Na Bolívia, um golpe fácil demais
Desde outubro, um levante popular agita a Bolívia. Expondo a fragilidade da esquerda no poder, ele se tornou um trunfo para as franjas mais extremistas da direita, que aproveitou o caos para derrubar o presidente Evo Morales. Apesar da violenta repressão, o regime de facto não consegue calar a contestação, enquanto o país afunda na crise
Um presidente “convidado” a renunciar por seu chefe do Estado-Maior. Forças policiais disparando munição real contra manifestantes. Uma caça às bruxas que leva à prisão de ex-líderes políticos e obriga outros a passar para a clandestinidade. Veículos de comunicação fechados, jornalistas encarcerados por “sedição”, parlamentares impedidos de ter acesso à Assembleia Nacional, uma senadora que se autoproclama presidenta e que uma fotografia imortaliza, toda sorrisos, recebendo a ajuda de um soldado para vestir a faixa. Generais, finalmente, que assumem a pose, o olhar obstruído pelos óculos de sol… Se há uma questão que, a priori, a situação na Bolívia não levanta é saber se ela atende à definição de “golpe de Estado”.
A mídia dominante tem se esforçado em descrever a derrubada do presidente Evo Morales proibindo-se de usar o termo que melhor a reflete. Como ela, a primeira ditadora da história do continente, Jeanine Áñez, quis acalmar as preocupações. “Um golpe de Estado é quando há soldados nas ruas”,1 ela definiu, quando questionada em 12 de novembro, sobre as condições de sua investidura. Único problema: no dia anterior, ela havia pedido ao Exército para unir suas forças às da polícia para “restaurar a ordem” em La Paz.2 De modo que os soldados patrulhavam as ruas da capital no momento exato em que ela estava falando.
Entre 1825, ano da independência, e a chegada de Morales ao poder, em 2006, a Bolívia teve 188 golpes: mais de um por ano. Apesar dessa regularidade, ninguém esperava que sua primeira presidência indígena terminasse nessas condições, e tão rapidamente. Morales parecia estar ainda mais livre de preocupação pelo fato de, em uma América Latina em recessão, seu país despertar admiração tanto do campo progressista como das instituições financeiras internacionais. O primeiro destacava o declínio do analfabetismo, as obras de infraestrutura, a redução da taxa de pobreza – que passou de 63,9% em 2004 para 35,5% em 2017. As últimas, como o FMI, ficavam felizes com uma política conciliatória em relação aos empregadores e “felicitavam a Bolívia por sua impressionante taxa de crescimento”.3 O que aconteceu então?
Um rosário e uma bandeira indígena
A crise eclodiu quando os resultados das eleições presidenciais de 20 de outubro foram publicados, mas suas raízes vão mais longe. Até 2016, pelo menos. O governo realizou então um referendo que visava permitir que Morales ambicionasse um terceiro mandato, ao passo que a Constituição permite apenas dois (sua primeira eleição, realizada antes da adoção da nova Constituição, não é levada em conta).
Durante a campanha de três anos atrás, a imprensa da oposição “revelou” que Morales teria tido um filho com uma ativista de seu partido, Gabriela Zapata, a qual teria se beneficiado de sua proximidade com o presidente para enriquecer. Tudo era falso, mas isso só seria descoberto mais tarde, e sem alarde por parte da mídia. O caso arranhou a imagem do líder indígena, que pareceu incapaz de oferecer uma defesa clara contra seus detratores. As pesquisas refletiram então uma reviravolta de tendência na opinião, que a votação confirmou: 51,3% da população se opôs à ideia de uma terceira candidatura de Morales. Certo de ter sido pego numa armadilha por seus adversários, este último não aceitou o resultado. Recorreu ao Tribunal Constitucional, que, em 28 de novembro de 2017, invalidou o referendo. Com base na Convenção Interamericana de Direitos Humanos – que estabelece que todo cidadão deve poder “eleger ou ser eleito” e que, de acordo com a Constituição boliviana, tem precedência sobre o direito nacional –, a instituição abriu caminho para a terceira candidatura de Morales.
“Existem muitos precedentes, com os quais ninguém se abalou”, gritam a plenos pulmões seus apoiadores. Eles citam a reeleição em 2006 de Oscar Arias Sánchez na Costa Rica, em condições semelhantes. Não importa: o procedimento manchou um pouco mais a imagem do presidente, inclusive em sua base social. Esta não ignorava o fato de que em todo o mundo o direito de concorrer às eleições é regulamentado: na França, obter quinhentos apoios de representantes eleitos; ter mais de 35 anos nos Estados Unidos etc. A oposição, por sua vez, acabava de encontrar um novo ângulo de ataque: ela não mais denunciaria “o índio analfabeto” ou “o comunista”, mas “o ditador” que se apega ao poder. Ela abordou a eleição presidencial de 2019 alegando que o desafio não era vencer um adversário, mas desalojar um “tirano”.
Anunciados em 20 de outubro de 2019, os resultados preliminares da votação apontavam a liderança de Morales com 45,7% dos votos contra 37,8% do ex-presidente (2003-2005) Carlos Mesa, com base na apuração de 83,8% das urnas. A diferença, inferior a 10%, fazia prever um segundo turno,4 menos favorável ao chefe de Estado. Quatro dias depois, o anúncio dos resultados oficiais causou a conflagração: Morales foi declarado vencedor com 47,08% dos votos, contra 36,51% de Mesa. A oposição, que havia semanas denunciava a fraude que se aproximava, apresentou essa reversão como a confirmação do que previra.
A Organização dos Estados Americanos (OEA), braço armado de Washington na região, entrou então na dança. E, como é de seu costume, rapidamente se tornou um dos principais atores da crise que afirmava observar. Em 21 de outubro, seus emissários expressaram sua preocupação quanto a certas “irregularidades”, que tentaram embasar em um documento publicado tempos depois.5 Mas este último não forneceu nenhuma evidência concreta de fraude, conforme aponta o estudo realizado pelo Centro de Pesquisa Econômica e Política (CEPR).6 Além de parecer confundir números preliminares (sem valor legal e cuja publicação, destinada à mídia, decorreu de uma recomendação da OEA) e resultados oficiais, tradicionalmente lentos para serem compilados em um país como a Bolívia, ele tirou conclusões apressadas em algumas de suas observações. A evolução, ao longo do tempo, dos resultados a favor do Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos Povos (MAS-IPSP) de Morales, por exemplo, é apresentada como improvável do ponto de vista estatístico. “Ela é, no entanto, fiel ao que pode ter acontecido no passado”, explica Guillaume Long, um dos autores do estudo do CEPR. “Tradicionalmente, os resultados dos locais de votação onde o MAS-IPSP registra suas melhores pontuações chegam mais tarde, porque estão mais distantes geograficamente.” As dúvidas se acumularam, o que levou a OEA a prometer documentos novos, mais convincentes.
Mas já era tarde demais. A fragilidade do poder veio à tona quando ele se mostrou incapaz de defender a legitimidade da votação que havia organizado. Esse contexto deveria ter favorecido a posição da direita tradicional de Mesa. Contudo, outro grupo tirou proveito da situação para assumir o comando do movimento de protesto e guiá-lo.
Primeiro, existia toda uma nebulosa de estruturas, como a Ríos de Pie, criada havia alguns meses para promover “a inteligência coletiva e a não violência com o objetivo de influir sobre a vida política”. Sua fundadora, Jhanisse Vaca Daza, foi formada por Srđa Popović, do Centro de Ação e Estratégias Não Violentas Aplicadas (Canvas), especializada nas operações de “mudança de regime”. De início ativa na questão do meio ambiente – em que a “inação” do “regime” teria testemunhado sua disposição de passar por cima das demandas da maioria –, a Ríos de Pie divulgou em outubro uma miríade de documentos explicando como frustrar a fraude que estava se preparando. Como centenas de outras estruturas, mais tarde ela ajudou a promover uma figura até então causadora de cisão: Fernando Camacho.
Representante da direita racista, reacionário e evangélico da região de Santa Cruz, Camacho ficou conhecido em 2008, durante um conflito entre Morales e as províncias do leste do país, que estavam tentando arrancar sua autonomia junto ao poder central. Na época, ele dirigia a União Juvenil de Santa Cruz, uma das tropas de choque da oligarquia local. Em 2019, no entanto, ele adaptou seu discurso: não denunciava mais Morales como “o índio”, e sim como “o ditador”. Assim reformulada, sua aversão ao MAS-IPSP era capaz de aglomerar outras, emanadas de vários setores da população, especialmente das classes médias: aquelas que o crescimento econômico mergulhou em uma opulência que as afastou da esquerda; aquelas que os numerosos escândalos de corrupção levaram a romper com uma família política considerada desacreditada; e, finalmente, aquelas que nunca haviam aderido ao MAS e que se irritavam de se ver há tanto tempo privadas do acesso ao Estado, a principal força motriz por trás da ascensão social na Bolívia.
Hábil comunicador, Camacho agora se apresenta como um aglutinador. O homem, que nunca fala sem exibir um rosário na mão, cuidou de brandir também a bandeira indígena, no momento em que seus amigos a pisoteavam na rua. Ele logo se tornou a figura principal de uma contestação que contribuiu para radicalizar. E, quando Morales anunciou novas eleições, a reivindicação dos manifestantes não era mais a de Mesa – um segundo turno –, mas a da direita radical: a renúncia do presidente.
A ascensão desses novos atores teve como resposta apenas raras mobilizações de apoio a Morales. “É porque seu partido foi, de fato, durante muito tempo, um colosso com pés de barro”, analisa o cientista político Hervé Do Alto. Ele a descreve como uma estrutura em círculos concêntricos, cujo centro, ao longo dos anos, seria afastado de suas margens. “O MAS-IPSP tem menos a ver com um partido no sentido clássico do termo do que com uma federação de organizações sociais que inclui sindicatos operários e camponeses, comitês de bairro, comunidades indígenas”, lembra. Portanto, a organização deve, a cada momento, assegurar a mediação interna entre os movimentos que a compõem e que, dependendo dos momentos, dos conflitos, exibem uma lealdade mais ou menos forte em relação a ela.
“Nesse dispositivo”, continua Do Alto, “Morales garantiu a coesão do todo, como os raios de uma roda são unidos por seu cubo. Por meio dele, a organização conseguia transcender suas divisões internas.” As dificuldades apareceram quando surgiu uma dúvida sobre a figura do próprio presidente. Ora, o uso do poder, os conflitos políticos – particularmente com as organizações indígenas –, os escândalos (alguns com fundamento, outros não) e o trauma do referendo de 2016 fragilizaram sua estatura. Quando a crise eclodiu, um poder que era descrito ontem como um “governo de movimentos sociais” se viu… sem movimento social disposto a apoiá-lo. “Em um momento de relaxamento das lealdades em relação ao MAS-IPSP”, conclui Do Alto, “algumas organizações partidárias não tiveram o sentimento de que seu próprio destino estava sendo jogado junto ao de Morales.” Quando a Central Operária da Bolívia (COB), que embora menos poderosa que nos anos 1980 continua sendo uma referência do movimento operário, convidou o presidente a renunciar para “pacificar o país”, em 10 de novembro, a cidadela do MAS-IPSP desmoronou como um castelo de cartas.

Blindados nas ruas
Até então, a crise estava ocorrendo no âmbito da Constituição: um presidente abandonado pelos seus pode renunciar antes que uma nova eleição seja organizada. Ela foi perturbada com a intervenção do chefe do Estado-Maior, Williams Kaliman. Embora formado na Escola das Américas, uma academia onde os Estados Unidos treinam militares latino-americanos, o general era até então próximo de Morales, que se preocupara em agradar o Exército. Por vários dias, porém, muitos membros da força policial se amotinaram. Com frequência hostis ao MAS-IPSP, eles se juntaram às tropas de Camacho. “As Forças Armadas deveriam escolher: opor-se aos policiais amotinados ou abandonar o poder”, resume Do Alto. O general decidiu, mas não se contentou em dar um telefonema discreto para o chefe de Estado. Cercado de oficiais graduados, ele convocou os meios de comunicação a “sugerir” ao presidente que renunciasse, estabelecendo assim o Exército como ator político da crise, algo que a Constituição não prevê.
A oposição tradicional foi pega de surpresa; a esquerda, paralisada; a direita reacionária, galvanizada. Informado de que sua cabeça tinha sido posta a prêmio, Morales fugiu. Camacho penetrou no palácio presidencial, onde posou, cercado de policiais amotinados, com uma Bíblia colocada sobre a bandeira do país. As residências de várias personalidades do Estado e de membros da família de Morales foram saqueadas, por vezes incendiadas. E, quando a população saiu às ruas, o Exército orquestrou a repressão, com grande reforço de helicópteros e de veículos blindados. Ele hesitou bem menos em disparar munição real depois que a nova “presidenta” assinou um decreto eximindo as Forças Armadas de qualquer responsabilidade criminal.
Embora novas eleições pudessem ter permitido ao país escolher se e como queria virar a página Morales, a Bolívia agora é liderada por Áñez, uma senadora ultrafundamentalista próxima a Camacho que se autoproclamou presidenta. Ela se cercou de militares, líderes ligados a organizações racistas e representantes dos empregadores. Nenhum foi eleito para o cargo que ocupa. Isso se chama golpe de Estado.
Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 The Guardian, Londres, 13 nov. 2019.
2 The New York Times, 13 nov. 2019.
3 Comunicado à imprensa de 6 dez. 2018.
4 A Constituição boliviana prevê dois turnos, exceto quando um candidato obtém mais de 50% dos votos no primeiro turno, ou mais de 40%, com uma diferença de pelo menos 10% sobre seus rivais.
5 “Análisis de integridad electoral. Elecciones generales en el Estado plurinacional de Bolivia” [Análises de integridade eleitoral. Eleições gerais no estado plurinacional da Bolívia], 20 out. 2019, Organização dos Estados Americanos, Washington, DC, 10 nov. 2019.
6 “What happened in Bolivia’s 2019 vote count?” [O que aconteceu na contagem de votos de 2019 na Bolívia?], Center for Economic and Policy Research [Centro de Pesquisa Econômica e Política], Washington, DC, nov. 2019.