Bielorrússia: esgotamento econômico e crise política
Na Bielorrússia parecia haver um “pacto social” entre Lukashenko e os bielorrussos, que durou mais de duas décadas e fora constituído por uma equação que combinava desenvolvimento econômico em troca de lealdade política. Porém, na eleição deste ano, esse pacto se esfacelou e parece coexistir no interior de uma espécie de combinação explosiva entre esgotamento histórico e crise de representação política que nos últimos dias aparenta não encontrar lugar de superação
Quando Lukashenko chegou ao poder na Bielorrússia, no ano de 1994 – sobre os restos mortais da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) – ele colocou em prática uma política que retrocedeu as reformas de mercado no ainda jovem mundo pós-soviético daquela época, recuou conjuntamente as privatizações, reintroduzindo uma forma política baseada em um estilo “neo-soviético” , isto é, permitindo a existência do setor privado, mas, predominando, na medida do possível, o caráter de“economia planejada”. Quer dizer, embora reproduzindo o sistema capitalista, apesar disso, exercendo fortes restrições ao avanço do mercado e em paralelo, colocando em prática uma monumental preservação da propriedade estatal e de sua burocracia.
Nos anos 2000, a Bielorrússia se destacou por estar entre os poucos países que tiveram um dos crescimentos do PIB mais significativos no mundo. Em 2003, o país se tornou o terceiro país do leste europeu com o PIB que voltou ao nível de 1990, ficando atrás apenas de duas outras ex-repúblicas soviéticas: Uzbequistão e Estônia. E nos cinco anos seguintes cresceu 60%. Soma-se a isso o fato de que durante a crise econômica que abalou o planeta a partir de 2008, e que ainda ressoava nas economias alguns meses antes da Covid-19 potencializar o declínio absoluto do crescimento econômico mundial, a Bielorrússia foi o único país pós-soviético que não encolheu.
Todo esse aparente sucesso econômico da Bielorrússia encontra explicação plausível no fato de o presidente bielorrusso conseguiu buscar subsídios na Rússia. Essa política ficou conhecida como “oil and gas in return for kisses”. Desde a primeira década pós-soviética Lukashenko oferta sua amizade a Moscou usando como moeda de troca vantagens econômicas tangíveis. Esse sucesso exerceu um domínio duradouro e funcional que se estendeu durante anos enquanto a Bielorrússia pôde se beneficiar dos generosos subsídios russos – hidrocarbonetos de baixo custo que representou, no decorrer de longos anos, uma alavancada no PIB do país. Durante esse período a Bielorrússia teve uma história de sucesso no mundo pós-soviético.
Outra base de sustentação da prosperidade econômica da Bielorrússia ao longo desses anos foi o acesso sem limites ao mercado da Rússia. Isto significou 90-95% das exportações dos produtos lácteos, 75% de máquinas e equipamentos e 70% dos veículos produzidos no país. Aliás, as indústrias pesadas consumidoras de energia da Bielorrússia podem ser competitivas, tão somente, porque são dependentes do gás barato vindo da Rússia. Ao longo de todos esses anos, a economia da Bielorrússia tornou-se dependente da Rússia de tantas maneiras que poderia ser compreendida meramente como uma economia de extensão em função do mercado russo.
Por mais vantajoso que tenha sido para a Bielorrússia a relação mercantil de bilhões de dólares em subsídios para declarar-se país amigo do Kremlin, nos últimos anos a Rússia começou a desencadear uma acentuada objeção econômica. As concessões vindas da Rússia foram o principal estopim para o que os desentendimentos políticos entre os países vizinhos pudessem gerar uma conflagração conhecida como guerras do petróleo, gás e leite.
A Rússia decidiu interromper todos os subsídios a Bielorrússia, o que nos últimos anos desencadeou uma crise enfrentada por Lukashenko. E que, consequentemente, levou o presidente bielorrusso pendular a balança comercial do país para as economias do ocidente, criando relações comerciais com os Estados Unidos e Noruega. Destacando, inclusive, a visita do secretário de Estado dos EUA a Minsk, Mike Pompeo, que viajou à ex-república soviética em 2020 para tentar normalizar os laços entre Minsk e Washington num momento histórico, no qual a Bielorrússia se encontra em tensão com seu tradicional aliado, a Rússia de Vladimir Putin. Do mesmo modo, Lukashenko também vem tentando se aproximar dos chineses e sua Nova Rota da Seda
Geopolítica e crise permanente
A Bielorrússia é um silencioso país que, durante décadas, ocupou um ponto estratégico na Europa.Hoje, embora existam conflitos com o Kremlin no quesito política econômica, por outro lado, em termos geopolíticos, a Bielorrússia está alinhada a Moscou. Localizada entre a Polônia e a Rússia, a pequena ex-república soviética funciona como um país tampão para o gigante do leste europeu,operando como um amortecedor diante do avanço das tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), cada vez mais próximas à fronteira russa.
Outros países vizinhos, as três ex-repúblicas soviéticas dos Balcãs Lituânia, Letônia e Estônia foram integradas tanto a União Europeia quanto a Otan. Já a Ucrânia, desde o levante da praça Maidan, Kiev de 2014, tornou-se aliada da União Europeia e, consequentemente, anti-Rússia. Esses quatro países, ao longo dos últimos anos, desfalcaram a zona-tampão russa.
Em meio a essas derrotas estratégicas relevantes para a zona de defesa do gigante do leste, entre as ex-repúblicas soviéticas, a Bielorrússia ocupou um lugar ímpar, mantendo relações saudáveis com Moscou. Cabe lembrar que, enquanto desenrolava-se a revolta ucraniana de 2014, na capital do pequeno país aconteceram mediações políticas para o acordo de cessar-fogo entre o exército ucraniano e os separatistas de Donetsk e Lugansk, pró-Rússia. Este acordo de paz ficou conhecido como“tratado de Minsk”. Por outro lado, a Bielorrússia se recusou a reconhecer a anexação da Crimeia, realizada pela Rússia em 2014.
Com a queda do mundo soviético a Rússia vem, cada vez mais, perdendo seus amortecedores. Nessa perspectiva, chama atenção uma frase dita por Vladimir Putin: “a queda da União Soviética foi o maior desastre geopolítico do século XX”.
Certamente isso tem um peso estratégico militar relevante na história contemporânea do país. Apenas para ilustrar essas transformações, no decorrer da Guerra Fria, o país membro da Otan mais próximo se encontrava a aproximadamente 1,6 mil quilômetros de Leningrado (atual São Petersburgo). Hoje, o país da Otan mais próximo se encontra a apenas 180 quilômetros da antiga capital da Rússia.
Desde o século XVII a segurança interna da Rússia é dependente de “zonas-tampão” a oeste e sul do país. No desenrolar dos séculos o país teve que enfrentar pelo menos quatro grandes invasões: da Suécia, através da Polônia e da Turquia, ao sul; da França, pela planície do norte da Europa; e da Alemanha, duas vezes, através da Polônia e da Ucrânia.Por isso, a Bielorrússia não pode ser descartada pela Rússia, por ser um país estrategicamente aliado na crise permanente enfrentada pelo gigante do leste.
Na geopolítica, como sabemos, não existe vácuo, ponto neutro ou geografia morta. Não esqueçamos que a política é feita de desconfortos e disputas de interesses. Apesar de Lukashenko não representar nenhuma ameaça a ordem capitalista, a queda de Lukashenko é um prato cheio para as novas investidas da ordem capitalista neoliberal na Bielorrússia. Tentando não ser tragado pela Rússia ou pelo Ocidente, Lukashenko preservou durante anos um equilíbrio meticuloso controlando a política interna com mão de ferro, com o suporte da KGB – o comitê de segurança do antigo Estado soviético -, amedrontando e silenciando seus adversários.
Nova Maidan, operação russa ou levante endógeno?
As manifestações na Bielorrússia estão sendo comparadas com os protestos da praça Maidan, de 2014 na Ucrânia. Essas comparações – frutos de análisesdas mídias ocidentais -,são compartilhadas por jornais russos ligados ao Kremlin, pelo governo chinês e por boa parte da esquerda ocidental.
Na Ucrânia, a suposta espontaneidade da“revolução democrática” converteu-se em revolução colorida e foi profundamente disputada, tão logo, fora dirigidapor grupos neonazistas ucranianos de natureza chauvinista anti-Rússia. Se pudéssemos dizer que as manifestações na Bielorrússia são uma Nova Maidan, Lukashenko não colocaria nem a cabeça na janela. E assim como ex-presidente ucranianoVictor Yanukovich teria que fugir do país. A constatação presente não é um fenômeno estático. A correlação de forças entre as diferentes frações que lutam pelo poder, o desenrolar dos embates políticos nos desenharão uma possível “síntese histórica” por vir. A não-identidade com Maidan não implica absolutamente na possibilidade de uma ausência de unidade política com os ucranianos, esse é mais um elemento possível no caldeirão da disputa política.
Curiosamente há poucos dias da realização do pleito presidencial do dia 09 de agosto de 2020, a KGB, a serviço de Lukashenko, prendeu 32 russos identificados como membros do Grupo Wagner, na Bielorrússia. O Grupo Wagner é uma empresa militar russa que executa,em diferentes regiões do planeta,missões militares ligadas aos interesses da política externa da Rússia. A empresa foi fundada pelo tenente coronel Dimitri Utkin, ex-operador das Forças Especiais Russa, sendo também dirigida pelo empresário Yevgeny Prigozhin. Segundo especulações o grupo é controlado pela FSB russa e por oficiais da GRU. Embora o Kremlim negue quaisquer oficialidades com o grupo, o Wagner vem realizando operações militares em diferentes regiões onde Moscou tem interesses direto, por exemplo, na Ucrânia, Síria, República Centro-Africana e Sudão.
Sobre a prisão dos 32 membros do grupo na Bielorrússia, o governo russo informou que os homens estavam legalmente de passagem para outro país e foram, coincidentemente, presos dias antes das eleições presidenciais. A KGB da Bielorrússia informou que os russos foram detidos suspeitos de estarem planejando distúrbios nas recentes eleições presidenciais. Ironicamente, Lukashenko, depois de prender os russos, mudou o discurso e,fundamentando-se no pacto do Estado da União assinado entre Bielorrússia e Rússia no ano de 1996, tão logo se viu recuado, pediu ajuda militar a Moscou para conter os protestos.
O fato é que, a partir do dia 15 de agosto, Lukashenko parecia ter mudado sua posição diante dos massivos protestos na capital do país. Ao invés de reagir de modo imediato com repressão policial violenta contra os manifestantes como fizera até então. Lukashenko começou a tentar criar alguma coisa que pudesse ser parecida com um tipo de reconciliação com o povo , empenhou-se em dialogar ombro a ombro entre os bielorrussos, visitou as fábricas em greve, conversou constantemente com os manifestantes informando que estava disposto a realizar uma reforma constitucional, mobilizou a base social do seu eleitorado residente em cidades do interior do país, que foram deslocados em caravanas até Minsk para criar uma polaridade nas ruas. E, o mais importante para os manifestantes, começou a soltar os presos políticos, mas em nenhum momento reconheceu sua derrota nas urnas.Contudo, nada disso tem surtido efeito e as manifestações continuam – e a repressão também, aliás, com manifestantes sendo sequestrados diariamente.
Após os resultados das eleições terem declarado a suposta sexta vitória consecutiva e esmagadora de Lukashenko, com 80% dos votos, imediatamenteos bielorrussos tomaram conta das ruas exigindo a apresentação dos resultados reais da eleição, acusando o governo de fraude. E após mais de um mês de protestos, os bielorrussos seguem nas ruas.
Lukashenko tentou fazer de tudo para se perpetuar no poder e não logrou esconder a sua inquietude na corrida até as eleições presidenciais deste ano. Acusou a Rússia de interferência interna. Adotou uma política negacionista diante do coronavírus. Prendeu alguns de seus opositores potenciais candidatos até a largada eleitoral. Mas, devido ao seu preconceito de gênero, não conseguia imaginar ter algo a temer de uma mulher- deixou escapar aquilo que pode lhe privar do poder.
Lukashenko em momento algum cogitou pedir ajuda à Rússia para combater o avanço da pandemia ocasionado pela Covid-19, aliás, assim como Jair Bolsonaro, o presidente da Bielorrússia adotou uma postura negacionista diante da maior ameaça sanitária dos últimos anos. Declarou publicamente que o vírus não existia e contradizendo-se, chegou até a declarar que contra o coronavírus era preciso apenas três coisas: trabalho, vodca e sauna. Existe, sem sombra de dúvidas, uma revolta popular gerada pelo desgaste do governo diante à crise sanitária.
Por outro lado, já faz um bom tempo que a presença de milhares de pessoas nas ruas protestando contra governos mundo a fora não significa necessariamente manifestações com o horizonte revolucionário. Aliás, nossos horizontes de expectativas nessas últimas três décadas para cá, se encontram numa violenta maré decrescente. O que também poderia ser caracterizado como uma crise profunda de alternativa. O velho mundo se agoniza diante de nós, o novo mundo tardar a nascer e nesse interlúdio as ofensivas das direitas e extremas direitas ocupam os espaços e as consciências. Se podemos dizer que os protestos de Minsk não têm no seu interior um horizonte revolucionário, do mesmo modo, Lukashenko não representa uma política socialista. As manifestações da Bielorrússia abrangem questões de ordem interna do país e demandas geopolíticas ambíguas que estão em aberto. Lukashenko vai sangrar muito mais do que já vem sangrando para conseguir se manter governando a Bielorrússia, nesse pêndulo do poder entre as forças do ocidente e o Kremlin ele se tornará cada vez mais refém de Moscou, enquanto a oposição nas ruas estiver motivada por suas insatisfações internas, os protestos continuarão.
Virgínio Gouveia é doutorando em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com estadia em andamento no Instituto de Filosofia de Moscou/ Rússia – Academia de Ciências da Rússia (RossiyskayaAkademiyaNauk, Ran).