Bolsonaro é o maior violador de direitos de comunicadores/as no país
Houve um recrudescimento da violência material e simbólica contra comunicadores/as no Brasil, a partir de 2018, resultando em cerceamento da liberdade de imprensa. Leia o segundo artigo da série “Violações e resistências: as faces do direito à comunicação no Brasil”, feita em parceria com o Intervozes.
Os índices de violência contra comunicadores/as continuam batendo recordes no Brasil. De acordo com o último relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), publicado em janeiro de 2022, foram registrados pelos sindicatos afiliados 430 episódios de violência contra jornalistas no país, durante o ano de 2021. Uma diferença pequena em relação ao ano anterior, que registrou 428 episódios, contudo a Fenaj identifica que o número de casos de ataques a veículos de comunicação e jornalistas vem em franco crescimento desde 2019, e a Federação aponta que o principal responsável pelas agressões é o presidente Jair Bolsonaro (PL). Desde 2021, o Brasil também integra a chamada “zona vermelha” do Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa da organização internacional Repórteres sem Fronteiras (RsF). O fenômeno não ocorria há 20 anos.
A violência contra profissionais da imprensa é alarmante ao redor do mundo. De acordo com pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), 55 profissionais de imprensa de todo o mundo foram assassinados em 2021. Durante o período de 2016 a 2020, foram 400 assassinatos de jornalistas . Apesar do número ser 20% menor em relação ao período anterior (2011 a 2016), a impunidade se destaca: 58% dos casos registrados desde 2006 permanecem sem solução.
O Brasil não registrou casos de violência letal contra jornalistas no ano de 2021, mas o relatório da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) chama a atenção para o assassinato do radialista Weverton Rabelo Fróes, em abril de 2021. Conhecido como Toninho Locutor, o comunicador foi executado com seis tiros em frente à casa onde morava, em Planaltino (BA). Toninho comandava uma rádio comunitária e participava de um quadro humorístico em uma emissora da cidade. A Abert não computou o caso no relatório porque a polícia continua investigando autoria e motivação do crime.
Outros tipos de violência contra jornalistas e comunicadores seguem em crescimento. A presidenta da Fenaj, Maria José Braga, reitera que “a ascensão do presidente Jair Bolsonaro ao poder, ou seja, a ascensão da extrema-direita ao poder foi, sim, fator para um crescimento exponencial para a violência contra jornalistas no Brasil. O presidente sozinho é responsável por centenas de ataques”, pontua. Por esse motivo, a Fenaj instituiu em seu relatório uma categoria nova desde 2019, que é a “descredibilização da imprensa”, que, em 2021, teve 131 casos. Ficou atrás apenas da “censura”, que somou 140 casos, sendo 138 destes apenas dentro da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). O veículo que sofreu mais casos de censura foi a TV Brasil, seguida da Agência Brasil e as rádios.
A explicação está na metodologia adotada no relatório, que concentrou as denúncias vindas de jornalistas da EBC, em Brasília. A Fenaj optou pelo registro no Distrito Federal em virtude da localização da diretoria da empresa.
Juliana Cézar Nunes, coordenadora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e jornalista da EBC, identifica que o desmonte da instituição começou já com o governo Michel Temer e que, pelo fato de ser uma empresa pública, está sujeita a mais ataques. “A empresa foi aparelhada pelo governo com militares e também com a ala ideológica, que passaram a integrar a direção da empresa e têm feito perseguições, censuras e práticas antissindicais”.
Apesar da ação conjunta entre Fenaj, Comissão de Empregados da EBC e Sindicatos de Jornalistas e Radialistas dos estados do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Distrito Federal contra os casos de censura, a direção da empresa continuou a censurar as informações que iam de encontro aos interesses do governo Bolsonaro. Entre as notícias censuradas na TV Brasil, por ordem das chefias, estão o Acampamento Terra Livre; o levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indicando o agravamento da insegurança alimentar em decorrência da pandemia; a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinava ao Governo Federal a apresentação de um Plano Nacional de enfrentamento da pandemia de Covid-19 para as comunidades quilombolas, dentre outras.
Para Juliana, é fundamental discernir que se almeja “liberdade de imprensa bem ampla e não apenas uma liberdade de empresa. É a liberdade do exercício profissional de jornalista e de comunicadores em geral. A censura que acontece nas redações não parte apenas do governo, mas também de instituições privadas”. Para a jornalista, é necessário garantir a complementariedade dos sistemas público, comunitário e privado. “É a complementariedade que garante uma diversidade para o debate público. Então é fundamental que seja respeitada a mídia comunitária, a mídia negra, indígena. E a comunicação pública, além da comunicação privada e governamental”.
Violência de gênero contra jornalistas
Os ataques à liberdade de imprensa, por vezes, coadunam com a violência de gênero. De acordo com o relatório “Jornalismo frente ao sexismo”, da Repórteres sem Fronteiras, publicado em setembro de 2021, as jornalistas enfrentam um duplo risco, porque o assédio sexual é a violência com maior ocorrência no relatório, e o ambiente com maiores índices de violência é o digital.
Lola Aronovich, comunicadora e professora de Literatura em Língua Inglesa na Universidade Federal do Ceará (UFC), mantém um blog de ativismo feminista há 14 anos e possui colunas em outros veículos de comunicação. Lola relata que há pelo menos 11 anos as agressões verbais em suas páginas se tornaram muito mais ameaçadoras. “Os xingamentos são chatos porque outras mulheres, meninas, veem como uma feminista é tratada. Serve de lição para elas se calarem também. Esse é o intuito, eu acho. Mas as ameaças são diferentes. Elas são ameaças de morte, de estupro, de tortura, de desmembramento. Eles sabem o endereço da minha casa e da minha mãe”, disse.
Conforme indicado no relatório da RsF, a “trolagem” (ou assédio) pode ser orquestrada em grupo e parasita a presença digital da jornalista que está sendo alvo do ataque. Lola Aronovich relata que é vítima desse tipo de ação, a ponto de seus agressores falsificarem sua página com conteúdo difamatório.
Outra jornalista a relatar casos constantes de violações e ataques nas redes sociais é Taty Valéria, fundadora do portal Paraíba Feminina, voltado para noticiar casos de violência de gênero e direitos das mulheres. Taty relatou nunca ter sofrido agressões físicas, mas já chegou a receber ameaças de morte por ter publicado um caso de violência doméstica. Ela comenta que, na ocasião, não buscou apoio de entidades de proteção a jornalistas, mas da Polícia Civil. “Pensei que eu precisava de um resguardo jurídico. Fui atrás de saber o que eu precisava em termos de proteção mesmo”, frisou. Além da ameaça, Taty reporta receber xingamentos no perfil do portal no Instagram. “A grande maioria é fake”, informou. Quando ocorre, Taty denuncia à plataforma, mas poucas vezes os perfis foram retirados do ar.
Casos como o de Lola e Taty, infelizmente, não são isolados. Mulheres jornalistas sofreram um ataque a cada três dias em 2021, é o que aponta o relatório “Violência de gênero contra jornalistas”, realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com apoio do Global Media Defence Fund da Unesco, publicado em março de 2022. Foram 119 ataques no total, dos quais 38% foram classificados como de gênero, incluindo ofensas à moral e à reputação delas (32 ocorrências), homofóbicos (8) e transfóbicos (1).
Assim como no relatório da Fenaj, a Abraji também identifica Bolsonaro como o responsável pelo maior número de agressões às jornalistas. Além disso, a pesquisa aponta que em 52% dos casos com múltiplos agressores foi identificada uma tendência de vinculação entre autoridades e trolls na internet, uma vez que, a partir das declarações de autoridades, perfis identificados ou não reproduzem os ataques como uma reação em cadeia. Bolsonaro já atacou verbalmente jornalistas, a exemplo da repórter Driele Veiga, da TV Aratu, afiliada do SBT na Bahia, em abril de 2021; a apresentadora da CNN, Daniela Lima, em junho de 2021; e a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, em fevereiro de 2020, dentre outras.
Ataques e ameaças a jornalistas e comunicadores é histórico no país
Lamentavelmente, antes mesmo do avanço da extrema-direita no Brasil, consolidado com a ascensão de Bolsonaro ao poder, em governos anteriores conhecidos como de esquerda, ameaças, intimidações, censuras e tantas outras violações sempre ocorreram contra profissionais da comunicação e comunicadores/as comunitários/as ou populares em todo o país. Mas houve um aprofundamento a partir de 2018. De acordo com matéria da Agência Brasil, no primeiro ano do governo Lula o número de rádios comunitárias, mas consideradas ilegais pelo Ministério das Comunicações, que foram fechadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), cresceu. Em 2003, 4.412 rádios tiveram de sair do ar.
Nas favelas do Rio de Janeiro, durante a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) pelo governo estadual, que por mais de dez anos ficaram instaladas em cerca de 40 favelas da cidade, comunicadores/as dessas áreas já denunciavam as censuras que sofriam pelas forças policiais nos seus territórios de atuação. Um dos casos foi o do Rapper Fiell, artista e comunicador comunitário da Favela Santa Marta, localizada na zona sul do Rio, que depois de mobilizar durante um ano toda a favela para a organização da Rádio Comunitária Santa Marta, poucos anos depois teve os equipamentos apreendidos pela Polícia Federal. No intervalo de um ano de funcionamento da rádio, Fiell foi detido duas vezes, sendo em uma delas agredido por policiais da UPP. E, por anos, pagou uma multa de mais de R$ 10 mil porque, para o governo, aquele meio comunitário era ilegal.
Na mesma época, diversos/as comunicadores/as comunitários/as atuantes da favela de Manguinhos, na zona norte do Rio, também sofreram com abordagens e ameaças por agentes de segurança da UPP local, por apenas relatarem uma abordagem de um jovem negro na favela. Em Acari, outra favela da zona norte do Rio, a comunicadora do Coletivo Fala Akari, Buba Aguiar, revela as violações que vem sofrendo há anos.
Segundo ela, ser comunicadora dentro de um local como a favela, que sofre constante violação estatal, é viver em risco. “Nem tudo pode ser ‘comunicado’, deve-se analisar muito o que e como vai ser comunicado. São vários os níveis de riscos. Por diversas vezes, tive minha casa invadida e sofri agressões físicas e verbais por policiais, fossem em operações policiais ou em abordagens no entorno da favela onde moro”, disse Buba, que é patologista e licenciada em Ciências Sociais pela UFRJ.
Buba alerta para a ausência de políticas de proteção que incluam os comunicadores e as comunicadoras. “É preciso radicalizar mais o debate sobre as mulheres comunicadoras em territórios em conflito. É notório que mulheres brancas que atuam com comunicação, na vertente da violência de Estado em geral, têm um apoio (público, institucional, financeiro e psicológico) muito maior que as mulheres não brancas”, destacou.
Outra comunidade que durante a Copa do Mundo no Brasil sofreu forte repressão foi o Conjunto de Favelas da Maré, também na zona norte do Rio. Durante os anos de 2014 e 2015, o exército ocupou toda a favela, que por um ano e cinco meses esteve sob regime da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), lei que foi comumente utilizada na Ditadura Militar. Esse período foi considerado pelos/as comunicadores/as da Maré como um dos piores anos em relação à questão da liberdade de expressão, marcados por fortes censuras e violações de direitos. Nessa época, os/as comunicadores/as eram ameaçados/as, tinham casas invadidas, equipamentos apreendidos e páginas das redes sociais clonadas. Eliano Felix, jornalista e morador da Maré, que integrava o Jornal O Cidadão, disse que, em 2014, durante uma cobertura jornalística sobre a abordagem de um policial a um jovem negro na Maré, o soldado apontou o fuzil para ele por tentar filmar. Ou seja, Eliano virou alvo por tentar mostrar a violação, foi levado para o posto da Polícia Militar local e teve seu celular apreendido.
Casos como os do Rapper Fiell, de Buba e de Eliano não são isolados no Rio de Janeiro nem em outros estados do país. As violações, intimidações, censuras e até ameaças ocorrem a nível estadual e nacional também. Com o aumento desses casos de violações e silenciamentos dos profissionais de comunicação no país, o Instituto Vladimir Herzog (IVH) vem organizando, desde 2018, a Rede de Proteção de Jornalistas e Comunicadores. “A Rede surgiu em meados de 2018, quando o Instituto entendeu que precisava atuar de forma mais incisiva para combater o cenário de violência contra jornalistas e comunicadores, especialmente a partir da eleição de Jair Bolsonaro”, disse Giuliano Galli, coordenador de Jornalismo e Liberdade de Expressão da entidade.
Atualmente, a Rede é coordenada pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Artigo 19, e tem como parceiros o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e a Repórteres Sem Fronteiras. A Rede conta, ainda, com a atuação de 38 articuladores locais, espalhados por todos os estados, que contribuem com a realização da missão e dos objetivos do projeto.
Giuliano Galli afirma que o Brasil vive uma epidemia de violência contra jornalistas e comunicadores/as. Em todas as regiões, em todos os estados, os números assustam e revelam um cenário perturbador. “Este é um problema histórico do Brasil, que era muito grave no período da ditadura, e se manteve grave mesmo após a redemocratização. No entanto, o cenário que já era ruim se agravou bastante nos últimos anos, em especial após a eleição de Jair Bolsonaro”, observou.
A Rede de Proteção de Jornalistas e Comunicadores, que pode ser acessada por qualquer profissional da comunicação do país, atua com orientação, apoio jurídico e oficinas sobre cuidados em relação às redes sociais ou mesmo ambientes físicos. Em agosto de 2021, lançou uma plataforma virtual para que os/as comunicadores/as e jornalistas denunciem as violações de direitos que ocorrem com eles/as. Desde que foi ao ar, 14 denúncias de ataques de diferentes tipos a jornalistas e comunicadores/as de várias regiões do Brasil já foram registradas. E, no final de 2021, aproximadamente 40 jornalistas e comunicadores/as tiveram acesso às oficinas sobre segurança digital, organizadas pela Rede.
Em um ano eleitoral, como é 2022, as organizações de direitos humanos precisam estar com os olhos voltados também para casos de violações à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão, uma vez que está comprovado que a violência material e simbólica a jornalistas e comunicadores/as vem aumentando. O lastro para que a democracia no Brasil seja restaurada passa pelo respeito à livre comunicação.
Gizele Martins é jornalista, comunicadora popular, doutoranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante da Frente de Mobilização da Maré. Isadora Lira é jornalista, doutoranda em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba e integrante do Intervozes.