Austeridade fiscal permanente do fundo público
Com seus primeiros passos nos anos 1980, materialidade na década de 1990, continuidade na primeira década do novo milênio e agora constitucionalmente definido até 2036, pode-se dizer que o ajuste fiscal do fundo público, que é seletivo por castigar a população pobre, além de permanente, tornou-se constitucional
Dentro da discussão da política macroeconômica, desde a crise da dívida pública nos anos 1980, a política fiscal brasileira vem sofrendo um processo de inflexão quanto à sua capacidade de financiar o desenvolvimento nacional. Naquela década, com um quadro de desequilíbrio nas contas públicas advindo da ruptura do padrão de financiamento, da estatização da dívida privada para salvaguarda da riqueza privada e da inflação draconiana, a visão de política econômica dominante que passou a exercer influência dentro da estrutura estatal foi o monetarismo da Escola de Chicago, protagonizado por Milton Friedman.
A partir da crise fiscal e financeira nos anos 1980, consolidou-se uma vitória não somente política das ideias de Friedman, mas também ideológica. Contrariamente às ideias keynesianas, estabeleceu-se uma política fiscal de rigidez do fundo público, pois se partia do princípio de que a inflação e o déficit decorriam do gasto governamental. Assim, na visão que se tornou, até hoje, dominante, a gestão macroeconômica se voltou para a solvência e o equilíbrio das contas públicas com a contenção de despesas primárias, para assim prover credibilidade e confiança aos agentes econômicos.
Destarte, a crise fiscal e financeira dos anos 1980, retratada pela literatura econômica, depois que o governo federal assinou o acordo com o FMI em 1983, fez-se um conjunto de ajustes fiscais que representaram o fim do “ativismo fiscal” (Lopreato, 2013) do período desenvolvimentista – com destaque para os Decretos-Lei n. 2.396/1987, n. 2.397/1987, n. 2.433/1988, n. 2.434/1988, Lei n. 7.714/1988, n. 7.988/1989 e Medida Provisória n. 549/1989. De proporções estruturais, a crise atravessou a década em companhia dos desajustes do setor público para preservar a riqueza privada que se encontrava em “anarquia”. Quanto às políticas de ajuste para combater a inflação, não só as medidas econômicas foram inócuas, como também os resultados pioraram sensivelmente: a taxa média anual de aumento dos preços, que fora de 84,4% entre 1980 e 1984, subiu para 229,8% entre 1985 e 1989. Sendo assim, a crise adentrou com mais força os anos 1990.
Dentro do desempenho do capitalismo brasileiro, na década de 1990 difundiu-se no país uma mudança de política econômica que resultou numa “contrarreforma do Estado”, como bem discutido por Behring (2008). A esse respeito, com arranjo institucional assentado pelas políticas do Consenso de Washington – com os mesmos pressupostos do General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt) –, recomendadas pelo Banco Mundial e avalizadas pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp),1 a contrarreforma foi estruturalmente materializada pelo Programa de Ação Imediata (PAI) e depois pelo Plano Arida. Assim, se a Constituição Federal de 1988 foi colocada na contramão do mundo liberal de Thatcher-Reagan, o neoliberalismo de Fernando Collor de Mello/Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FHC) tratou de redefinir a carta náutica do país com as premissas neoliberais da sabedoria do mercado.
Por meio do PAI e, principalmente, do Plano Arida, estabeleceu-se um conjunto de reformas pró-mercado que corresponderam a juros elevados, superávit primário e equilíbrio nas contas públicas. Na prática, estava ocorrendo a convergência da política econômica com a agenda dos policy makers, ou melhor, isso funcionaria como uma espécie de garantia de um ambiente econômico de maior previsibilidade para os agentes formarem suas expectativas e tomarem suas decisões racionais, baseadas em regras, antecipando os benefícios e internalizando os custos.
No embalo da globalização, ao aderir às propostas do Consenso de Washington, o governo brasileiro se comprometeu com determinado programa de ajuste que envolvia uma rígida disciplina fiscal, liberalização financeira e comercial, desregulamentação das barreiras de entrada e privatização de empresas públicas. A mensagem, com um viés neoliberal e um verniz modernizante, acabaria sendo absorvida pelas elites políticas, grande mídia, empresários e intelectuais. Desde então, a mensagem de verniz modernizante passou a fazer parte da narrativa e da ação da elite nativa, como se de sua iniciativa e de seu interesse fosse.
Para os neoliberais que tomaram a dianteira, as medidas de controle do gasto público representaram um começo de arrumação da casa, isto é, a reorganização fiscal foi a “pedra fundamental” do Plano Real no processo de estabilização dos preços (Brasil, 1993). Partindo desse princípio, sem isso, qualquer esforço de combate à inflação teria curta duração e estaria fadado ao fracasso.
Com as velhas receitas do FMI e do Banco Mundial desenhadas nos anos 1980 para que se chegasse ao equilíbrio fiscal, na década de 1990 os monetaristas que conduziram a política econômica aprofundaram com radicalidade o projeto neoliberal, editando um conjunto de leis e decretos de austeridade. Entre eles, destacam-se: i) Decreto n. 21/1991; ii) Decreto n. 475/1992; iii) PAI/1993; iv) Plano Arida/1993; v) Lei n. 9.249/1995; vi) Lei n. 9.430/1996; vii) Lei n. 9.496/1997; viii) Medida Provisória n. 1.602/1997; ix) Lei n. 9.532/1997; x) Decreto n. 2.773/1998; xi) Memorando de Política Econômica/1998; e, por fim, xii) Memorando de Política Econômica/1999.
Partindo de uma postura crítica social, a política fiscal de ajustamento ao longo desses vinte anos não ajudou na solvência da dívida pública, até porque houve um aumento exponencial, nem resultou na retomada do investimento privado. Num contexto macroeconômico de decomposição da atividade econômica, os sucessivos programas de ajuste, em seu amplo sentido, contribuíram para desaquecer a economia e retrair o parque industrial herdado das décadas anteriores. Proceder a um ajuste de caráter recessivo não representa nenhum avanço na direção oposta à superação da crise capitalista, ainda mais numa economia periférica e dependente como a brasileira.
Nesse sentido, observa-se que a política fiscal ao longo das décadas de 1980-1990 acabou se confundindo com a tentativa das autoridades econômicas em restringir o fundo público, de maneira a viabilizar o cumprimento das metas acordadas com o FMI ou com os objetivos fixados pela política de equilíbrio orçamentário. Em outros termos, a opção pelo ajuste estava restrita à execução do orçamento primário, não estando previsto nenhum ajuste nas despesas financeiras. A questão é comprimir o fundo público com políticas sociais aos trabalhadores para suportar o crescente pagamento de juros – nos últimos doze meses, os juros nominais alcançaram R$437,1 bilhões (6,9% do PIB) – e a amortização da dívida aos rentistas.
No interior desse debate, esterilizou-se a política fiscal ao superávit. Seguindo essa tradição, sua função passou a se resumir em: i) fiadora da estabilidade macroeconômica; ii) âncora da política monetária; e iii) farol do comportamento esperado das principais variáveis macroeconômicas. Limitando a política fiscal enquanto valor síntese do superávit primário, não pode haver nenhum sinal de dominância fiscal. Partindo desse pressuposto ortodoxo liberal reducionista, se a política fiscal for muito expansionista, a política monetária será ineficaz, isto é, a dominância fiscal é causa determinante da vulnerabilidade macroeconômica do país.
Recaindo exclusivamente sobre a população pobre, a austeridade ganhou amplitude na primeira década do ano 2000 com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que acabou estabelecendo regras permanentes para os gastos públicos. Entre 2000 e 2005 houve um conjunto de memorandos de política econômica (oito ao total) e cartas de intenções (dez) ao FMI que sinalizavam o compromisso do governo com a rigidez fiscal, isso sem contar a Carta ao Povo Brasileiro. Mesmo sem ter sido renovado o acordo com o FMI em 2005, continuou-se seguindo uma política com generosos superávits, porém com expansão nas despesas primárias em função do crescimento real da arrecadação e de expansão dos direitos sociais e garantias fundamentais dentro do fundo público.
No gráfico nesta página, é possível visualizar uma redução do superávit entre os anos 2009-2013 – exceto 2011 – quando comparados ao período 2003-2008. A evolução, ou mesmo retração, do resultado primário dependeu do comportamento da arrecadação primária e da despesa primária. Em vista disso, embora no governo Dilma tenha se reduzido o superávit, não havia desajuste fiscal, apesar do crescimento do gasto público. Mas, a partir do final de 2011 e início de 2012, quando a conjuntura internacional mudou, mesmo gerando superávit, houve uma piora relativa dos indicadores econômicos, com destaque para a queda do PIB. Logo, começou-se novamente a falar em ajuste fiscal para supostamente reverter o quadro de instabilidade que se desenhava. Assim que se passaram as eleições, em 2015, o governo Dilma-Levy realizou um forte ajuste numa economia já fragilizada, o que por sua vez agravou os problemas existentes, contribuindo para a desaceleração econômica.
Diferenciando-nos da ortodoxia que governa o pensamento econômico, isto é, partindo de uma interpretação heterodoxa, a recessão de 2015, além de ser resultado do ajuste fiscal “levyano”, também é fruto de uma política monetária contracionista e de um conjunto de outros equívocos – por exemplo, a política de desoneração tributária. Nessas condições, o ajuste aprofundou a desaceleração da atividade econômica e acelerou a queda da arrecadação tributária; em 2016, a arrecadação, que foi de R$ 1,3 trilhão, representou uma queda real de 2,9%, registrando o pior resultado dos últimos seis anos. Não custa lembrar que o próprio FMI, um dos principais patrocinadores do austericídio na periferia, publicou um texto assinado por seu economista-chefe questionando todo o conhecimento que se pensava estar cristalizado.
Nesse debate, cabe também registrar que, enquanto a presidenta do FMI, Christine Lagarde, defendeu, em janeiro de 2017, no Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), que as políticas de combate à desigualdade social devem ser priorizadas, Henrique Meirelles apoiou medidas ásperas de contenção de gastos públicos, as quais afetaram áreas como saúde e educação. Em resumo, Lagarde contradisse Meirelles, que por sua vez está contrariando o mínimo do padrão civilizatório estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Depois de dezesseis anos (1998-2013), em 2014 tivemos um déficit primário de 0,6% do PIB. Nos anos seguintes, o déficit se expandiu para 1,2% em 2015 e 2,4% em 2016. Pasmem: contrariando o FMI, o governo Temer-Meirelles, para restabelecer o controle das despesas públicas, criou, por meio da Emenda Constitucional n. 95/2016, um teto para crescimento das despesas públicas vinculado à inflação pelo prazo de vinte anos. Na área fiscal, enquanto diversas economias deram maior flexibilidade no sentido anticíclico de arrefecer a crise do capital, no Brasil ocorreu o inverso.
Tratando-se de um ajuste constitucional, a austeridade estrutural que se arrola desde o início da década de 1980 é questão sine qua non do fetiche do pensamento ortodoxo para o país trilhar o caminho do crescimento, do emprego e da distribuição de renda e riqueza. Em termos metafóricos, o ajuste fiscal é uma espécie de “Posto Ipiranga” do economista neoliberal como salientou o professor Pedro Rossi, ou seja, tudo se resolve com ajuste (emprego, distribuição de renda, crescimento econômico etc.).
Reforçando os caprichos do 1% mais rico, não podemos ter dúvida de que o teto do gasto público e as contrarreformas da Previdência (PEC n. 247/2016) e Trabalhista (PLN n. 38/2017) irão tensionar as disparidades sociais e regionais já existentes no Brasil. Não bastasse isso, temos ainda o ataque sistêmico dos neoliberais às vinculações constitucionais do fundo público, como saúde e educação, que protegem os serviços essenciais prestados pelo Estado.
Todavia, em vez da política fiscal ser utilizada para dar efetividade à demanda efetiva e se contrapor ao ciclo econômico, com a presente crise os monetaristas rebaixam-na como valor síntese do superávit primário, como pressuposto para restabelecer a confiança na solvência da dívida/PIB. Ou seja, essa posição reforça a tese da “contração fiscal expansionista”, que busca a sustentabilidade da dívida de modo a sinalizar para o mercado que não haverá nenhum risco de default que venha a gerar instabilidade nas variáveis macroeconômicas, principalmente a taxa de juros e inflação.
Assim, com seus primeiros passos nos anos 1980, materialidade na década de 1990, continuidade na primeira década do novo milênio e agora constitucionalmente definido até 2036, pode-se dizer que o ajuste fiscal do fundo público, que é seletivo por castigar a população pobre, além de permanente, tornou-se constitucional.
*Juliano Giassi Goularti é doutorando pelo Instituto de Economia da Unicamp.