Aurora da Odisseia
Neste momento, a ONU constitui a única fonte de legalidade internacional. Por isso, a intervenção atual na Líbia é legal, segundo o direito internacional; legítima, segundo os princípios de solidariedade humanitária;e desejável, para a fraternidade que une os povos na luta por liberdade.Ignacio Ramonet
“Todos os povos do mundo
que lutaram pela liberdade
exterminaram, ao final, seus tiranos”,
Simon Bolívar
Os insurgentes líbios merecem a ajuda de todos os democratas. O coronel Kadafi é indefensável. A coalizão internacional que o ataca carece de credibilidade. Não se constrói uma democracia com bombas estrangeiras. Por serem em parte contraditórias, essas quatro evidências nutrem certo mal-estar, particularmente no seio das esquerdas.
A insurreição das sociedades árabes se constitui no maior acontecimento político internacional desde a queda do socialismo autoritário de Estado em 1989. A queda do muro do Medo nas autocracias árabes é o equivalente contemporâneo da queda do muro de Berlim. Um autêntico terremoto mundial. Por produzir-se no epicentro do “foco perturbador” do planeta (este marco de todas as crises que vai do Paquistão ao Saara Ocidental, passando pelo Irã, Afeganistão, Iraque, Líbano, Palestina, Somália, Sudão e Darfur) sua onda de expansão modifica toda a geopolítica internacional.
Algo se rompeu para sempre no mundo árabe no passado 14 de janeiro. Nesse dia, manifestantes tunisianos que há semanas clamavam nas praças por liberdade e democracia conseguiram depor o déspota Ben Ali. Começava o degelo das velhas tiranias árabes. Um mês depois, no Egito, coração da vida política árabe, um poderoso movimento de protesto social expulsava do poder, por sua vez, o general Mubarak. Então, como se de repente se descobrisse que os regimes autoritários, do Marrocos ao Bahrein, fossem colossos com pés de areia, dezenas de milhares de cidadãos árabes se lançaram às praças gritando sua insatisfação infinita com os ajustes sociais e com as ditaduras.1
A força espontânea desses ventos de liberdade surpreendeu a todas as chancelarias do mundo. Quando começaram a soprar sobre as ditaduras aliadas do Ocidente (Tunísia, Egito, Marrocos, Jordânia, Arábia Saudita, Bahrein, Iraque, Iêmen), as grandes capitais ocidentais, começando por Washington, Londres e Paris, se mantiveram em um prudente mutismo ou alternaram declarações que revelavam seu profundo mal-estar ante o risco de ver desaparecer seus “amigos ditadores”.2
Muito mais surpreendente foi, durante essa primeira fase (de meados de dezembro a meados de fevereiro), o silêncio dos governos progressistas da América Latina, considerados por toda uma parte da esquerda internacional como seu principal referente contemporâneo. Governos que chegaram ao poder pelo voto, embalados por poderosos movimentos sociais (na Venezuela, Brasil, Uruguai e Paraguai) e que, em vários países (Equador, Bolívia, Argentina), depois de haverem resistido a ditaduras militares, haviam deposto pacificamente governantes corruptos.
A solidariedade para com as insurreições árabes deveria ter sido imediata. Não o foi. Foi preciso esperar o 14 de fevereiro – três dias depois da queda do odiado Mubarak e um dia antes do início da insurreição popular na Líbia – para que, por fim, um líder latino-americano qualificasse a rebelião árabe de “revolucionária” em uma declaração que explicava com lucidez: “Os povos não desafiam a repressão e a morte, nem permanecem noites inteiras protestando com energia, por questões simplesmente formais. Eles o fazem quando seus direitos legais e materiais são sacrificados sem piedade às exigências insaciáveis de políticos corruptos e dos circuitos nacionais e internacionais que saqueiam o país”.3
progressismo latino-americano mudo
Mas quando, naturalmente, essa rebelião se estendeu aos países autoritários do mal chamado “socialismo árabe” (Argélia, Líbia e Síria), abateu-se novamente um pesado mutismo nas capitais do progressismo latino-americano. Politicamente, isso podia ainda interpretar-se de duas maneiras: simples continuidade do prudente silêncio que até então, globalmente, essas chancelarias haviam observado com respeito a acontecimentos muito distantes de seus principais centros de interesse; ou expressão de um mal-estar político frente ao risco de perder, em seu contencioso com o imperialismo, aliados estratégicos.
Diante do perigo de que triunfasse essa segunda opção, vários intelectuais relevantes4 avisaram de imediato que isso significaria algo impensável para governos seguidores da mensagem universal do bolivarianismo. Porque seria afirmar que uma relação estratégica entre Estados é mais importante que a solidariedade para com os povos em luta. O que conduziria a fechar os olhos ante qualquer eventual atrocidade contra os direitos humanos.5 O que levaria o ideal solidário da revolução latino-americana a naufragar no gelado oceano da “Realpolitik”, que considera que, no tabuleiro da política internacional, os países se reduzem a seus Estados. Jamais leva em conta as suas sociedades.
Os Estados se movem somente em função de seus frios interesses e de suas alianças estratégicas (cuja finalidade principal é a preservação do Estado, não a proteção da sociedade). Desde a paz de Westfalia em 1648, a doutrina geopolítica estabelece que a soberania dos Estados é intangível em virtude do princípio da não ingerência, e que um governo, não importa quais sejam os meios pelos quais chegou ao poder, tem total liberdade de fazer o que queira em seus assuntos internos.
Semelhante ideia da soberania, que continua dominante, viu sua legitimidade se erodindo desde o final da Guerra Fria, em 1989. Isso em nome dos direitos dos cidadãos e de uma concepção ética das relações internacionais. As ditaduras, cujo número se reduz ano a ano, vêm se tornando a cada dia mais ilegítimas e moralmente inaceitáveis porque, entre outros grandes abusos, privam as pessoas de seus atributos de cidadão.
Com base nesse argumento se desenvolveu nos anos 1990 o conceito de direito de ingerência, ou dever de assistência, que conduziu, sob vários pretextos de fachada, a desastres político-humanitários de grande envergadura em Kosovo, Somália, Bósnia e finalmente na guerra do Iraque.6
Mas esses trágicos desastres não modificaram a ideia de que um mundo mais civilizado deve abandonar a concepção de soberania interna, que se estabeleceu quase quatro séculos atrás, em nome da qual se cometeram incontáveis atrocidades. Com esse espírito, muitos líderes latino-americanos denunciaram com justa razão a passividade ou a cumplicidade de grandes potências democráticas ante os graves crimes cometidos, entre 1970 e 1990, pelas ditaduras militares no Chile, Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e tantos outros países mártires da América Central e América do Sul.
Por essas razões surpreendeu que, quando na Líbia, a partir de 15 de fevereiro, começaram os protestos sociais que foram imediatamente reprimidos pelas forças do coronel Kadafi com uma desproposital violência (233 mortos nos primeiros dias),7 nenhuma mensagem de solidariedade dirigida ao movimento insurrecional dos cidadãos chegou da América Latina. E essa solidariedade não se manifestou nem mesmo quando ocorreu o “Tripolitaço”, no qual 40 mil manifestantes denunciaram a carestia de vida, a degradação dos serviços públicos, as privatizações impostas pelo FMI e a ausência de liberdades. Da mesma forma que quando ocorreu o “Caracaço”, em 27 de fevereiro de 1989 na Venezuela, essa insurreição tripolitana se estendeu como um rastilho de pólvora por toda a capital, se multiplicaram as barricadas, ardeu a sede do governo, os postos de polícia foram incendiados, a TV oficial saqueada, o aeroporto ocupado e o palácio presidencial cercado. O regime líbio começou a cambalear.
repressão com força extrema
Nessas circunstâncias qualquer outro dirigente teria compreendido que a hora de negociar e de abandonar o poder havia chegado.8 Não o coronel Kadafi. Sob o risco de colocar o país em uma guerra civil, o “guia”, no poder há 42 anos, ordenou que as Forças Armadas reprimissem os protestos com canhões e a força extrema. O canal Al-Jazeera mostrou os aviões militares metralhando os manifestantes civis.9 Em Benghazi, um grupo que participava dos protestos assaltou um arsenal da guarnição local e se apoderou de milhares de armas leves. Vários destacamentos militares enviados por Kadafi para sufocar em sangue a rebelião nessa cidade se somaram, com seus tanques e apetrechos, à rebelião. A guerra civil começava em condições muito desfavoráveis para os insurretos. Uma guerra imposta por Kadafi contra um povo que estava pedindo pacificamente por mudanças.
Até esse momento as capitais da América Latina progressista continuavam silenciosas. Nem uma palavra de solidariedade, nem mesmo de compaixão com os rebeldes civis que lutam e morrem por liberdade. Até que, em 21 de fevereiro, com a intenção de se defender de qualquer acusação contra ela, a diplomacia britânica – cuja responsabilidade é central na reabilitação do coronel Kadafi, a partir de 2004, na cena internacional, – pela voz do ministro de relações exteriores, William Hague, anuncia que o líder líbio “poderia ter fugido do país e estaria se dirigindo para a Venezuela”. A afirmação é falsa e Caracas a desmente categoricamente. Mas a mídia internacional aceita a proposição e põe de imediato o foco sobre a conexão que o Foreign Office havia sugerido. Minimizando a pompa com que Kadafi foi recebido em Roma, Londres, Paris ou Madri, a imprensa mundial insiste nas relações do “guia” com Caracas. O próprio Kadafi cai na armadilha e também menciona a Venezuela no seu primeiro discurso desde o começo dos protestos. Ele o faz para negar sua fuga para esse país, mas isso permite novas especulações sobre o “eixo Trípoli-Caracas”. Kadafi acrescenta: “os manifestantes são ratos, drogados, um complô de estrangeiros, de norte-americanos, da Al Qaeda e de loucos”.10
Essa catilinária de um “complô norte-americano” é retomada por vários dirigentes progressistas sul-americanos, como Daniela Ortega, presidente da Nicarágua, para expressar, cada um a seu modo, uma clara solidariedade ao ditador líbio. Sob o pretexto de que “a situação é confusa”, que a imprensa mente, que “ninguém sabe quem são os rebeldes”, não se ouve nem uma frase de solidariedade para com um povo sublevado contra um tirano militar que manda disparar contra seus próprios cidadãos. Nenhuma alusão tampouco à famosa sentença de Simon Bolívar, o Libertador: “maldito seja o soldado que volta suas armas contra o povo”, doutrina fundamental do bolivarianismo.
A imensidão do erro político é evidente. Uma vez mais governos progressistas concedem prioridade, em matéria de política internacional, às cínicas considerações estratégicas que se acham em perfeita contradição com sua própria natureza política. Esse comportamento irá se repetir frente a outro tirano local, o presidente da Síria, Bachar el Assad, cujas forças da repressão também dispararam suas armas contra os civis sublevados?
No que diz respeito à Líbia, a única iniciativa latino-americana solidária foi a do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que propôs, em 1º de março, o envio a Trípoli de uma Comissão Internacional de Mediação constituída por representantes de países do Sul e do Norte, para tratar de pôr fim às hostilidades e negociar um acordo entre as partes. Rechaçada por Seif el Islam, o filho do “guia”, mas aceita por Kadafi, essa tentativa de mediação será finalmente descartada por Washington, Paris, Londres, e os insurgentes líbios.
A partir daí, as chancelarias progressistas sul-americanas vão insistir na solidariedade com um perfeito iluminado. Há décadas que Muammar Kadafi deixou de ser aquele capitão revolucionário que, em 1969, derrubou a monarquia, expulsou do país as bases militares estadunidenses e proclamou uma singular “República árabe e socialista”. Desde o final dos anos 1970 sua errática trajetória e seus delírios ideológicos (veja-se seu disparatado Livro Verde) converteram-no em um ditador imprevisível e arrogante, semelhante àqueles tiranos loucos que a América Latina conheceu no século XIX com o nome de “caudilhos bárbaros”.11
ajuda internacional
A revolta atual começou em Benghazi quando, em 15 de fevereiro, as famílias dos que foram fuzilados, animadas pelos protestos nos países árabes, foram às ruas para exigir pacificamente a liberação do advogado Fathy Terbil, que há mais de 15 anos defende os direitos das famílias recuperarem os corpos dos parentes executados. As imagens da brutalidade da repressão com que foi tratada essa manifestação – difundidas pelas redes sociais e pela Al-Jazeera – escandalizaram a população. No dia seguinte, os protestos se estenderam para outras cidades. Somente em Benghazi, 35 pessoas foram assassinadas pela polícia e pelas milícias de Kadafi.
Essa repressão tão violenta contra a população civil criou um temor, em meados de março, quando as hostes de Kadafi começaram a cercar Benghazi, de que ocorresse um banho de sangue. Em discurso dirigido aos “ratos” dessa cidade, o “guia” ameaçou: “Preparem-se, chegaremos esta noite e vamos tirá-los do fundo de seus armários. Não haverá piedade”.12
Os pedidos de ajuda internacional que a população assediada em Benghazi clamava em altos brados deveriam ter sacudido de imediato os povos recentemente liberados da Tunísia e do Egito. Afinal, foram os primeiros. Mas, lamentavelmente, os governos desses países não souberam estar à altura dos acontecimentos históricos.
Nesse contexto de urgência, o Conselho de Segurança da ONU adotou, em 17 de março, a resolução 1973 que estabelece um regime de exclusão aérea na Líbia, com o objetivo de proteger a população civil e promover o fim das hostilidades. A Liga Árabe havia, previamente, dado seu consentimento. A resolução foi apresentada por um Estado árabe: o Líbano (além da França e do Reino Unido). Nem a China, nem a Rússia, que dispõem de direito de veto, se opuseram. Brasil e Índia tampouco votaram contra. Vários países africanos se pronunciaram a favor: África do Sul, Nigéria e Gabão. Nenhum Estado se opôs.
Neste momento, a ONU constitui a única fonte de legalidade internacional. Por isso, e contrariamente às guerras do Kosovo e do Iraque, que nunca contaram com o aval da ONU, a intervenção atual na Líbia é legal, segundo o direito internacional; legítima, segundo os princípios de solidariedade humanitária; e desejável, para a fraternidade internacionalista que une os povos na luta por sua liberdade.
Algumas potências muçulmanas, como a Turquia, participam da operação Aurora da Odisseia e emprestam credibilidade a uma iniciativa capitaneada pelos EUA, França, Reino Unido e Otan, os habituais suspeitos que se envolveram em múltiplas aventuras guerreiras sem qualquer amparo legal.
É importante observar que existem outras situações de injustiça na mesma região – o sofrimento palestino, a intervenção militar saudita no Bahrein, a brutalidade do governo do Iêmen – ante as quais as mesmas potências que atacam Kadafi fazem vista grossa.
Ainda que a ONU não tenha autorizado a deposição de Kadafi, parece ser esse o objetivo final da operação. Os povos árabes estão sem dúvida avaliando o justo e o injusto na atual intervenção militar na Líbia. Por enquanto, até o final de março, em nenhuma das capitais árabes se produziram manifestações de rechaço à operação Aurora da Odisseia. Ao contrário, como que estimuladas por ela, novos protestos contra as autocracias se intensificaram no Marrocos, Jordânia, Iêmen, Bahrein e, sobretudo, na Síria.
Ignacio Ramonet é jornalista, sociólogo e diretor da versão espanhola de Le Monde Diplomatique.