Bandeira religioso (e libertino)
A edição cuidadosa da antologia “Poemas religiosos e alguns libertinos”, de Manuel Bandeira, organizada por Edson Nery da Fonseca, nos permite observar alguns dos caminhos da inspiração banderiana pouco percorridos pela críticaPablo Simpson
Davi Arrigucci Jr., em seu estudo importante sobre Manuel Bandeira, propôs como uma de suas chaves interpretativas a noção de humildade. Virtude que é a consciência das próprias limitações, para um poeta assumidamente “menor”. Humildade das palavras simples, de todo o dia. Atentas a um cotidiano de que se buscava extrair, conforme a herança baudelairiana, o sublime, em seus instantes efêmeros. E que Arrigucci desvendou no belo poema “Maçã”, onde palpitava “a vida prodigiosa/ Infinitamente”.
A humildade é um termo carregado de sentido religioso. Encontra-se no Tratado dos graus da humildade e do orgulho (1127), de São Bernardo de Claraval, como um primeiro momento da união do homem com Deus, através do conhecimento de si e de seu próprio nada: ser de razão e de morte. Como fonte literária, segundo Erich Auerbach, está no discurso humilde (sermo humilis) dos textos medievais que, por sua vez, retomam a pregação evangélica do Cristo, em que o mistério divino, o sacramento, pode se revelar nos objetos mais simples: o pão, o vinho.
Tal elevação, Bandeira chamou-a de “alumbramento”, num de seus poemas do livro Carnaval (1919). Nesse termo, tradução talvez da iluminação de Rimbaud, Davi Arrigucci Jr. observou “o mais alto mistério da poesia, sua irrupção repentina e inexplicada […] numa forma profana de todo semelhante ao estilo da humildade que o Cristianismo forjou para comunicar os mais altos mistérios de sua fé” [1]. Epifania, manifestação do sagrado, de caráter, por vezes, menos religioso que profano. Assim, a nudez feminina que permite ao poeta unir-se à verticalidade do encontro com Deus no poema homônimo:
Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!
(…)
Vi a estrela do pastor…
Vi a licorne alvinitente!…
Vi… vi o rastro do Senhor!…
(…)
— Eu vi-a nua… toda nua!
A mulher torna-se ela mesma visão celeste, tema freqüente aos poetas românticos e suas divas. Muda-se o olhar transparente do Renascimento na pureza do corpo alvo, angélico. A luz que irradia é a mesma de tantos poemas, como a “Canção das duas Índias” ou “Hiato”. Brilha como as estrelas que percorrem toda a poesia de Bandeira em “Sob o céu todo estrelado” ou no poema “Estrela da manhã”:
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
Outras epifanias
A Editora Cosac & Naify republicou recentemente a antologia Poemas religiosos e alguns libertinos de Manuel Bandeira, organizada por Edson Nery da Fonseca. Nela se reuniram pela primeira vez, em seis conjuntos distintos, poemas de temática cristã do autor modernista: sobre Deus, a Virgem Maria, Jesus Cristo, os anjos, as santas. Edição cuidadosa que nos permite observar alguns dos caminhos da inspiração banderiana pouco percorridos pela crítica, a despeito da intuição de Davi Arrigucci Jr., ao vislumbrar em sua poesia um movimento análogo ao da Encarnação, “através do qual o mais elevado – o divino – toma a forma do humano”.
São poemas como “O crucifixo”, em que descreve o objeto de marfim amarelado, herança das mortes sucessivas da irmã, da mãe, do pai. Pendurado em seu quarto, como na bela foto que acompanha a edição, com ele o poeta nos afirma querer “morrer agarrado”, na tentativa de uma salvação, porém, incerta: “talvez me salve”. Inquietação precoce com a morte que lhe rendeu poemas como “Pneumotórax”, mas também um “Programa para depois de minha morte”, em que expressou o desejo de encontrar São Francisco de Assis, e em seguida “a contemplação de Deus e de sua glória”.
Manuel Bandeira parece buscar os signos de uma revelação terrena, milagrosa – “tudo é milagre” em “Preparação para a morte”. Também uma esperança, sempre menor, que o coloca em sintonia com outros poetas e vertentes modernistas: da revista Festa, por exemplo, onde publicava Andrade Muricy e Cecília Meireles; das epifanias religiosas de Henriqueta Lisboa ou do primeiro Vinícius de Moraes, embora sem jamais adentrar o universo da conversão e do apostolado de Murilo Mendes e de Jorge de Lima, desde Tempo e eternidade (1934).
É esse Bandeira, “São João Batista do modernismo poético”, segundo Mário de Andrade, e não apenas aquele da desesperança irônica do tango argentino, que nos restitui a antologia temática de Edson Nery da Fonseca. Poeta que fala “tão bem de Deus e das coisas sagradas”, como diriam Gilda de Mello e Souza e Antonio Candido na introdução a seus poemas [2]. Tradutor de sor Juana Inés de la Cruz e da conhecida “Oração da Paz” atribuída a São Francisco de Assis. Capaz de contar de forma sugestiva a história da “Santa Maria Egipcíaca” ou de escrever “orações” à Nossa Senhora da Boa Morte, à santa Clara, à santa Teresa. É, ainda, o poeta de uma curiosa homenagem ao papa:
Baixem as luzes do divino Texto
Pela boca de Vossa Santidade
Para reconduzir a cristandade
Ao aprisco do Pai, ó Paulo VI!
Erotismos
Aos poemas religiosos se juntaram outros, nesta reedição, chamados “libertinos”. Manuel Bandeira, autor de Libertinagem (1930), publicou, de fato, textos em que pregou um amor de gozo físico. Em “Bacanal”, exortou os prazeres mundanos da bebida, do carnaval, da poesia e das mulheres. A lira eterna, a grande lira, nela quis desferir “versos obscenos”, contrariando as prescrições clássicas para as quais a obscenidade é tema de sátira, como em Gregório de Matos.
O erotismo de Bandeira é discreto. O corpo feminino, sugerido de longe, mostra-se nos púbis “longínquos como Oceanias” da “Canção das duas Índias”, possível diálogo com o “Soneto inglês no 1”: nudez distante do abandono ao outro. Esconde-se no poema “A filha do Rei”. É apenas celebrado em “Não sei dançar”, “Estrela da manhã” ou no “Rondó do Palace Hotel”, ao qual comparecem prostitutas numa espécie de oração paródica. Nos braços da Colombina, um “Pierrot místico” – poema tão belo, ausente da coletânea – é aquele a recusar-lhe, dessa vez, a volúpia, apontando para “rosas simbólicas”:
A volúpia é bruma que esconde
Abismos de melancolia…
Nada, portanto, dos prazeres do Amor natural (1992), de Carlos Drummond de Andrade, ou do encanto sensual dos Poemas da negra (1929), de Mário de Andrade, senão nos belíssimos “O súcubo”, escrito em 1912, e “Cântico dos cânticos”, de Opus 10 (1952). A eles talvez se pudesse somar um outro poema, bem menos discreto, “A cópula”, curiosamente não incluído, mesmo nas reedições da Nova Aguilar [Agradeço a lembrança a Pedro Marques, autor de Manuel Bandeira e a música, Ateliê Editorial, 2008. O poema pode ser consultado na íntegra aqui.]. Erotismo, no entanto (pornografia, nesse caso), que reinscreve a dimensão da morte de tantos poemas: “Eu morro! Ai, não queres que eu morra?!”. E ao qual o poeta não deixa de acrescentar, no arremate do soneto:
Grita um rapaz que aceso como um diabo,
arde em ciso e tesão na amorosa gangorra
E titilando-a nos mamilos