Partido Nacionalista Basco (PNV), apoiado pelo Partido Popular (PP), apresentou ao Parlamento uma proposta de lei visando que a missão de proteção das forças armadas espanholas se estendesse aos navios de pesca, em nome da salvaguarda dos empregos dos pescadores de atum.
enxugando os gastos
O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), apoiado pela Izquierda Unida, apontou então a infactibilidade jurídica do procedimento: por mais que os atuneiros estejam sob a jurisdição espanhola, eles não estariam em território espanhol. Além disso, a conversão de um atuneiro num “navio de guerra”, no qual “quatro fuzileiros navais estariam às ordens de um capitão de pesca”, seria uma “loucura”.
A ministra da defesa, Carme Chacón, lembrou nessa ocasião que recorrer à segurança privada se revelaria menos dispendioso do que a contribuição espanhola para a operação Atalanta e que a Espanha não tinha tantos soldados no mundo quanto a França.
Com isso, a proposta do PNV foi recusada, mas o debate prosseguiu até o fim do ano, conduzindo, entre outras medidas, à modificação por decreto real do regulamento sobre as armas, de modo a permitir que as empresas marítimas possam recorrer a firmas de segurança privadas. O texto acrescenta uma exceção, autorizando o transporte e o uso de armas de guerra (de um calibre inferior ou igual a 20 milímetros) nos “navios de comércio e de pesca que navegam sob o pavilhão espanhol em águas onde existem graves riscos para a segurança das pessoas e dos bens5”.Os parlamentos autônomos basco e galego foram além, votando uma lei autorizando o poder público a assumir um quarto das despesas, afirmando que “a segurança deve ser pública”.O Estado espanhol seguiu o exemplo e, com isso, a conta da contratação da segurança privada a ser paga pelo armador foi reduzida pela metade.
Esse mercado amplamente subsidiado pelos fundos públicos não demorou a despertar o interesse de empresas espanholas, algumas das quais até mesmo novatas na matéria. A proteção privada dos navios de pesca já existia anteriormente. Vários armadores bascos e um galego já tinham contratos firmados desde 2008 com companhias de segurança privadas anglo-saxônicas (Minimal Risk, Corporate Risk Internationale Secure West). Mas esses contratos diziam respeito apenas aos navios de pesca com pavilhão das Seychelles, cuja legislação autoriza esse tipo de prestação de serviços.
As firmas de segurança espanholas, que até então haviam se mantido na posição de meras observadoras, souberam explorar em seu proveito a atenção nacional despertada pelo caso do Alakrana. Valeram-se habilmente da noção de “insegurança marítima” que elas haviam contribuído para definir e do qual eram as principais beneficiárias. Por ocasião daquele ataque, pequenos patrões das sociedades de segurança foram alçados pela mídia à categoria de verdadeiros peritos em geoestratégia e passaram a distribuir conselhos e previsões apocalípticos, em detrimento dos militares profissionais que por razões históricas padecem de uma má reputação junto ao público.
Até então circunscritas à proteção de bens ou de pessoas (em particular no País Basco e na América Latina), essas empresas decidiram então rivalizar com a concorrência estrangeira. Para tanto, elas optaram por se valer da “preferência espanhola” preconizada pelo governo e amplamente repercutida como “garantia” em alguns veículos de comunicação, que consideram essas companhias como as equivalentes modernas dos corsários.
Assim, o presidente da sociedade de segurança Asociación Española de Escoltas (ASES), Vicente de la Cruz, desaconselhou os armadores espanhóis a recorrere a prestadores de serviços estrangeiros, invocando precedentes de colusões entre piratas, máfias e “mercenários”.
Os empreendedores de segurança espanhóis conduziram ao mesmo tempo uma intensa campanha de autopromoção junto à mídia. Essa, por sua vez, manifestou uma paixão por reportagens sobre os estágios práticos e os treinamentos marciais das academias privadas criadas por essas sociedades e destinadas a selecionar o futuro pessoal habilitado a embarcar nos atuneiros.
A academia da GM Formación, em Alicante, por exemplo, ministra um curso de “proteção marítima” no qual, durante uma semana, os alunos têm aulas de autodefesa, de tiro (em boias) e de navegação no porto da cidade. Entre os participantes, que pagam 600 euros cada um por esse ciclo de formação, apenas alguns serão admitidos em definitivo numa equipe embarcada.
Na academia criada pela sua concorrente Eulen Seguridad em Valência, 200 candidatos se inscreveram no espaço de dois dias para ocupar os 30 lugares definidos pelo contrato com um armador atuneiro.
Na ASES os recrutas fazem a sua formação em público, numa pequena aldeia de pescadores da Catalunha, em Ametlla de Mar. No último dia do seu treinamento, a companhia havia convidado os canais de TV para um espetáculo ao vivo. Em Ciudad Real, a sociedade Levantina de Seguridad adquiriu um terreno de 24.000 hectares equipado com polígonos de tiro. Para efeito de treinamento marítimo, os seus alunos dispõem de apenas uma noite e um dia em alto-mar perto de Alicante. As equipes de agentes de segurança embarcados variam entre quatro e oito homens, no quadro de contratos avaliados entre 24.000 e 55.000 euros por navio, dependendo do tipo de prestação de serviço escolhido. Segundo os cálculos da empresa ASES, é preciso contar de fato com 72 mil euros mensais para uma equipe de proteção embarcada, o que corresponde a 12.000 euros de salário por agente e por mês, além de custos indiretos que incluem o equipamento individual de combate, o encaminhamento do material e a hospedagem num hotel para uma semana de descanso após um mês no mar.Algumas empresas espanholas já estudam investir na compra de navios “corsários” privados para enfrentar a concorrência da sociedade de segurança britânica Sea Marshal, que dispõe de navios-patrulha militares privados na região das Seychelles. Outras, como a andaluz UC Global, não escondem mais seu caráter de verdadeira sociedade militar privada, mais banalmente designada como “mercenária”.
Com isso, a abordagem espanhola dá um novo fôlego ao debate sobre a evolução das atividades das empresas privadas de segurança. Estas últimas já dispõem de um mercado criado sob medida, no qual a natureza das missões não deverá se limitar, no médio prazo, apenas à proteção dos navios de pesca. Daqui para a frente, elas podem utilizar em plena legalidade um armamento militar, o que abre uma brecha no controle das atividades mercenárias e paramilitares.
navios ilegais
Todas as condições estão reunidas para uma escalada na violência: enquanto as abordagens nunca causaram a morte de um marinheiro, o número de somalis que foram abatidos ou afogados permanece desconhecido. Ora, a escalada coercitiva e a desproporção dos meios empregados, de maneira alguma, conseguirão pôr fim à pirataria.
O debate em torno da segurança ocultou por completo a questão da presença na região de navios industriais gigantes, proibidos em outros mares, que praticam uma pesca intensiva.
Segundo um relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) publicado em 2005, cerca de 700 navios estrangeiros pescaram ilegalmente nas águas da Somália6. Ora, essa pesca furtiva em grande escala causaria perdas de cerca de 300 milhões de dólares anualmente a um país classificado entre os mais pobres no mundo.
Mesmo se a pirataria for enfrentada pelos navios pesqueiros, é difícil imaginar como, neste contexto, ela poderia desaparecer. Ao contrário: é provável que ela se adapte aos métodos de guerra utilizados contra ela, garantindo com isso um mercado promissor para as empresas de segurança de vocação mercenária.
*Edouard Sill é historiador.