Bolívia: na estrada com a elite de Santa Cruz
Do Wall Street Journal às franjas mais descerebradas da esquerda internacional, quase todos os comentaristas defenderam a ideia de que o presidente Evo Morales fraudou as eleições de outubro de 2019. Seu erro contribuiu para a saída do agora ex-chefe de Estado, em benefício da elite reacionária de Santa Cruz. Esta sonha assumir de vez as rédeas do país nas eleições de 6 de setembro
Chegar a Santa Cruz de la Sierra é uma experiência estonteante. No aeroporto, cruzamos com homens de terno, famílias menonitas ruivas, mulheres que parecem ser obrigadas pelos costumes locais a passar – quando se atinge determinado padrão de vida – pelo bisturi do cirurgião plástico e taxistas sempre procurando clientes (estes geralmente de pele mais clara que a daqueles). No caminho para a cidade, uma interminável linha reta, passamos pelo calor escaldante, pelas planícies áridas, pelas charretes que ultrapassam veículos 4×4 e pelas concessionárias que vendem tratores de última geração, exibidos como veículos de luxo, como que para lembrar de onde vem a riqueza da região. Passamos também ao longo de bairros periféricos miseráveis, aos quais se sucedem residências de luxo com piscina na cobertura e academia no térreo, até finalmente chegarmos ao centro antigo, com seu charme colonial.
Situada nas planícies orientais da Bolívia, Santa Cruz de la Sierra é a capital do departamento de Santa Cruz, o maior e mais populoso do país. Com uma área maior que a da Alemanha, ele cobre um terço do território boliviano e tem mais de 2 milhões de habitantes, a grande maioria na capital. A presença de hidrocarbonetos no subsolo e um poderoso setor agroindustrial elevaram o departamento à categoria de “pulmão econômico do país”, representando mais de 30% do PIB.
Em uma viagem anterior, em dezembro de 2018, conhecemos Natalia Ibáñez no avião. Depois, ela nos recebeu calorosamente em sua cidade. “Santa Cruz é a cidade mais moderna da Bolívia. Você notou todos esses condomínios?”, perguntou, referindo-se aos loteamentos particulares com vigilância privada que abundam por aqui. “Isso é normal: em Santa Cruz nós sabemos investir, sabemos fazer nosso dinheiro crescer. Não somos como esses índios que enterram o deles como oferenda a Pachamama”. Na época, Natalia só tinha um sonho: derrubar o presidente Evo Morales, aquele “índio analfabeto”.
O mais importante aqui é parecer norte-americano
Quase um ano depois, ela combina de nos encontrar no Divine, um nails bar (literalmente, “bar de unhas”) novo em folha, todo de vidro e mármore. As (muitas) funcionárias usam blusas brancas curtas, sapatos plataforma e lentes de contato azuis, o que as deixa parecidas com as cantoras descartáveis que desfilam nas telas de TV penduradas nas paredes, ligadas na MTV. As clientes do salão esforçam-se para falar entre si apenas inglês (até que a falta de vocabulário as force a voltar ao espanhol). É que a coisa mais importante por aqui é parecer alguém dos Estados Unidos. No aeroporto, muitos moradores da cidade que possuem dupla nacionalidade – boliviana e norte-americana – preferem passar na imigração usando o passaporte dos Estados Unidos a pegar uma fila muito mais rápida com documento da Bolívia. Enquanto renova as unhas, Natalia fala da alegria de ter suas preces atendidas. Não sem certo orgulho. Foi seu primo quem “libertou a Bolívia do inferno da ditadura”: Luis Fernando Camacho, advogado milionário e bem-disposto em seus 40 anos – e que, segundo informações divulgadas pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (Icij), em abril de 2016 criou três empresas offshore no Panamá, para que ele, outros indivíduos e também empresas bolivianas pudessem praticar lavagem de dinheiro e evasão fiscal…
Em novembro de 2019, um golpe apoiado pela polícia e pelos militares derrubou Evo Morales, que desde então está exilado.1 O episódio foi precedido por uma greve geral de 21 dias, após os resultados controversos da eleição presidencial de outubro de 2019, que reelegeu o então presidente no primeiro turno. Durante todo esse período, o Comitê Pró-Santa Cruz, presidido por Camacho, empenhou-se em colocar lenha na fogueira. A organização dispunha, segundo seu administrador, Diego Castel, do “mais forte poder de mobilização do país”. Agora candidato à eleição presidencial (inicialmente prevista para 3 de maio de 2020, mas adiada para 6 de setembro por causa da pandemia de Covid-19), na época Camacho convocou o povo a se reunir em torno da monumental estátua do Cristo Redentor, uma das fortalezas da cidade, a fim de comunicar suas instruções para a continuidade das mobilizações. “Oitenta por cento da derrubada do ‘índio’ é mérito de Santa Cruz, do ponto de vista econômico e logístico”, conclui Natalia. Quem é o “índio”? O presidente derrubado, Evo Morales. Outra cidadã de Santa Cruz, com quem conversamos depois, confirmou: Sirce Miranda conta ter visto, todas as noites, seu companheiro e vários membros do Comitê Pró-Santa Cruz percorrendo os vários pontos de bloqueio da cidade para “recompensar” os manifestantes por sua mobilização, com dinheiro e arroz. Assustada com o que viu, ela rompeu a relação com o parceiro.
Situado no centro da cidade, na Rua Canada Strongest, em um belo edifício colonial cercado por um grande pátio sombreado onde tremula a bandeira verde e branca de Santa Cruz, o Comitê Pró-Santa Cruz é “o governo moral dos cidadãos de Santa Cruz”, explica Castel. O que ele faz? “Defende os interesses de Santa Cruz perante o Estado”. Embora composto por cerca de trezentas organizações da “sociedade civil”, o Comitê Pró-Santa Cruz é, desde sua fundação, em 1950, uma instituição de elite, firmemente controlada pela oligarquia local. Para candidatar-se à presidência da entidade é preciso ser apadrinhado por empresários influentes e fazer uma campanha que “custa caro”, explica Herland Vaca Díez Busch, presidente da instituição entre 2011 e 2013.
As outras condições são “ter nascido em Santa Cruz e viver ali há mais de quinze anos”, completa Castel. E acrescenta: “São imposições do mundo moderno! Até recentemente, também era preciso ser filho de pais de Santa Cruz”. “Filho”, pois – ele se esqueceu de dizer – a influência do “mundo moderno” não chegou ao ponto de permitir que as mulheres presidam o poderoso comitê dessa cidade conservadora. Embora a entidade conte com uma “seção feminina”, esta permanece periférica e ocupa-se apenas das relações sociais.
Durante nossa visita às instalações do comitê, cruzamos justamente com uma das figuras da “seção feminina”: Maria Carmen Morales de Prado, carinhosamente apelidada de “Negrita”, cuja festa de 60 anos fez a alegria das colunas sociais das revistas da cidade. Ela explica que “o comitê é um trampolim para entrar na política”. A maioria dos políticos de Santa Cruz foi, portanto, treinada nessa escola: um dos ex-presidentes da entidade está em seu sexto mandato como prefeito, e outro está no terceiro como governador da província. Ela conta emocionada os últimos meses intensos passados junto aos jovens do comitê que estavam “prontos a fazer qualquer coisa pelo triunfo da democracia”. Esses jovens, que a chamam carinhosamente de “tia”, formam a Unión Juvenil Cruceñista. O compromisso apaixonado com a “recuperação da democracia” dessa “equipe de choque do comitê” frequentemente leva seus membros à prisão por violência.
Quero que meus filhos mergulhem no cheiro do dinheiro
A Unión Juvenil Cruceñista está sediada nas instalações do comitê. Seus militantes se reúnem no fundo do pátio, no primeiro andar, com ar-condicionado no máximo e chão coberto de bitucas de cigarro. Ele são quase trezentos, têm menos de 30 anos, são brancos, geralmente estudantes e oriundos das classes médias e altas (embora os membros das classes populares sejam cada vez mais numerosos). Aqui, ninguém reluta em fazer a saudação fascista, com o braço estendido, durante as reuniões: considerada um grupo paramilitar pela Federação Internacional dos Direitos Humanos, a Unión Juvenil Cruceñista foi fundada em 1957 por Carlos Valverde Barbery, líder da Falange Socialista Boliviana, criado vinte anos antes segundo o modelo das brigadas franquistas da Espanha. Ser falangista continua sendo uma condição para ingressar na Unión Juvenil Cruceñista, como nos confirmou mais tarde Gary Prado Araúz, advogado proeminente da cidade. Em um filme que conta a história da organização,2 Carlos Valverde Barbery explica: “A Unión Juvenil Cruceñista foi criada para ser o ‘braço armado’ do comitê, encarregando-se não apenas da luta de rua, mas também da doutrinação popular e do apoio militar à entidade”. Foi nessa organização que Camacho deu seus primeiros passos, antes de se tornar, em 2002, com apenas 23 anos de idade, seu mais jovem vice-presidente.
Em sua clínica particular, sentado atrás de uma mesa coberta com fotos de seus filhos e netos e repleta de livros antigos sobre a história da região, Herland nos conta que é um dos fundadores e ideólogos do Movimiento Nación Camba de Liberación (MNC-L, Movimento Nação Camba de Libertação). Entre uma bandeira verde e branca de Santa Cruz e uma Virgem Maria posicionada na prateleira ao lado do brasão de armas da cidade, ele nos relata com orgulho que, para o movimento, a Bolívia é “uma espécie de Tibete sul-americano, composto pelos grupos étnicos atrasados e miseráveis Aymara e Quechua, onde reina uma cultura de conflito, pré-republicana, não liberal, sindicalista e conservadora, cujo centro burocrático [La Paz] pratica um execrável centralismo de Estado colonial que explora suas ‘colônias internas’, apropria-se de nossos superávits econômicos e nos impõe a cultura do subdesenvolvimento, sua cultura”. Portanto, de um lado estão os cambas, habitantes do leste do país, normalmente brancos e “ocidentalizados”; do outro, os collas, termo que estigmatiza os “indígenas” andinos do oeste do país.
“Santa Cruz não deve nada à Bolívia”, continua. “Quando eu nasci, em 1948, esta cidade era uma vila, sem uma rua asfaltada, com apenas 40 mil habitantes. Veja como prosperou! Hoje somos mais de 1,5 milhão de habitantes! Fomos abandonados pelo Estado central, que preferia ajudar os departamentos mineiros. Nós, de Santa Cruz, pedimos ajuda, mas, como o Estado não deu, fizemos as coisas por conta própria: nosso sistema de água, de telecomunicações e de eletricidade. Temos orgulho disso.” E acrescenta: “Tudo o que fizemos em Santa Cruz foi feito com o suor do nosso rosto”. Na visão de nosso interlocutor, não parece grande coisa que o Estado boliviano tenha construído as infraestruturas de Santa Cruz, como as estradas e os gasodutos, além de ter investido maciçamente no desenvolvimento da agroindústria da região.
Preocupado em fazer uma apresentação justa da região, de sua cultura e de seus valores, Herland nos convida para ir no fim de semana, com ele e seu irmão Tulio, a Concepción, uma pequena cidade da província localizada 300 quilômetros a nordeste de Santa Cruz. Na BMW que nos transporta, os irmãos estão muito animados com a ideia de mostrar “a sua Santa Cruz”, à qual se sentem profundamente apegados. “Os collas são uma raça especial, sabe. São preguiçosos e ignorantes. Esperam a ajuda cair do céu. Nunca tomam a iniciativa. Eu sempre cuidei para que meus filhos não convivessem com os pobres, para não ficarem preguiçosos. Quero que mergulhem no cheiro do dinheiro para tomar gosto por ele. Que aprendam com gente bem-sucedida e trabalhadora, porque riqueza chama riqueza.”
Depois de elogiar as opções luxuosas de seu sedã alemão, o médico continua: “Em Santa Cruz, nós podíamos ter alcançado muito mais desenvolvimento, mas o ‘índio’ [Evo Morales] não deixou. As pessoas do oeste, como ele, já nascem nos odiando, por isso nos pararam. Com seus direitos sociais, seus benefícios públicos e sua companhia, destruíram nossos negócios. Basta que uma empresa tenha três funcionárias ficando grávidas ao mesmo tempo e já era. Você sabia que temos de pagar a elas ‘auxílio-aleitamento’, além do doble aguinaldo [um 13º salário dobrado], que todos os funcionários recebem? É isso que dá fazer as mulheres trabalharem…”.
No meio do caminho, passamos pela cidade de San Julián, que brotou do solo há trinta anos e cujos 48 mil habitantes são, em sua maioria, colonos, camponeses indígenas vindos do interior do país para cá. “Esta selva”, como chamam os dois irmãos, é “um exemplo da invasão colla”, da qual os cidadãos de Santa Cruz são “vítimas”. “Esses selvagens jogam pedras em nossos carros quando atravessamos a vila. Além de invadir nossas terras, eles nos atacam e chegam a nos matar. Precisamos nos separar desses loucos”, explicam os defensores da autonomia da região. Enquanto atravessamos o local sem nenhum incômodo e cruzamos com mulheres usando tranças e saias bufantes tradicionais do Altiplano, o irmão do médico comenta: “Eles não têm nada o que fazer aqui, não estão adaptados ao ambiente. Por exemplo, os animais, no inverno, têm mais pelos; isso é se adaptar ao ambiente. Eles sentem calor, suam e cheiram mal”. Não há como negar que as mulheres indígenas não correspondem aos cânones da beleza de Santa Cruz, incorporados pelas magnificas, manequins de pele clara e silhuetas alongadas que, todo mês de setembro, posam de maiô entre os reluzentes tratores e as cabeças de gado inchadas com hormônios na Feira Econômica Internacional de Santa Cruz (Fexpocruz), uma verdadeira instituição da região.
“O livro de Hitler? É um clássico! Conhece?”
Atravessamos de carro imensos campos de soja e de milho, ouvindo as doces vozes de Aldo Peña e Gina Gil, cantores populares cambas, que interpretam suas maiores canções, “La cruceñidad”, “Pena cruceña” e “Viva Santa Cruz”. Mas o que exatamente é cruceñidad? A pergunta deixa os irmãos perplexos. Eles amadurecem longamente sua resposta, da mesma forma como fez a cidadã de Santa Cruz Gabriela Oviedo, Miss Bolívia 2003, que, quando questionada sobre seu país durante o concurso Miss Universo, respondeu: “Infelizmente, quem não conhece a Bolívia pensa que todo mundo aqui é índio. La Paz reflete essa imagem, com sua gente pobre e de baixa estatura, com seus povos autóctones. Eu venho da outra metade do país, a parte oriental, onde não é frio, mas quente, onde somos altos e brancos, onde falamos inglês. Essa ideia preconcebida de que a Bolívia é apenas um país andino é falsa”. Após alguns minutos de reflexão, Herland responde à nossa pergunta citando de memória uma passagem de… Mein Kampf. Imaginando que pudéssemos ter entendido errado, perguntamos: “O livro de Adolf Hitler?”. “Sim!”, ele responde. “É um clássico! Você conhece?”
Seguimos de carro por mais de três horas. As paisagens tornaram-se mais montanhosas e exuberantes. Atravessamos pequenas vilas com casas coloniais baixas e varandas cobertas, alinhadas em ambos os lados das ruas de terra batida. No caminho, cruzamos com várias Harley Davidson montadas por adiposos homens brancos, de cabelos ao vento, com as carnes transbordando da camisa de caubói, ultrapassando as pequenas motocicletas cobertas de lama das famílias de pele mais escura. Os dois irmãos ficam animados por reencontrar a atmosfera de sua juventude, já que parte de sua família é da região. Tulio, nostálgico, recorda: “Ei, Grande [apelido com que se dirige ao irmão], você se lembra do índio em que você bateu ali na rua quando derrubaram sua bicicleta?”
Finalmente chegamos a San Javier, onde nos encontramos com os camaradas “autonomistas” reunidos para plantar um mojón (estaca de madeira com 2,20 metros de altura e 20 centímetros de largura) na praça principal de San Javier, em frente à Prefeitura. O organizador do evento, Joe Nuñez Klinsky, empresário de Santa Cruz, explica, com seu bigode ruivo animado por uma convicção sincera e entusiasmada, que “o objetivo dessa ação cívica é deixar marcos da corrente autonomista em cada cidade de nossa região, acompanhando o processo que deve levar a uma Constituinte federal na Bolívia, primeiro passo rumo à autonomia de Santa Cruz”. Estão ali cerca de cinquenta pessoas, a maioria homens de 60 anos, de jeans e camiseta, calçando mocassins ou botas de caubói, de chapéu na cabeça e faca embainhada na cintura, Ray-Ban no nariz e um grande relógio de ouro no pulso. Após seu discurso, Herland – que não deixou de se referir a seu tio Germán Busch Becerra, filho de um médico alemão que ficou famoso por suas proezas durante a Guerra do Chaco, na qual Bolívia e Paraguai se enfrentaram entre 1932 e 1935, e que se proclamou presidente do país em 1937 – ergue a bandeira verde e branca de Santa Cruz que cobre o mojón, sob os aplausos da plateia. A plateia entoa o hino de Santa Cruz com a mão no peito, agitando bandeiras com as cores da região. Os membros da elite de Santa Cruz normalmente têm terras por aqui. Quando observamos: “Que interessante, quase todos vocês têm olhos azuis, como eu!”, eles respondem: “Meu pai” – ou avô – “era europeu”, e acrescentam: “Há muitos descendentes de alemães por aqui”.
Terminada a cerimônia, voltamos para Concepción, rumo à fazenda de um terceiro irmão, multimilionário (“E estou falando de dólares!”, especifica Tulio), proprietário de áreas de exploração de madeira, cana e de criação de gado, como a maioria dos grandes proprietários de terras da região. Depois de chegar à praça principal da bonita vila colonial indicada em todos os guias turísticos, nosso companheiro de viagem acrescenta que esse não é seu único trunfo. “Aqui nasceu um grande homem”, anuncia ele – o general Hugo Banzer Suárez, que foi presidente da República duas vezes: a primeira entre 1971 e 1978, após um golpe de Estado, instaurando um regime militar cujo conselheiro especial para técnicas de repressão era o oficial nazista Klaus Barbie; depois, entre 1997 e 2001, quando foi democraticamente eleito. Fizemos nossa refeição em um restaurante na praça, cujos restos foram colocados em um saco plástico para ser entregue ao “índio” que cuida da fazenda do irmão multimilionário. Herland explica, a propósito desse ato de generosidade: “As pessoas que tinham poder em La Paz nos odeiam porque sempre soubemos trabalhar em boa harmonia com nossos índios”. Essa coabitação fraterna não nos pareceu, porém, tão óbvia na manhã seguinte, quando formos à missa dominical da missão jesuíta em Concepción. De um lado, bancos ocupados por patrões brancos de traços europeus, cujos filhos assistiam a desenhos animados da Disney no iPhone dos pais; do outro, peões indígenas, cujos filhos invejavam seus amiguinhos. Quanto ao padre, ele começou assim: “Estamos todos aqui reunidos, meus queridos irmãos e minhas queridas irmãs, para que o selvagem Evo Morales nunca mais volte”.
Reunidos os três irmãos, partimos para a fazenda Berlim, a 20 quilômetros dali. É uma propriedade de 1.200 hectares, cujo dono, Oscar Mario Justiniano, nos espera em sua imponente casa colonial, cercada por uma grande pérgola. Não estamos sozinhos: cerca de quinze homens, já presentes na cerimônia autonomista, acabam de chegar. O grupo é unido desde a infância: todos foram colegas de classe de Oscar e Tulio, quando estes frequentavam a escola La Salle de Santa Cruz. O estabelecimento de ensino, religioso, privado e frequentado pelos filhos da elite local, é “o melhor da cidade, pois é o mais caro”, explica um dos ex-colegas, antes de acrescentar: “Eles souberam fazer o dinheiro crescer; investiram, entre outras coisas, em madeira e gado”.
Um cordeiro e dois porcos assados no espeto, o pessoal de Oscar nos traz bebidas, o ambiente é de festa. Durante a refeição, explicam: “A França é um país grande porque tem um grande Exército, energia nuclear. Isso é ser um país desenvolvido, ter capacidade militar”. Um de seus amigos reage: “Santa Cruz é tão grande quanto a França e tem muita riqueza. Imagine se tivéssemos o Exército da França: poderíamos lutar contra a invasão desses índios bárbaros e acabar com isso”. Terminada a refeição, alguns se jogam nas redes para digerir os quilos de carne ingeridos, outros tomam cerveja. Então descobrimos que todo ano o grupo celebra, em 9 de outubro, o assassinato de Che Guevara, ocorrido na província de Santa Cruz, sonhando com o mesmo destino funesto para todos os comunistas.
Porque o comunismo são os impostos. Sob a presidência de Evo Morales, os cidadãos de Santa Cruz teriam sido vítimas de uma forma de “extorsão”, como explica Pablo Mendieta Ossio, diretor do Centro de Economia da Câmara da Indústria, Comércio, Serviços e Turismo de Santa Cruz: “O problema não é tanto a taxa de imposto, nossos impostos são muito baixos na Bolívia, mas os controles que se intensificaram nos últimos anos, multiplicando as possibilidades de erro por parte dos serviços fiscais; portanto, de multas. As empresas acumularam dívidas fiscais que representam somas muito grandes e cujo pagamento as colocaria em uma situação delicada”. Desde que o general Banzer Suárez chegou ao poder, instaurou-se na Bolívia uma tradição conhecida como anistia fiscal (perdonazo tributario): quando um novo presidente era eleito, ele anulava as dívidas fiscais das elites. Mas, quando Evo Morales chegou ao poder, ele interrompeu esse costume, de modo que muitas grandes fortunas hoje têm dívidas fiscais de vários milhões de dólares. Mas o governo de facto de Jeanine Áñez, instaurado após o golpe em novembro de 2019, está decidido a restaurar a ordem das coisas e “pôr um fim à extorsão realizada pelo governo anterior”, como declarou seu ministro da Economia, José Luis Parada. Atualmente ele trabalha em uma nova lei de anistia, apesar das críticas de que essas mudanças legislativas não poderiam ser de responsabilidade de um governo interino.
“Aqui as meninas são lindas, junte-se a nós!”
É dia de culto. Um desfile de veículos 4×4 estaciona em frente à Igreja Cristã da Família, deixando poucas dúvidas sobre a prosperidade do rebanho. Em um imenso pátio onde todos esperam a hora da celebração, encontramos um ambiente cordial, em que todos se conhecem, com mulheres de salto alto, homens de músculos definidos apertados em camisas de marca, jovens usando jeans e tênis da moda. Adentramos um grande salão e a celebração se inicia com música. Acompanhado por um baterista, um baixista, três guitarristas e um tecladista, o vocalista entoa canções cristãs repetidas pelo público. As palavras fluem sobre um fundo com imagens de nascer do sol, chamas e céus estrelados, exibidas em duas telas gigantes penduradas na parede, enquanto um técnico faz manchas coloridas dançarem no ritmo da música. Rapidamente, o tom do cantor que conduz o salão e recupera suas forças com alguns goles de Red Bull entre uma canção e outra torna-se mais meloso. O público então levanta os braços, canta mais alto, ajoelha-se, chora, fecha os olhos. É nesse momento que entra em cena o pastor, de seus 40 anos, vestido como seus fiéis “descolados”, com um iPad debaixo do braço, no qual vai ler o sermão. Quando a cerimônia termina, o pastor convida os fiéis a “agradecer a Deus”, acrescentando: “Todos devem dar, mesmo quem não tem muito dinheiro, pois, para mostrar a Deus que O adoramos, temos de dar algo que nos custa”. Um estojo de guitarra colocado no palco logo se enche de dinheiro. Animado pela fé, o pastor promove sua igreja em sua página no Facebook, anunciando a chegada de estrelas para “alucinantes” shows de rock cristão. Entre montagens fotográficas de moças da igreja com a legenda “Aqui as meninas são lindas, junte-se a nós!”, encontramos também fotos do pastor na companhia de Camacho, que, “graças à força de Deus, nos libertou milagrosamente do mal”.
Maëlle Mariette é jornalista.
1 Ler Renaud Lambert, “En Bolivie, un coup d’État trop facile” [Na Bolívia, um golpe de Estado muito fácil], Le Monde Diplomatique, dez. 2019.
2 “Historia de la Unión Juvenil Cruceñista”, vídeo encontrado on-line.