Bolsonaro é presidente, mas não governa
O comportamento alucinado de Bolsonaro, e de sua matilha, com relação à administração da pandemia chegou ao limite, com a instalação de um governo paralelo que passou a se contrapor ao seu próprio governo
O fato novo da acelerada conjuntura política do país se relaciona diretamente com a pandemia de coronavírus: Bolsonaro continua Presidente da República, mas não governa mais! As classes dominantes, e seus prepostos no Congresso Nacional e no Judiciário (STF), encontraram uma solução momentânea, não traumática, para a defesa e preservação de seus interesses – tira-lhe poder de decidir, sem precisar tirá-lo formalmente da Presidência da República.
O comportamento alucinado de Bolsonaro, e de sua matilha, com relação à administração da pandemia chegou ao limite, com a instalação de um governo paralelo que passou a se contrapor ao seu próprio governo, legalmente constituído. Em especial, contestando e boicotando as políticas e iniciativas do Ministério da Saúde, com destaque para a contestação da necessidade de isolamento social – indicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e adotado por todos os países do mundo, como a medida fundamental de enfrentamento da pandemia, para impedir o colapso dos sistemas de saúde.
Na verdade, Bolsonaro, desde a sua posse, não governou o país em nenhum momento. As reformas neoliberais que interessam às classes dominantes foram viabilizadas (encaminhadas e aprovadas), até aqui, sob o comando de Paulo Guedes e Rodrigo Maia, respectivamente ministro da Economia e presidente da Câmara dos Deputados. Nas outras áreas, em especial nas relações internacionais, na educação, na cultura e nos direitos humanos, a ação do governo desorganizou e desestruturou o que existia e funcionava institucionalmente.
A tensão entre neoliberalismo e neofascismo, constitutivos do governo Bolsonaro, tem sido permanente. Por um lado, a ascensão de Bolsonaro, desdobramento lógico, mas não previsto, do golpe de 2016, foi fundamental para viabilizar as reformas e políticas econômico-sociais neoliberais até aqui aprovadas pelo Congresso Nacional, apesar das dificuldades colocadas pelo seu comportamento errático e paranoico. Por outro lado, contudo, em razão desse comportamento e da chamada “guerra cultural” – programa central do neofascismo dentro e fora do governo Bolsonaro, e que envolve a negação da ciência, das universidades, da cultura e do conhecimento historicamente acumulados –, o ambiente político fica permanentemente tensionado, com ameaças reiteradas aos outros poderes da República e demais instituições do estado de direito e da sociedade civil.
Ao longo deste ano, inicialmente aos poucos, e depois de forma acelerada pela pandemia, o “Fora Bolsonaro” foi ganhando cada vez mais adeptos na sociedade civil e na esfera da política institucional (partidos, personalidades e lideranças importantes); as reiteradas quedas de sua popularidade, que vêm sendo apontadas por todas as pesquisas de opinião, expressam essa outra conjuntura. Foi-se formando um consenso entre todas as forças políticas – com exceção da extrema-direita – de que se está diante de um sujeito perigoso, no limite beirando a insanidade, que ameaça o estado de direito e que, agora, se revela também perigoso para a saúde pública e a vida de milhões de brasileiros. Em suma, Bolsonaro tem que ser parado de algum modo!
O arranjo momentâneo, encontrado pelo establishment, foi uma articulação dos outros dois poderes da República e de militares de dentro do próprio governo, com apoio de governadores, que tenta colocar na geladeira o “Fora Bolsonaro”, neutralizando momentaneamente o poder de decisão do presidente da República (em especial no que se refere ao combate à pandemia) sem retirá-lo da Presidência. A retirada formal de Bolsonaro da Presidência abriria uma nova conjuntura, de grande incerteza e instabilidade, num momento extremamente delicado por conta da pandemia. O combate à Covid-19 tem evidenciado, em todos os países do mundo, a insanidade e a irracionalidade do programa, das reformas e das políticas neoliberais, colocados em prática nas últimas quatro décadas, no que concerne ao bem-estar da esmagadora maioria da população mundial. Em especial, a estúpida concentração de renda e a fragilização do Estado social em toda parte e que, agora, coloca em perigo todas as sociedades humanas.

No Brasil, às classes dominantes e seus prepostos não interessam a saída de Bolsonaro, com ou sem impeachment; o sonho deles sempre foi o de poderem controlar e enquadrar o fascista, mas isto se mostrou inviável – tanto pelo fato do neofascismo ser um movimento internacional com ramificação no Brasil, quanto pelas próprias características psicológicas e emocionais do sujeito. Como alternativa, caminhou-se para uma solução, torno a ressaltar, momentânea, para se evitar a solução “natural e traumática”, cada vez mais próxima, que seria retirá-lo da Presidência. A sua queda definitiva implicará uma mudança na correlação de forças na sociedade civil e no Estado, podendo levar ao questionamento, aqui também, de todas as reformas e políticas neoliberais aplicadas no pós-golpe de 2016.
Mas esse “golpe branco” não resolve, de fato, o problema; ao contrário, só fará acirrar a instabilidade política, que crescerá pari passu com a disseminação da pandemia em todo território brasileiro. Por um lado, Bolsonaro, embora sem poder tomar decisões, continuará atuando contra o seu próprio governo, boicotando as decisões do Ministério da Saúde, opondo-se aos outros dois poderes de República e aos governadores, bem como agitando e mobilizando suas milícias digitais, colocando em risco o estado de direito e a saúde da população. Por outro lado, as forças político-sociais democráticas e de esquerda não se iludirão (espera-se) com essa pseudo solução e continuarão atuando pela retirada de Bolsonaro e de seu governo. O “Fora Bolsonaro” não sairá do cenário político; esse movimento se ampliará cada vez mais, como uma necessidade objetiva para a manutenção das liberdades democráticas e a defesa da vida de todos os brasileiros.
Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).