Benefícios para autores e consumidores de cultura
O anteprojeto para a reforma da lei de direitos autorais no Brasil fica aberto para consulta pública até o fim desse mês. As novas mudanças propostas vão regularizar práticas já cotidianas no país, facilitar o acesso à cultura, beneficiar artistas e ainda respeitam o Código de Defesa do ConsumidorMariana Fonseca
Essa é a visão do advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Guilherme Varella. Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, ele falou pela Rede pela Reforma da Lei de Direitos Autorais que abriga 24 organizações que estão discutindo o tema sob o ponto de vista do interesse público e fez um balanço do que o debate, o que deve mudar e o que ainda ficou faltando nessa nova proposta.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Como nasceu a ideia do site reformadireitoautoral.org? E quem faz parte do projeto?
GUILHERME VARELLA – O site é a plataforma de proposição do debate público da Rede pela Reforma da Lei de Direitos Autorais. Essa rede é composta de 24 organizações, dos mais variados setores: defesa do consumidor, músicos e artistas, movimento estudantil, grupos que atuam em políticas públicas de comunicação e educação, acadêmicos e coletivos de cultura digital. O que une essas organizações é a proposta de fazer a discussão do direito autoral sob o ponto de vista do interesse público, de maneira a equilibrar os direitos dos autores com o direito da população de acesso à cultura e ao conhecimento. E através desse blog aberto que estimulamos pessoas que nunca haviam participado desse debate a participar. Nele, há referências, vídeos, artigos, materiais, análises e reportagens sobre o tema, visando sempre a democratização dessa pauta.
DIPLOMATIQUE – Qual o posicionamento básico do grupo sobre a reforma?
VARELLA – Esse grupo, que trata dos direitos autorais no seu dia-a-dia em várias áreas, em contato direto com a base da sociedade, acredita que é preciso adaptar a lei às novas demandas e dinâmicas sociais. A lei de direito autoral (Lei 9.610/98) foi criada num contexto em que não existia a internet e as possibilidades digitais; não apresenta limitações e exceções suficientes que dêem conta de garantir o acesso da população às obras produzidas; e, principalmente, não protege efetivamente o autor, pois não traz ferramentas para que ele tenha autonomia sobre suas obras e nem prevê a supervisão pública do recolhimento dos direitos autorais, algo essencial à sua remuneração adequada e ao respeito aos consumidores dos bens culturais.
A Rede, portanto, acredita que deve haver a compatibilização dos interesses dos autores, que querem que sua obra circule e querem ser remunerados por elas, com os interesses da sociedade, que tem direito de acessar de forma democrática as obras produzidas.
DIPLOMATIQUE – Para você, quais os grandes benefícios dessa reforma? Em quais pontos principalmente?
VARELLA – Os grandes benefícios dessa reforma estão relacionados à modernização da lei e a expansão de suas possibilidades de utilização pelo público e pelo autor. Na revisão proposta destacam-se alguns pontos importantes: a possibilidade de cópia integral de obras para uso privado e não-comercial, algo especialmente relevante para os estudantes; a proibição do jabá, essa prática nefasta de pagamento às rádios para tocarem determinadas músicas, retirando da programação toda a diversidade musical brasileira; a possibilidade de cópia digital, de maneira a resguardar um produto cultural adquirido; a criação de uma esfera pública de supervisão da gestão coletiva dos direitos autorais, trazendo mais segurança aos autores e mais transparência ao processo, entre várias outros pontos.
DIPLOMATIQUE – Por que uma lei 1998, não tão antiga, precisa de tantas mudanças?
VARELLA – A lei precisa de mudanças porque ela não acompanhou todos os adventos da sociedade da informação, como o uso expansivo da internet e as ferramentas digitais. Hoje, o compartilhamento de conteúdos na rede é uma prática cotidiana e tem contribuído decisivamente para que um número cada vez maior de pessoas tenha acesso a filmes, músicas, livros, informações. Além disso, as plataformas digitais mudaram o paradigma de circulação e difusão das obras, de maneira que o suporte físico (um CD ou DVD, por exemplo) deixem de ser necessários para acessar esses bens culturais. Tudo isso fez com que o consumo, o acesso à cultura ficasse muito mais fácil, dinâmico, rápido e democrático, até pelo barateamento dos processos produtivos. A lei de direito autoral precisa acompanhar essas mudanças e deixar de considerar ilegal práticas sociais que já são usuais e benéficas. Além disso, precisa estimular novos arranjos criativos da cadeia cultural, como a disponibilização direta das músicas para fomentar a venda de shows. Hoje, como está, a lei é mais um óbice a esse desenvolvimento.
DIPLOMATIQUE – Em alguns pontos o projeto poderia ser mais ousado?
VARELLA – A proposta de revisão é muito boa e avançada. No entanto, sempre é possível ousar mais. Em alguns pontos, isso é muito palatável. Por exemplo: como a educação é dos setores mais estratégicos para o desenvolvimento do país, é essencial que a nova lei traga uma exceção específica para o uso educacional, autorizando a cópia livre, sem fim comercial e com finalidade educativa, pedagógica, cultural e científica. Além disso, seria um precedente histórico internacional se a nova lei reduzisse o tempo em que a obra entra em domínio público – quando pode ser acessada por todos, sem autorização prévia do autor – de 70 anos para 50 anos após a morte do autor. Ganharíamos 20 anos de acesso livre ao conhecimento produzido. No mais, é importante que não haja retrocesso na lei, de maneira a proibir qualquer tipo de cobrança (taxa ou “gravame”) para as cópias reprográficas (o conhecido “xerox”). Devido ao preço altíssimo dos livros, muitos estudantes, especialmente universitários, dependem do xerox para sobreviver. E essas cópias são feitas, sobremaneira, de livros científicos, cuja produção, em sua maioria, é financiada com dinheiro público.
DIPLOMATIQUE – Na prática, no dia-a-dia dos consumidores/usuários o que vai mudar de fato?
VARELLA – Com relação aos consumidores, a revisão da lei de direito autoral vai contribuir essencialmente para descriminalizar práticas que são cotidianas – hoje, por exemplo, o mero fato de passar uma música do CD para o tocador de mp3 é considerado crime. Além disso, com a supervisão pública, haverá mais transparência e critérios mais públicos de definição dos preços a serem pagos pelos direitos autorais. O direito à informação do consumidor, no caso, do consumidor de cultura, garantido pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), passará a ser respeitado. Além disso, questões triviais passarão a ser esclarecidas ao consumidor, como saber o quanto é destinado de pagamento, em direitos autorais, para o seu autor preferido. Na questão educacional, a melhoria deve ser grande também, pois o consumidor terá a garantia de que obras em deterioração em acervos e bibliotecas poderão ser copiadas livremente para preservação, algo impossível agora. Além disso, pessoas com necessidades especiais, passarão a ser mais bem atendidas, com a obrigatoriedade de adaptação das obras para esse público.
DIPLOMATIQUE – Gostaria que você falasse um pouco da discussão contra e a favor da reforma. Você chegou a escrever que “os contra” são o grupo de intermediários da cultura. Quem são e por que são contra as mudanças?
VARELLA – A mudança da lei é um imperativo para que a população tenha mais instrumentos para acessar as obras culturais produzidas e para que os autores possam ter mais autonomia sobre suas próprias criações. Há os que são a favor disso, como os movimentos e organizações de cultura e educação, os estudantes e professores, artistas que pensam em arranjos produtivos mais modernos e aqueles que vêem essa área da economia da cultura como estratégica para o desenvolvimento social. E há aqueles que se agarram aos formatos mais antigos de manutenção da cadeira cultural, ou aqueles que se situam numa posição intermediária dessa cadeia, sem agregar valor às obras criadas. Para estes últimos, a lei atual deve ser mantida, pois ela não traz nenhuma ferramenta de supervisão pública da dinâmica de recolhimento dos direitos autorais, mantendo os mesmos atores como monopolistas dessa dinâmica. Para os que pensam em novos paradigmas culturais, que envolvem o uso da internet para a circulação das obras, a liberdade dos próprios autores na circulação de suas criações e a cultura digital como valor imprescindível na sociedade da informação, a lei de direito autoral tem que ser mais moderna.
Assim, são poucos os que são contra a revisão da lei, mas com muita força, pois exercem esse monopólio de dominação da dinâmica dos direitos autorais há muito tempo. Um monopólio garantido por lei, mas sem qualquer regulação. O que é uma aberração do ponto de vista jurídico, da concorrência e da defesa do consumidor. A voz que brada contra a revisão é a do Ecad (Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais), que, apesar de exercer uma atividade relevante para a população, não mostra a essa mesma população como a exerce, através de critérios públicos de cobrança, arrecadação e distribuição. E os artistas que estão a favor do Ecad apenas o fazem por estarem ligados a ele, e dele dependerem para receberem seus direitos. É uma vinculação compulsória, que dá uma falsa legitimidade ao Ecad e organizações parceiras para falar em nome de “todos os artistas do Brasil”. Algo inverossímil. A nova geração de músicos, por exemplo, já disponibiliza suas obras na internet, aumentando exponencialmente a venda de seus shows e de serviços agregados, como venda de camisetas e afins. Sistema benéfico para o músico e para o seu público. Ruim para os intermediários, que ficam fora justamente por não agregarem valor nesse processo.
Além disso, existe a propaganda antipirataria, difundida pelo mesmo setor (associações de indústrias fonográficas e reprográficas), que preconiza a cópia de obras como práticas tão criminosas quanto o tráfico de drogas e armas, através de um discurso altamente carregado do elemento moral. Essa propaganda – antiquada, em tempos de agilidade da troca de informações pela internet – falseia números, colocando “no mesmo saco” pirataria (cópia ilegal de obras), contrafação (falsificação de produtos) e contrabando (importação/exportação ilegal de produtos e sonegação de impostos). Uma prática midiática alarmante, que mais induz e confunde a população do que a esclarece sobre o que pode ou não ser feito com base na lei de direito autoral. Esse setor igualmente é contra a necessária revisão da lei de direito autoral.
Mariana Fonseca é jornalista e editora-assistente de Le Monde Diplomatique Brasil.